Pandemia, crises econômicas e políticas, questões ambientais e desafios para as Ciências Sociais, por Horácio Antunes de Sant’Ana Júnior

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Na atualização de hoje da coluna Pandemia, Cultura e Sociedade, o Blog da BVPS publica o texto do sociólogo Horácio Antunes de Sant’Ana Júnior, professor titular do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). No artigo, o autor aponta para como sua área de pesquisa – a sociologia ambiental – tem sido interpelada pelos múltiplos desafios impostos pela pandemia, nem todos eles exatamente novos, mas que assumem dinâmicas particulares. Como sugere Horácio Sant’Ana Júnior, as reflexões trazidas podem nos ajudar como uma espécie de roteiro para pesquisas futuras nas ciências sociais.

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Boa leitura!

 

Pandemia, crises econômicas e políticas, questões ambientais e desafios para as Ciências Sociais

Horácio Antunes de Sant’Ana Júnior[i]

 

A pandemia de Covid-19 tem dimensões profundamente associadas aos últimos desdobramentos do processo de globalização econômica e da transnacionalização do capital, em curso desde o final dos anos 1970. Nos últimos 50 anos, o grande avanço dos meios de comunicação e de transmissão instantânea de dados a longa distância; o incremento nos meios de transporte e o aumento da velocidade e ampliação da capacidade de deslocamentos de cargas; a possibilidade de fragmentação dos processos produtivos em regiões e países diferenciados, associados aos processos de liberalização e financeirização da economia, provocaram uma circulação em velocidades jamais vistas de informações, mercadorias, pessoas e, consequentemente, doenças.

A pandemia está se constituindo em marco histórico de grande relevância. A velocidade de sua difusão e as formas adotadas para seu combate estão associadas às características do momento atual da globalização econômica. Porém, não pode ser tomada como única causadora da crise econômica. Como vários autores têm proposto, a difusão do novo coronavírus detonou, antecipou e ampliou o alcance de uma crise econômica que já se anunciava e, em grande medida, cria obstáculos para compreensão de suas causas e amplitude. Associadamente à crise sanitária, estamos passando por uma grande crise econômica e compreender esse processo é um dos desafios colocados pela atual conjuntura para os cientistas sociais.

A irresolvida crise econômica acentuada no final da primeira década do século XXI, por outro lado, já vinha dando sinais de novos picos antes da pandemia se apresentar. Apesar da sua pujança, de sua capacidade de produção de bens e riquezas em quantidades cada vez maiores, dos enormes avanços tecnológicos, o sistema capitalista mundial, em suas variadas configurações regionais, vinha apresentando sinais críticos que se aprofundam e tornam-se mais evidentes com a pandemia: gigantesca concentração mundial das riquezas associada ao empobrecimento cada vez maior de pessoas, grupos sociais e povos em todo planeta; ampliação mundial do desemprego e das limitações de acesso a meios de sobrevivência; recorrentes problemas e desastres ambientais; enormes ondas migratórias.

Ao nível da ação política, todo esse processo ocorre paralelamente a uma expressiva retomada do espaço público por forças políticas de extrema direita, cuja compreensão e mesmo suas formas de denominação (extrema direita, populismo de extrema direita, neofascismo, fascismo do século XXI, etc.) são objetos de controvérsias nas ciências sociais e históricas.

As formas diferenciadas de enfrentamento da pandemia pelos governos nacionais é outro importante elemento da atualidade. Negacionismos vindos de governos considerados de direita (Donald Trump, nos EUA, e Jair Bolsonaro, no Brasil, por exemplo) ou de esquerda (Lopez Obrador, no México), adoção mais ou menos rápidas de medidas preventivas, capacidades diferenciadas dos sistemas nacionais de saúde, medidas econômicas adotadas ou não para proteção de cidadãos e negócios… tudo isso tem apontado para um debate público cada vez mais intenso sobre formas de governo, formas de organização social, mecanismos de controle da economia, formas de sociabilidade, enfim, Estado, mercado e alternativas autonomistas de caráter comunitário são temas que voltam ao centro das discussões públicas.

O resultado disso tudo é imprevisível. Uma leitura acurada dos efeitos das últimas grandes crises econômicas e políticas mundiais aponta para a aceleração da ampliação de poder político e econômico por grandes corporações, bancos e outras instituições financeiras que vêm ampliando enormemente sua capacidade de intervenção nas realidades regionais, nacionais e locais. É possível que esse processo continue comprometendo cada vez mais as relações democráticas nas várias sociedades ao redor do planeta. Um elemento importante da pandemia é a possibilidade de aprofundamento das experiências de controle social. Por outro lado, a explicitação dos processos de ampliação da concentração de riquezas e de poder político e econômico têm gerado reflexões críticas na academia e possibilitado a rearticulação e novas articulações de movimentos sociais e populares os mais variados, muitas vezes a partir de pautas locais, mas que têm buscado ampliar seu alcance local, nacional e internacionalmente. Concentração de poder econômico e político sendo confrontada por movimentos com pautas de garantia ou ampliação de conquistas democráticas aponta para maiores indefinições quanto ao futuro.

Como campo específico do conhecimento acadêmico, a sociologia se constituiu em momentos de crises, em grande medida associadas a períodos de predomínio do liberalismo enquanto orientação política e econômica. Autores e autoras considerados clássicos da sociologia, desafiados pelos aspectos inesperados da realidade, buscaram ir além dos modos dominantes de análise dos processos que os cercavam. Estamos, hoje, diante de desafios que possuem características semelhantes. Nossos referenciais teóricos, tanto os clássicos como aqueles que foram sendo constituídos posteriormente, nos forneceram ferramentas para a leitura das novas realidades, porém marcados pelos limites de seu tempo. Utilizar e testar essas ferramentas nesse momento de crise aprofundada é razoável, especialmente aquelas constituídas na busca de compreensão crítica das realidades, pois tomam a crise como elemento importante. Mas, como no tempo em que foram fundadas as ciências sociais, novos desafios se apresentam a partir dessa combinação de pandemia e crise econômica, política e social. A constituição de novos instrumentos de informação, análise e interpretação, assim, tem se tornado uma exigência e um desafio.

A crise sanitária associada ao aprofundamento da crise econômica tem provocado uma profusão de reflexões mais ou menos apresadas, mais ou menos aprofundadas, mas que buscam estabelecer compreensões sobre os novos desafios que se apresentam globalmente e às realidades locais. No Brasil, tem sido muito interessante a difusão de textos de cientistas sociais, por exemplo, através do Boletim Cientistas Sociais e o Coronavírus, uma iniciativa conjunta de ANPOCS, ACSRM, ABCP, ABA, SBS, SBPC-CS; do site A terra é redonda; do blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS), especialmente através do Simpósio Mundo Social e Pandemia.

Sem tomarem como objeto a pandemia, por ser anteriores a ela, alguns livros podem nos ajudar a compreender melhor a crise econômica e política que estamos enfrentando e a construir bases teóricas para pensar seus últimos desdobramentos associados à crise sanitária. Cito como exemplos: 17 contradições e o fim do capitalismo, de David Harvey; América latina y el capitalismo global: una perspectiva crítica de la globalización e Una teoría sobre el capitalismo global: producción, clase y Estado em un mundo trasnacional de William I. Robinson (traduções para o espanhol de originais em inglês); Expulsions: Brutality and Complexity in the Global Economy e Sociologia da globalização, de Saskia Sassen. Para ajudar a repensar os desafios para a produção acadêmica nas ciências sociais, cito o livro Impensar a Ciência Social: os limites dos paradigmas do século XIX, de Immanuel Wallerstein.

Minha área principal de pesquisa nos últimos 20 anos tem sido a Sociologia Ambiental e, portanto, a relação entre sociedade e natureza. Nessa relação, os estudos realizados no âmbito do Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente da Universidade Federal do Maranhão (GEDMMA/UFMA), tomam com temáticas prioritárias conflitos ambientais, (in)justiça ambiental e racismo ambiental. Dois desafios têm aparecido com força nos últimos tempos para a Sociologia Ambiental. O primeiro é contradição cada vez mais conhecida entre crescimento econômico e conservação ambiental, que nos remete à discussão sobre a crise contemporânea do sistema capitalista. Mais recentemente e associado ao anterior, o segundo desafio é o debate sobre a relação entre degradação ambiental e o surgimento de novas doenças, em especial, a pandemia provocada pela difusão planetária da Covid-19. Muitos pesquisadores têm procurado estabelecer relações de causa e efeito entre ambos e esse debate tem ocupado espaço nas pesquisas acadêmicas e obtido muita repercussão midiática.

Entremeando as discussões sobre as relações entre conservação ambiental, crescimento econômico e difusão de novas doenças, o debate sobre conflitos ambientais, traz à tona, por um lado, as desigualdades nas capacidades de intervenção na natureza por parte dos vários grupos e organizações sociais e, por outro, as desigualdades no sofrimento e enfrentamento dos efeitos ambientais dessas intervenções, ressaltando a luta de povos e comunidades tradicionais ao redor do mundo por associar a defesa de seus territórios à conservação da natureza, fundamental para manutenção de seus modos de vida.

Esse debate vem produzindo importantes aportes para se pensar a desigualdade social que tem marcado os efeitos da difusão da Covid-19 pelo mundo, como tem sido destacado no noticiário mundial e nos relatórios de inúmeras instâncias nacionais e internacionais de intervenção sanitária e de pesquisa. Apesar de aparentemente ameaçar a todos por igual, como supõe parte significativa das teorias sociológicas do risco, tanto as consequências ambientais do crescimento econômico orientado pelo princípio capitalista do lucro quanto a difusão da pandemia afetam muito mais intensamente grupos étnicos vulneráveis (pretos, migrantes, indígenas, quilombolas), moradores de periferias urbanas, mulheres (inclusive devido à ampliação da carga de trabalho em situações de isolamento), trabalhadores urbanos e rurais, povos e comunidades tradicionais.

O acúmulo de pesquisas que tem sido feito, principalmente a partir do final do século XX sobre conflitos ambientais, (in)justiça ambiental e racismo ambiental pode fornecer inúmeros instrumentos para ampliar a compreensão das dimensões sociais da pandemia. As rápidas reflexões aqui apresentadas, longe de serem conclusivas, podem ser vistas como uma espécie de roteiro para aprofundamentos posteriores. A cada dia que passa o debate sobre a relação entre pandemia de Covid-19, crises econômicas e políticas e questões ambientais tende a se ampliar e a incorporar novos elementos, num tempo que, como já advertia Walter Benjamin em meados do século XX, se acelera rapidamente.

 

Nota

[i] Professor Titular do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Autor de Florestania: a saga acreana e os Povos da Floresta e organizador (em colaboração), entre outros, de Territórios, Mobilizações e conservação socioambiental.

 

 

Referência da imagem:
Pergamon World Atlas. Pergamon Press, Ltd. & P.W.N. Poland 1967. Sluzba Topograficzna W.P. Pertencente à base de dados The David Rumsey Map Collection. Pode ser acessado aqui.

 

 

* Os textos publicados pelos colaboradores não refletem as posições da BVPS.

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