Literaturas brasileiras à margem no mundo afro-atlântico, por Maurício Acuña

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No post de hoje, o antropólogo Maurício Acuña (USP e Princeton University) escreve sobre a presença e as ausências da delegação brasileira no Primeiro Festival Mundial de Artes Negras (FESMAN), ocorrido em Dacar em 1966. Por que, afinal, o embaixador do Senegal no Brasil, Henri Senghor, teve que escrever a seus superiores meses antes do evento que “No âmbito da literatura, o Brasil não ser[ia] representado”? Neste texto, o autor levanta hipóteses relativas ao contexto político e à história da definição do conceito de literatura afro-brasileira ou negra no Brasil; além de reconstruir o debate ocorrido na época em torno dessa ausência e refletir sobre a performance da delegação organizada pelo Itamaraty.

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Boa leitura!

 

 

Literaturas brasileiras à margem no mundo afro-atlântico

por Maurício Acuña [i]

 

 

Como o homem precisa de oxigênio para sobreviver, ele precisa de arte e de poesia.

Aimé Césaire, discurso proferido no Festival Mundial de Artes Negras

 

No ano de 1966, testemunhou-se, em um território africano recém-independente, a realização de um evento de grandes proporções. Dacar, capital do Senegal, recebeu milhares de pessoas de mais de trinta países, entre artistas, intelectuais e visitantes, para o Primeiro Festival Mundial de Artes Negras (FESMAN). Não tão conhecido e debatido na literatura da “Era dos festivais pan-africanos” (Murphy, 2016), o FESMAN foi o primeiro e um dos mais ambiciosos eventos levados a cabo num momento de euforia e incertezas diante dos processos de descolonização na África, de reconfiguração das relações entre esse continente e a Europa, de tensões derivadas da Guerra Fria e de consolidação de uma aliança entre países do Terceiro Mundo. “Uma Bandungue cultural” foi uma das definições cunhadas por Alioune Diop para caracterizar o que se esperava do evento, referindo-se à conferência que, na década anterior, havia aproximado países asiáticos e africanos. Diop, diretor da revista Présence Africaine, tomou parte ativa nos preparativos, junto com os escritores Aimé Césaire, Léon-Gontran Damas e Léopold Senghor – este último, presidente do Senegal à época. Sob uma crescente e controversa influência de Léopold Senghor como mandatário recém-eleito do país-sede, o Festival Mundial de Artes Negras levou adiante propostas definidas nos encontros de artistas e intelectuais negros realizados em Paris e Roma na década de 1950. Ao propor uma interpretação da Négritude como ontologia de uma civilização negro-africana, Senghor foi polêmico em debates importantes com outros nomes do pan-africanismo e da própria Négritude, como o amigo e aliado Aimé Césaire.

Muitos poetas, escritores e escritoras das literaturas africanas e afro-diaspóricas de expressão inglesa e francesa tiveram um papel fundamental na realização do Primeiro Festival Mundial de Artes Negras. Entre os de língua francesa, os exemplos mais notáveis são sem dúvida os nomes supracitados, que deram à Négritude os contornos de um movimento cultural e político, a partir da década de 1930. A presença de escritores e escritoras de língua inglesa também foi marcante. O poeta Langston Hughes, por exemplo, foi um dos principais nomes celebrados pela delegação dos Estados Unidos, ocupando também a posição de vice-diretor do comitê de literatura de seu país. A Nigéria contou com a presença de Wole Soyinka, que teve uma peça encenada e livros exibidos na feira sediada em Dacar. Em um momento de grande importância para o Festival – a abertura do colóquio sobre artes negras –, a sala de deliberações do Congresso Nacional do Senegal ouviu as palavras do poeta e Ministro da Cultura da França, André Malraux, sobre as civilizações e suas culturas. O Brasil, entretanto, não contou com nenhum nome do panorama literário nacional em sua delegação. “No âmbito da literatura, o Brasil não será representado”, informou laconicamente Henri Senghor, embaixador do Senegal no Brasil e sobrinho do presidente desse país, em carta dirigida a seus superiores, poucos meses antes do evento. Não houve uma única obra brasileira de ficção ou poesia na grande feira de livros altamente frequentada pelos visitantes do encontro, conforme mostra a imagem 2 a seguir, extraída do documentário de William Greaves sobre o festival.

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Figura 2: “First World Festival of Negro Arts”, William Greaves, 1968.
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Figura 3: “First World Festival of Negro Arts”, William Greaves, 1968.
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Figura 4: “First World Festival of Negro Arts”, William Greaves, 1968.

Certamente não faltavam ao Brasil escritores e escritoras de grande prestígio junto à crítica especializada, dentro e fora do país. Uma hipótese para explicar tal ausência seria a da restrição de idiomas, imposta a partir da escolha do inglês e do francês como línguas oficiais do encontro. Porém, nada impediria que fossem apresentadas traduções, já existentes em ambos os idiomas, de obras de escritores e escritoras brasileiros/as de grande expressão. Diferentemente do que veio a ocorrer nas últimas décadas do século XX, ainda não havia naquele momento uma definição estabelecida de literatura afro-brasileira ou negra, como a que seria consolidada, por exemplo, com os Cadernos Negros, na década de 1970 (Fonseca, 2017). Assim, poderia estar no FESMAN o escritor baiano Jorge Amado que, na década de 1960, era amplamente conhecido fora do Brasil, com livros traduzidos para diversos idiomas (Aguiar, 2018; Goldstein, 2003). O prestígio e a popularidade de sua obra eram tão extensos que ele foi cotado para o prêmio Nobel em 1967. Além disso, a referência ao autor como potencial indicado para um evento da ordem do FESMAN é reiterada, quando se considera que quase todos os seus escritos ficcionais dedicaram-se a personagens, temas e linguagem do universo afro-brasileiro. Em páginas de obras como Suor (1934), Mar Morto (1936), Jubiabá (1935), Capitães da Areia (1937) e A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água (1961), intelectuais, jogadores de capoeira, vendedoras de comida, escultores, pintores, dançarinos e autoridades religiosas do Candomblé respiraram, transformados em personagens. A ausência de suas obras em Dacar torna-se mais intrigante, quando contrastada com a presença de alguns artistas brasileiros levados pelo governo. Nesse quesito, era como se a parte baiana dos representantes da delegação brasileira tivesse saído de algumas das obras do escritor, pois ela incluía capoeiristas comandados por Mestre Pastinha, esculturas de Agnaldo dos Santos e comida elaborada pela iyalorixá Olga Francisca Régis, mais conhecida como Olga do Alaketu.

Além de Amado, outra indicação possível seria a da escritora Carolina Maria de Jesus que, em 1960, havia lançado Quarto de Despejo, obra que alcançou a casa dos milhões de leitores e que foi traduzida para o inglês em 1962, conseguindo, nesse idioma, centenas de milhares de leitores (dos Santos São Bernardo, 2019). No mesmo ano, a revista Bingo: le mensuel du monde noir, editada em Dacar e circulante em muitos países africanos, dedicou uma reportagem enaltecedora à escritora, intitulada “Da lixeira à glória literária, ou o conto de fadas de uma negra do Brasil” [1]. Seria possível ainda citar outros escritores, mas esses dois são sintomáticos na medida em que se distinguem em termos de raça, gênero, classe, trajetórias e estilos de narrativa, atingindo públicos diferentes na década de 1960. Enquanto Jorge Amado popularizava a elaboração literária de personagens e estórias de Salvador, sob um realismo que unia crítica social a uma visão positiva da mestiçagem e da cultura popular como elemento de resistência, Carolina de Jesus dedicava-se a narrar o cotidiano brutal e, ao mesmo tempo, delicado e lírico da vida de uma mulher negra e de outros moradores de uma favela da industrializada cidade de São Paulo.

Considerando-se o perfil ideológico-conservador do governo instituído pelo Golpe Civil-Militar de 1964 no Brasil, vigente no período de preparação para o FESMAN, pode-se argumentar que o alinhamento passado de Jorge Amado com o Partido Comunista teria comprometido sua indicação para o evento. Por outro lado, essa possibilidade é contestada pela participação do etnólogo e folclorista Édison Carneiro, comunista e amigo de longa data de Jorge Amado, que compareceu ao Festival como membro da delegação brasileira. No caso de Carolina Maria de Jesus, é crível pensar que nem os temas de pobreza e violência que ela elaborava, nem a forma de sua escrita – uma literatura questionada tanto esteticamente, quanto com relação à sua pertinência literária [2] – alcançaram a sensibilidade dos membros da delegação organizada pelo Itamaraty.

No entanto, alguns nomes de escritores brasileiros fizeram-se presentes na primeira crítica publicada pelo jornal Dakar-Matin, na manhã seguinte à apresentação do Brasil no teatro Daniel Sorano: “Onde estava o Brasil do ‘sertão’? Onde estava a noite do ‘Carnaval Carioca’? O Brasil de Jorge Amado e Vinicius de Moraes?” [3]. Senghor admirava o poeta Vinicius de Moraes que, naqueles anos, convertera-se ao Candomblé e vinha se dedicando à composição de afro-sambas e pedindo bençãos aos orixás, além de ter se declarado “o branco mais preto do Brasil” – uma frase polêmica, presente em uma de suas famosas canções-poema.

Se não parece simples encontrar razões idiomáticas, de prestígio ou de popularidade para a ausência de poetas, escritores e escritoras na delegação brasileira e de suas produções no Festival, pode-se vislumbrar uma resposta no fato de que a principal obra levada pelo Brasil a Dacar foi produzida sob encomenda, com versões em inglês e francês. Contribuição Africana à Civilização Brasileira é um livro composto por nove ensaios que versam sobre arte, culinária, folclore, literatura, música, religião, sociologia, esporte e comércio. Adonias Filho, o autor do capítulo dedicado à literatura, tece um panorama que destaca, desde o período colonial, a importância das populações afrodiaspóricas, que figuram como motivos em autos, poemas e, posteriormente, novelas e contos. Embora não mencione o nome de Carolina de Jesus – confirmando sua exclusão dos cânones da época, diversos outros escritores são referenciados, entre os quais Jorge Amado, Cruz e Sousa, Jorge de Lima, Lima Barreto, Marques Rebelo, Zora Seljan, Romeu Crusoé e Abdias do Nascimento. Como contraponto à ausência de obras literárias e seus criadores no Festival de Artes Negras, o livro elaborado pelo Itamaraty pode ser visto como um gesto de uma intervenção estética proposta pelo governo brasileiro. Também implica em um controle sobre o que era apresentado por escrito a respeito do Brasil. Por outro lado, a ênfase na presença em Dacar de artistas e intelectuais representativos dos aspectos tratados pelos oito ensaios do livro sugere a relevância da “performance” dos corpos e vozes afro-brasileiras como dispositivo expressivo complementar a uma escrita jornalística e ensaística conveniente.

Portanto, uma escrita sob medida foi encomendada para o evento e, ao lado das apresentações de música, dança e capoeira, ela constituiu o cerne da presença afro-brasileira em Dacar. Mas embora o tom ufanista de “integração nacional” fosse uma marca das explicações dos responsáveis pela “performance” brasileira no Senegal, outras diretrizes determinaram o resultado final do que foi visto como “Brasil” naquela margem africana do Atlântico. A mais contundente para uma memória do FESMAN no Brasil foi a “Carta a Dacar”, elaborada por Abdias do Nascimento, com o apoio de Henri Senghor. O documento é contundente e cuidadoso, pois dirige-se aos “exclusores do Itamaraty” que seguiam reservando às comunidades afro-brasileiras certos nichos culturais de visibilidade, ao mesmo tempo que as mantinham fora de uma integração econômica e social efetiva. Criticando o único livro levado a Dacar pelo Brasil, Abdias lembrou ainda aqueles que não haviam sido convidados para escrever nem uma linha do que foi lido no Senegal como “contribuição africana ao Brasil”.

Os autores naturais de um livro com essa destinação, deveriam ser, por exemplo, um crítico literário como Fernando Góes, um poeta como Oswaldo Camargo, um crítico de cinema como Ironides Rodrigues, um sociólogo como Antonio Alves Soares, um pintor e crítico de artes como Barros, o Mulato, um estudioso dos cultos negros do Recife como Vicente Lima, um estudioso dos cultos afro-cariocas como Sebastião Rodrigues Alves, um dramaturgo como Romeo Crusoé. Relegada mais uma vez a segundo plano, desprezada outra vez, a legítima consciência afro-brasileira (Nascimento 1966, p. 102).

Por meio da menção a tais nomes, destituídos de um lugar na delegação brasileira, revelam-se com força singular, no Primeiro Festival Mundial de Artes Negras, as perspectivas e dificuldades de uma “Négritude afro-brasileira” nos moldes daquela discutida por Kabenguele Munanga (1990). Além da dissociação entre raça e classe, que limitava a promoção de uma solidariedade dos segmentos brancos da população em relação à Négritude, intensificou-se o silenciamento de importantes intelectuais negros na produção de reflexões sobre as culturas afro-brasileiras apresentadas no FESMAN. Mais do que isso, a seleção de algumas expressões e artistas afro-brasileiros em detrimento de outras desestimulou, por algum tempo, a emergência de alianças antirracistas e de uma sensibilidade afrodiaspórica atenta às estéticas e agências que elaboravam variadas “partihas do sensível” – para citar o conceito de Jacques Rancière [4]. Outros ecos do Atlântico Sul (Thomaz, 2002) emergem quando ouvimos no contrafluxo a participação do Brasil no Festival e quando retiramos tal evento do silêncio a que foi submetido pela crítica à Négritude de Senghor, removendo-o também de seu enquadramento em classificações tão amplas como “Era dos festivais pan-africanos”. Havia outras margens que se enlaçavam poeticamente e politicamente. Arte e poesia oxigenavam os pulmões de lutas antirracistas nas letras ausentes, mas também nas performances que compareceram a Dacar, em abril de 1966.

 

Notas

[i] Mauricio Acuña (jacuna@princeton.edu) é doutor em Antropologia pela Universidade de São Paulo (2017) com a pesquisa Maestrias de Mestre Pastinha: um intelectual da cidade gingada. Doutorando do Departamento de Espanhol e Português da Universidade de Princeton com a tese “Performing Afro-Atlantic Imaginations”, que explora estéticas e políticas afro-diaspóricas no Primeiro Festival Mundial de Artes Negras de Dacar, em 1966. É autor de A ginga da nação: intelectuais na capoeira e capoeiristas intelectuais (Editora Alameda, 2015).

[1] “De la poubelle a la gloire littéraire ou le conte de fée d’une negresse du Brésil.” Bingo – le mensuel do monde noir, 1962. Print. Schomburg Center for Research in Black Culture, New York Public Library. Microfilme n. 108-129, jan. 1962-out. 1963 incompleto.

[2] Daniel Birman sintetiza nos seguintes termos o que se considerava uma postura “menor” de Carolina de Jesus no campo literário brasileiro: “…entendida como não tendo alcançado a maioridade como indivíduo e autora, já que não possui relativa autonomia em relação aos seus textos; escritora cuja legitimidade se baseia somente em sua experiência de vida; nome ligado a uma produção documental, sem reconhecimento da dimensão estética de sua obra…” (Birman 2017: 367).

[3] No original: “Où était-il le Brésil du ‘sertão”? Où était-elle la nuit du ‘Carnival Carioca’? Le Brésil de Jorge Amado et Vinicio (sic) de Morais?”. Henry Labery. La nuit du Brésil était attendue dans l’anxiété générale. Dakar-Matin, Dakar: 22 apr. 1966.

[4] Em uma breve definição, Rancière indica que “partilha” se refere a dois sentidos: “a participação em um conjunto comum e, inversamente, a separação, a distribuição em quinhões. Uma partilha do sensível é, portanto, o modo como se determina no sensível a relação entre um conjunto comum partilhado e a divisão de partes exclusivas” (Rancière 1995, p. 8).

 

Referências

Aguiar, Joselia. 2018. Jorge Amado : uma biografia. São Paulo, SP: Todavia.

Birman, Daniela. 2017. “A Centralidade Das Margens Literárias: Carolina Maria de Jesus e Paulo Lins.” Romance Notes 57 (3): 361–75.

Dos Santos São Bernardo, Ana Cláudia. 2019. “The construction of an Other in the editions and translations of the work of Carolina Maria de Jesus.” Estudos de literatura brasileira contemporânea, no. 56 (January).

Fonseca, Maria Nazareth Soares – Autor/a. 2017. “Literatura Negra, Literatura afro-brasileira: como responder à polêmica?” In Literatura afro-brasileira.

Goldstein, Ilana Seltzer. 2003. O Brasil best seller de Jorge Amado: literatura e identidade nacional. São Paulo: Editora Senac São Paulo.

Munanga, Kabengele. 1990. “Negritude afro-brasileira: perspectivas e dificuldades.” Revista de Antropologia 33: 109–17.

Murphy, David. 2016. First World Festival of Negro Arts, Dakar 1966. Liverpool: Liverpool Univ Press.

Nascimento, Abdias do. 1966. “Carta a Dacar.” Tempo Brasileiro, June 1966.

Rancière, Jacques. 1995. Políticas da escrita. Rio de Janeiro (RJ): Ed. 34.

Thomaz, Omar Ribeiro. 2002. Ecos do Atlântico Sul : representações sobre o terceiro império português. Rio de Janeiro: Fapesp.

 

A imagem que ilustra o post é o cartaz oficial do Primeiro Festival Mundial de Artes Negras (FESMAN), com motivo elaborado por Ibou Diouf.


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