Na atualização de hoje da série Pandemia, Cultura e Sociedade o antropólogo Octavio Bonet escreve sobre o que aprendemos e o que esquecemos das experiências de saúde e doença individuais e coletivas do passado, mobilizando uma perspectiva da antropologia das emoções e propondo a ideia de “sociedade do espanto” para pensar o presente.
Pandemia, Cultura e Sociedade é uma parceria do Blog da BVPS com a revista Sociologia & Antropologia (PPGSA/UFRJ). Assine o blog para receber as atualizações e curta nossa página no Facebook.
Boa leitura!
A sociedade do espanto? Vírus, emaranhados e vidas.
por Octavio Bonet [i]
A pandemia do vírus da Covid-19 tem o efeito paradoxal de nos colocar em uma situação completamente nova para o mundo moderno e, ao mesmo tempo, mobilizar conceitos que já sabíamos há muito tempo. Nesta situação estranha que vivemos no momento, cabe perfeitamente a frase de Borges: “não nos une o amor, senão o espanto”.
O vírus junta o passado, o presente e o futuro em um emaranhado de linhas ao longo das quais vamos experimentando novos afetos, repensando velhos conceitos e olhando perplexos para o que virá. Com a frieza do Real o vírus da Covid-19 nos informa que não podemos separar a natureza da cultura, que não podemos separar nossa dimensão biológica, das dimensões psicológicas e sociais e que nosso mundo tem como uma característica fundamental seu entranhamento, seu emaranhamento. De uma tacada, o vírus questiona o cerne da modernidade. Mas tudo isso já sabíamos. Entretanto, como diz Gregory Bateson, às vezes os truísmos precisam ser repetidos porque são esquecidos, já que “todo mundo sabe disso”.
Por exemplo, há quatro meses, como resposta à pandemia, o mundo começou uma política de distanciamento social de acordo com as diferentes situações da epidemia. Cada país escolheu ou um distanciamento radical, quarentena obrigatória, ou um pedido à população para que limite as saídas e aglutinamentos. Não é minha intenção neste texto revisitar a polêmica absurda e assassina em que Brasil afundou, se o isolamento funciona ou não… Como disse acima, sabemos há muito tempo que funciona, é só recuperar as ações do sanitarismo para controlar as epidemias ao longo da história (a lista de livros, artigos e teses seria muito extensa). Mas para mencionar somente um, que retorna em loop em todo esse período à minha memória, é Michel Foucault no artigo O nascimento da medicina social escreve que na história da medicina ocidental se desenvolveram dois modelos de organização médica: um suscitado pela lepra e outro pela peste. Desde a Idade Média quando se identificava um doente de lepra, este era expulso do espaço comum, expulso das cidades; ou seja, o modelo era o da exclusão, do exílio. O segundo modelo de organização era o da peste: neste caso não se expulsava o doente, mas o poder político da medicina consistia “em distribuir os indivíduos uns ao lado dos outros, isolá-los, individualizá-los, vigiá-los um a um, constatar o estado de saúde de cada um (…) fixar a sociedade em um espaço esquadrinhado, dividido, inspecionado…” (Foucault, 2011: 89). O modelo de organização da peste é o da quarentena, que se conhecia desde a Idade Média, e que a medicina urbana do século XVIII aperfeiçoa e que passa a consistir basicamente em: ficar em casa, dividir a cidade em bairros e ter vigias de ruas que fariam os relatórios diários. Em outras palavras: isolamento e informação. Sabemos há muito tempo disso, mas mesmo assim, em plena epidemia da Covid-19 alguns ainda continuam discutindo a sua eficácia. Mas ainda tínhamos um sistema suficientemente organizado de divisão da cidade em áreas e micro-áreas, o chamado Programa Saúde da Família, mas que foi sucateado pelo poder público atual. E os responsáveis pelo sucateamento não podem se justificar dizendo que não sabíamos que iria acontecer uma epidemia, porque os epidemiólogos vinham dizendo há muito tempo que a questão não era se teríamos uma epidemia, mas quando esta seria. Sabíamos, mas esquecemos.
Comecei dizendo como o vírus veio para nos recordar o grau de entranhamento, de emaranhamento do mundo e que não podemos separar natureza e cultura. Nestes dias é possível ler inúmeras publicações que deslizam de uma dimensão molecular do vírus, que foi chamado de inimigo invisível, para dimensões molares, que remetem às dimensões econômicas, sociais e políticas e suas consequências para as nações. O micro e o macro juntos, ressignificando múltiplos costumes tão cotidianos como o simples aperto de mãos, um abraço, e tão complexos como os diferentes “arranjos de cuidado” (Fazzioni 2019) com os quais tentamos mitigar as consequências para a nossa saúde e para a saúde dos que nos são próximos.
Também sabíamos disso. De novo a lista de contribuições seria longa, mas para resgatar apenas alguns antropólogos que contribuíram para o argumento que estou desenvolvendo, gostaria de citar Gregory Bateson quando escreve que no momento em que perdemos a visão sistêmica do mundo e começamos a nos guiar por propósitos conscientes, por fins em si mesmos, nos distanciamos da dimensão do entranhamento, dos padrões que conectam e das relações. Bateson chamava esse entranhamento de processo mental, de vida, de espírito. E as características desses sistemas permitem explicar tanto a nós, seres humanos, quanto aos vírus e as florestas (Bateson 2000; 1989).
Outra referência na antropologia, Marcel Mauss, escreveu dois artigos em que desenvolve ideias muito pertinentes ao momento atual: A expressão obrigatória dos sentimentos, de 1921 (1974) e As técnicas do Corpo, de 1935 (2004). Explicitando o conceito de “homem total”, diz que os sentimentos são expressões coletivas, uma linguagem, portanto, simbólica. Mas, para Mauss, além de signos e símbolos coletivos, são manifestações e distensões orgânicas (ele trabalha especificamente com o riso, as lágrimas e os gritos nos rituais funerários). Por essa razão, para serem explicadas precisam de uma perspectiva que junte a sociologia, a psicologia e a fisiologia. Em outro artigo sobre as técnicas corporais, retoma essa ideia do tríplice ponto de vista que permite explicar sua perspectiva sobre os fenômenos corporais; os três elementos que compõem o “homem total” têm que estar “indissoluvelmente misturados” (Mauss 2004: 405).
Entretanto, nesta situação dramática que hoje vivemos por causa da pandemia de 2020 podemos dizer que – sem deixar de reconhecer os entrelaçamentos das diferentes dimensões micro e macro do fenômeno – temos um propósito consciente que se impõe: salvar a maior quantidade de vidas possíveis. Também, tirando alguns psicopatas, sabíamos disso.
Vale, então, a pergunta: o que não sabíamos? O que o vírus veio nos dizer?
Para começar a responder essa pergunta, gostaria de lembrar um livro excelente de Claudine Herzlich e Janine Pierret chamado Doentes de ontem, doentes de hoje (1984) no qual argumentam que cada época tem um tipo de doente e, portanto, a sua doença específica. No primeiro momento histórico que as autoras delimitam, o período das epidemias da Idade Média, a doença esteve associada à ideia de número, impotência, exclusão e morte; a doença era vivida pela sociedade em seu conjunto, era um fenômeno coletivo. O segundo momento se caracterizaria pelo surgimento da tuberculose, do século XIX, quando se produz uma modificação essencial: a doença já não será um fenômeno de massas, passando a constituir uma questão individual e uma forma de vida. Com esta modificação, surge o conceito moderno de ‘doente’: “a realidade e a imagem da doença cessaram de ser coletivas para ser as de um dano individual. O doente é o indivíduo, sem que seu vizinho tenha qualquer coisa a ver com isso. Sua doença não constitui nem uma advertência, nem uma ameaça para seu entorno. Na sua realidade orgânica, só concerne a ele. (Herzlich & Pierret, 1991: 77). Com a transformação do adoecer, que passa a ser individual e que ocasionará a morte lentamente (a doença como forma de vida), surge o ‘doente’ com status e estigma. A contemporaneidade seria o momento das doenças crônicas, em que o doente vive individual e solitariamente a sua doença associada à sua responsabilidade individual. O argumento se fundava na noção de que as doenças epidêmicas, embora tenham ficado endêmicas em algumas regiões do mundo, não constituiriam uma ameaça para a humanidade.
Essa transformação da nossa época em que as doenças crônicas são as prioritárias, que nos envolvem enquanto indivíduos, permite introduzir uma das respostas possíveis à pergunta sobre o saber. Não sabíamos como viver numa pandemia. Não sabemos como lidar com uma quarentena. Não sabemos como lidar com a proximidade cotidiana da morte. Não é com uma morte possível em algum momento (o que é talvez a única certeza), mas com a notícia concreta e cotidiana da morte de pessoas conhecidas ou de parentes. Essa é a nova situação em que o vírus nos colocou. Ainda não sabemos como lidar com as transformações subjetivas que a quarenta impõe. Até agora as epidemias (ebola, cólera, H1N1 e outras) eram sofridas por outros, as crises de migrações em massa eram vistas pela TV, mas a Covid-19 se expandiu para o mundo, apesar das gigantes diferenças entre as diversas regiões geopolíticas. O vírus chegou até nós, agora faz parte do nosso cotidiano. E com isso uma transformação de nossa subjetividade está em curso.
O que o vírus trouxe foi um “medo difuso” da rua, das coisas que chegam da rua, dos abraços e dos cumprimentos. Um espanto angustiado perante as fotos de caixões enfileirados. Poderíamos, talvez, ter visto uma imagem semelhante alguma vez, mas agora essa visão macabra se associa à possibilidade de acontecer conosco ou com alguém próximo.
Talvez justamente por vivermos na época das doenças individualizadas e da medicina individualizada, não sabemos viver uma epidemia. Talvez por isso estejamos perplexos diante da quarentena, do vazio das ruas causado por essa ameaça invisível. Apesar do nosso modelo de doente, hoje estamos às voltas com um novo vírus que “parou o mundo”. Talvez seja isso que também não sabíamos: sobre a possibilidade ou a necessidade de parar (mesmo que muitos especialistas de diferentes áreas já viessem nos alertando sobre essa necessidade).
Foucault (1997) propôs a sociedade disciplinar com suas fábricas, presídios e manicômios, que produzia operários, presos e loucos com seus corpos dóceis, ajustados e disciplinados; sociedade que teria atingido o seu auge no século XX. Posteriormente, Deleuze (1992) discute que essa sociedade modular da disciplina estaria sendo substituída pela sociedade de controle. Esta seria uma sociedade de modulações, como um molde que se automodifica permanentemente, seria a sociedade da empresa, das penas substitutivas, dos salários por mérito, da formação permanente, da rotação rápida, do curto prazo. É uma sociedade de fronteiras difusas, mas com GPS que permite um controle permanente das movimentações.
No livro A Sociedade do cansaço (2015) Byung-Chul Han diz que a sociedade atual é uma sociedade focada no desempenho e na produtividade, e com isso gera depressivos e fracassados; indivíduos esgotados de terem que ser eles mesmos, que “não podem mais poder”. Para Han a sociedade do cansaço se desdobra na sociedade do doping, do melhoramento cognitivo, do excesso de positividade. Essa sociedade remeteria a um cansaço individualizado que apaga o mundo. Entretanto, Han marca uma saída para essa armadilha da sociedade do cansaço que se associaria a um outro tipo de cansaço que chama de cansaço-eu, ou fundamental, que habilitaria “o homem para uma serenidade e abandono especial, para um não fazer sereno. Não é um estado onde todos os sentidos estariam extenuados (…) [que] permite o acesso a uma atenção totalmente distinta, acesso àquelas formas longas e lentas que escapam à hiperatenção curta e rápida” (Han 2015: 39).
Talvez essa seria a discussão em que estávamos no momento em que a pandemia da Covid-19 se espalhou pelo mundo e mudou a agenda toda e de todos; a questão agora está implícita em frases do tipo: “quando a quarentena acabar…”, ou “quando tudo voltar ao normal…”, ou “quando descobrirmos a vacina…”. O saudosismo dessas frases remete a qual “normal”? A qual mundo voltaremos?
No exato momento em que escrevo estas linhas, recebo uma mensagem de whatsapp que diz que indígenas morrem por coronavírus no Brasil e no som toca o adágio de Mahler que musicou a cena ímpar do filme Morte em Veneza, sobre outra epidemia. A morte aflora, se faz presente. Será que estamos mutando, como o vírus e pelo vírus, na sociedade do espanto? E quais seriam os sujeitos dessa sociedade do espanto? Qual a subjetividade que caracterizaria essa “nova-velha” sociedade?
Ainda não sabemos, mas talvez uma resposta possível possa ser encontrada na categoria de Catherine Malabou: os novos feridos. No livro The New Wounded. From Neurosis to Brain Damage (2012), define essa categoria para pensar os sujeitos que sofreram danos cerebrais, por acidente ou degenerativos, mas também incluiu nessa categoria outros distúrbios clássicos da psicanálise, como os compulsivos, esquizofrênicos, autistas; se caracterizariam por distúrbios emocionais que consistem em um mau funcionamento dos sinais afetivos necessários para tomar decisões (2012:10). Mas há duas características que Malabou explicita que me interessam. A primeira é que amplia a categoria de “novos feridos” para cobrir todo paciente em estado de choque, quem, sem ter sofrido lesões cerebrais, tem seu equilíbrio emocional modificado pelo trauma. E a segunda é que todos somos suscetíveis a nos transformarmos em novos feridos. Esse tipo de transformação não é somente visível em lesões cerebrais, mas também em sobreviventes de guerras, de ataques terroristas e de todo tipo de opressão. O que a perspectiva de Malabou traz é uma disseminação do trauma, que no entanto é experimentado de forma diferente pelos sujeitos. Perspectiva que se poderia complementar com a ideia da “distribuição diferencial da vulnerabilidade” proposta por Judith Butler (2016).
Talvez por termos necessidade de dar um sentido a esse trauma, a esta situação estranha que se configurou nesta pandemia, é que observamos uma vasta produção de conhecimento em diferentes veículos, sejam acadêmicos ou não. Como se estivéssemos engajados em um movimento coletivo de busca por saber, por entender como lidar com a quarentena, como lidar com o trauma que se associa à nova configuração subjetiva.
A sociedade do espanto pode ser efêmera ou intermitente, isto é, podemos voltar a sofrer outras quarentenas. Mas como a madeleine de Proust, nunca o espanto será igual ao que esta sendo experimentado nestes meses. Voltando à frase de Borges do começo, depende de nós transformarmos o vínculo do espanto em amor e solidariedade. Ou podemos voltar à “normalidade”. Esquecer… e esperar pelo próximo vírus.
[i] Professor Associado do Departamento de Antropologia Cultural e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Referências
BATESON, Gregory e BATESON, Mary Catherine 1989. El temor de los ángeles. Barcelona: Gedisa.
BATESON, Gregory. 2000. Step to an ecology of mind. The University of Chicago Press.
BUTLER, Judith. 2015. Quadros de Guerra. Quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira
DELEUZE, Gilles. 1992. “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”. IN: Gilles DELEUZE. Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, p. 219- 226
FAZZIONI, Natalia H. 2018. Nascer e Morrer no Complexo do Alemão: políticas de saúde e arranjos de cuidado. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, Brasil. Rio de Janeiro.
FOUCAULT, Michel.1977. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes.
FOUCAULT, Michel.2011. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal
HAN, Byung Chul. 2015. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes.
HERZLICH, Claudine. & PIERRET, Janine. Malades d ’Hier, Malades d’Aujourd’Hui. Paris: Payot,1991.
MALABOU, Catherine. 2012. The New Wounded. From Neurosis to Brain Damage. New York: Fordham University Press
MAUSS Marcel. 2004. “As técnicas do corpo”. In: M Mauss. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify
MAUSS, Marcel. 1974. A expressão obrigatória dos sentimentos. In: M Mauss. Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU/EDUSP
As imagens que ilustram o post são:
Doentes em base no Kansas: gripe espanhola — ou americana? NMHM/Armed Forces Institute of Pathology/AP/. Disponível em: https://www.sinprodf.org.br/gripe-espanhola-planta-semente-do-sus-e-coronavirus-reforca-sua-importancia/
Covas abertas no cemitério da Vila Formosa, Zona Leste de SP — Foto: Reprodução/GloboNews. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/04/23/covas-aumenta-capacidade-de-enterros-em-sp-e-concentra-logistica-de-coronavirus-no-maior-cemiterio-da-america-latina.ghtml
* Os textos publicados pelos colaboradores não refletem as posições da BVPS.
Octávio Bonet nos oferece um reflexão bastante oportuna e nada mais feliz que a denominação “sociedade do espanto” para esse momento pelo qual o planeta inteiro está passando! Momento em que em contraste com a virulência do vírus, mais ainda se destaca a violência dos homens E Bonet finaliza, nos convocando a não esquecer, e transformarmos em amor e solidariedade o que hoje é violência contra o outro.
CurtirCurtir