O Blog da BVPS convida a todas e todos para a leitura do artigo “De perto ninguém é normal (ou o ‘novo normal’)”, da antropóloga Lilia Schwarcz. No texto, a autora discute as dinâmicas de alternância entre mudança e continuidade que as sociedades apresentam em períodos de crise.
Aproveitamos ainda para recomendar a Gama, uma revista virtual que traz reflexões, análises e matérias sobre temas relacionados a cultura, sociedade e identidade.
Abaixo, postamos uma parte de “De perto ninguém é normal (ou o ‘novo normal’)” e convidamos os/as leitores/as a terminarem a leitura no site da Gama.
Boa leitura!
De perto ninguém é normal (ou o ‘novo normal’)
Por Lilia Schwarcz [i]
Sempre desconfio das expressões que fazem sucesso rápido e acabam servindo para qualquer ocasião. Afinal, o que explica tudo também explica nada.
A expressão “novo normal” tem sido muito utilizada nos últimos meses, quando se percebeu que o coronavírus há de acarretar mudanças para todo o planeta. Isto é, que os efeitos da Covid-19 não se limitarão ao dia em que a pandemia for dada por terminada. E é certo: a história mostra que não se sai de crises como essa da mesma maneira que se entrou.
“Novo normal” não é, porém, um termo recente; tampouco se sabe a origem dele. No entanto, tem sido crescentemente associado a momentos da história em que toda a sociedade é obrigada a se reinventar diante de períodos de crises de ordem política, militar, econômica ou sanitária.
Crise quer dizer “decisão” e, portanto, parece “normal” que diante de grandes acidentes como esses, as sociedades mostrem sua capacidade para se alterar, mas para se “conservar” também. Durante muito tempo as ciências sociais, prioritariamente, se dedicaram a entender não como as sociedades mudam, mas sobretudo como elas têm essa incrível capacidade de se manter. Como dizia Lampedusa: “É preciso que algo mude para que tudo fique absolutamente igual”.
E esse me parece ser o “novo normal”: ele representa, no meu entender, um esforço contínuo no sentido da preservação da sociedade (e de um determinado status quo), nem que, para que isso ocorra, ela seja levemente alterada. Isso porque a humanidade, em seu longo curso, sempre lutou pela manutenção. As pessoas também preferem estados de equilíbrio, de “normalidade”, do que viver no “caos” da novidade. Por isso, se é preciso que alguma coisa se altere, o melhor é que seja bem pouco.
Considero, assim, o “novo normal” um movimento bastante conservador; no sentido primeiro da palavra: conservar. Afinal, esse seria um “novo normal” para quem? Qual seria o nosso coeficiente de “normalidade”? E qual a régua que mede e distingue o que é “normal” do que é “anormal”, ou, ainda, um “novo normal”?
Toda sociedade carrega seus próprios parâmetros e princípios, que serão mais eficientes quanto mais forem vividos como “naturais”, “normais”. A lógica da sociedade, dizia o sociólogo Émile Durkheim, no final do século 19, não corresponde à “soma dos indivíduos”. Por isso, o silêncio que carregamos conosco é uma barulhenta algazarra social, pois procura esconder os critérios que regem essas métricas e não mostra como são obrigatórios esses traços sociais, que nos parecem apenas facultativos.
Arrisco, portanto, dizer que “normal” é acreditar numa história feita apenas por homens, brancos, de classe alta, e celebrados por seus atos célebres. No jogo do “diz que não diz”, chamamos de “história universal”, uma narrativa que diz respeito aos Estados Unidos e à Europa, e em especial à Europa Central. Ela é a “normal”. Tudo o que escapar da “norma” fica jogado na lata de lixo da exceção e do que “não é normal”. Foi assim com a Revolução Haiti (1791-1804), que cometeu o “pecado” de mostrar ao mundo que escravizados podem (e devem) se rebelar e ganhar o comando de seus próprios países. Mas eles romperam com a “norma” e com o “normal”, e sofrem até os dias de hoje, com as severas consequências. Como dizia o etnólogo Claude Lévi-Strauss, “bárbaro é aquele que acredita na barbárie”. Somos nós.
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[i] Professora Titular do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP) e Global Scholar e professora visitante na Princeton University (EUA).
••• A imagem que ilustra este post é de Bruna Torial [intervenção da artista na obra “Operários” (1933), de Tarsila do Amaral]. A imagem e o texto foram reproduzidos com autorização da revista Gama