
O Blog da BVPS publica hoje texto inédito em português do romancista, crítico literário e ensaísta Silviano Santiago. Essa é a segunda parte de nossa série especial sobre o Glossário de Derrida, que ganhou uma nova edição em 2020 pela editora Papéis Selvagens. Para ler o Simpósio sobre o livro, publicado na terça-feira, basta clicar aqui.
No ensaio que segue Silviano Santiago discute, a partir do relato de seu primeiro encontro com Derrida nos Estados Unidos, em 1971, as possibilidade abertas por uma leitura da obra do filósofo franco-argelino a partir da América Latina. Questões como a crítica ao etnocentrismo, a diferença colonial e o problema da identidade ganham uma nova perspectiva quando interpeladas à luz dos impasses latino-americanos, ao mesmo tempo em que a obra de Derrida nos ajuda a imaginar o próprio (entre-) lugar do intelectual em contextos pós-coloniais.
“A terceira margem proposta pelos escritos de Jacques Derrida” foi lido em francês no Colóquio internacional “Sur les traces de Jacques Derrida”, realizado em Argel nos dias 25 e 26 de novembro de 2006 a convite da Biblioteca Nacional da Argélia. Dois anos depois, em 2008, os trabalhos apresentados seriam publicados no livro Derrida à Alger – Un regard sur le monde, organizado por Jean-Luc Nancy. Agradecemos ao autor por ceder o texto para a publicação no Blog da BVPS. As imagens que acompanham o post são da artista Lena Bergstein, a quem também agradecemos. A tradução é de Cláudia Matos.
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Boa leitura!
A terceira margem proposta pelos escritos de Jacques Derrida
por Silviano Santiago
[…] e se a Europa não estivesse ali onde os Europeus-europeus a situam?
Abdesselam Cheddadi, “Europe/non-Europe: à propos de ‘L’Autre cap’ de Jacques Derrida”.
Por que um intelectual brasileiro deve ler Jacques Derrida? Ou, de maneira mais geral: por que um intelectual latino-americano deve lê-lo?
Começo a responder a essa questão dando a mim mesmo como exemplo. Conheci Jacques Derrida em 1971. Na época, ele era mestre-conferencista na Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, e eu era professor de literatura na Universidade de Buffalo. Fui a Baltimore na qualidade de editor de um número especial da revista Modern Languages Notes, consagrado em grande parte ao semiólogo A. J. Greimas e seus discípulos. Derrida recebeu-nos, Eugenio Donato, Dick Macksey e eu, na companhia de sua mulher. Eu já tinha lido seus primeiros livros; os mais literários, aliás. Os que patenteavam uma metodologia de leitura crítica do estruturalismo francês, como L’écriture et la différence (Seuil, 1967) e De la grammatologie (Minuit, 1967).
Em certo momento da conversa, o jovem filósofo demonstrou viva curiosidade acerca de meu olhar de leitor brasileiro. Hoje, tenho a impressão de que naquela época – embora Derrida estivesse muito interessado num dos mais importantes livros escritos sobre a diferença colonial enquanto força viva na cultura brasileira, Tristes trópicos, de Claude Lévi-Strauss – nenhum dos vários estudantes brasileiros em Paris mostrara ainda interesse pelas obras do caçula dos estruturalistas. Na cena universitária parisiense, os mais velhos, Roland Barthes, Michel Foucault, Jacques Lacan e Lévi-Strauss, atraíam todo o interesse de meus compatriotas.
Sob o pretexto de responder a uma pergunta que, na verdade, Derrida não tinha formulado, eu lhe disse que havia um aspecto menos estudado de seu pensamento que me seduzia enormemente; e que, de certo modo, esse aspecto era a principal razão de meu vivo interesse por seus escritos. Em sua crítica do estruturalismo formalista (assim caracterizado porque excluía de suas análises a força de que fala Nietzsche), em sua leitura crítica dos escritos de Jean Rousset (“Forme et signification”), Michel Foucault (“Cogito et histoire de la folie”) e Claude Lévi-Strauss (“La structure, le signe et le jeu dans le discours des sciences humaines”) e na segunda parte de De la grammatologie, percebia eu um desejo de tornar pública uma ideia cujo principal interesse não era a desconstrução do fono- e do logocentrismo, e sim do etnocentrismo. A desconstrução deste último apresentava-se como extremamente importante para a discussão de um tema que sempre me seduziu enquanto cidadão brasileiro – a diferença colonial.
Será por acaso que Jacques Derrida é o primeiro grande filósofo contemporâneo francês, ou mesmo argelino-francês, que coloca em termos políticos a questão da Europa metropolitana e de seu outro colonial? Por que o filósofo não pode, não quer eludir a questão da hegemonia ocidental no mundo desde as grandes descobertas marítimas? Por que insiste nos absurdos do colonialismo e na razão da descolonização? Não é fascinante que ele aborde o tema das grandes descobertas marítimas europeias pelo viés excêntrico da etnologia lévi-straussiana – e não pelo viés da história eurocêntrica dita universal? A proposta de uma via filosófica que liga a desconstrução da metafísica ocidental à etnologia de Lévi-Strauss e aos escritos de seu predecessor, Jean-Jacques Rousseau, não é mero acidente de percurso. Esse ponto de partida vincula-se à teoria que o autor nos propõe sobre o descentramento operado na história da metafísica graças à análise de sua escrita.
Em “Force et signification”, relato publicado originalmente em 1963, hoje um dos capítulos de L’écriture et la différence, Derrida já fala do espanto diante da “linguagem como origem da história”, espanto que, por sua vez, está na matriz de uma espécie de surpresa “que abalou o que se chama de pensamento ocidental, esse pensamento cujo destino consiste basicamente em estender seu reino à medida em que o Ocidente retrai o dele”. Trinta anos depois, em 1994, em L’autre cap, a separação entre a cultura ocidental que pretende servir de modelo à mundialização e o Ocidente que vê sua hegemonia por toda a parte contestada toma a forma de uma pergunta inquietante : qual é o papel (histórico, social, econômico) da Europa num mundo que se torna cada vez mais americano e não-americano ? A questão permite-lhe apresentar uma reflexão original sobre o papel identitário da Europa. Escreverá ele, em mão dupla, que “o próprio de uma cultura é não ser idêntica a si mesma”. Completa em si, mas fustigada pelos movimentos de descolonização que, desde o século XVIII, a bombardeiam na perspectiva do continente americano, a Europa procura assimilar as revoltas de seu outro, sempre desencorajadas e ao mesmo tempo encorajadas por ela própria.
Em 1971, graças à leitura de seus primeiros e definitivos livros, pude reproduzir para Jacques Derrida seus próprios argumentos sobre o questionamento do etnocentrismo, e repeti-os com entusiasmo. Agora, procuro em seus escritos as mesmas passagens, a fim de citá-las aqui, em consideração aos leitores.
É preciso assinalar de saída que, na reflexão gramatológica de Jacques Derrida, a etnologia ocupa um lugar privilegiado no interior das ciências humanas. Esse lugar foi conquistado por meio de um duplo movimento contraditório de que fala Lévi-Strauss no capítulo “Um copinho de rum”, de Tristes trópicos. Citemos: “como o etnógrafo pode resolver a contradição que resulta das circunstâncias de sua escolha? Ele tem sob os olhos, à sua disposição, uma sociedade: a sua; por que é que decide desdenhá-la e reservar a outras sociedades – escolhidas entre as mais distantes e mais diferentes – uma paciência e uma devoção que sua determinação recusa aos próprios concidadãos?” Lévi-Strauss não se deixa enganar pela tensão esquizofrênica que afeta o etnólogo e está na origem da experiência de double bind, duplo vínculo, que serve de fundamento psicológico e político a quem, pertencendo por direito ou formação à cultura ocidental, entrega-se ao trabalho de desconstruir o etnocentrismo.
Eis como Lévi-Strauss caracteriza o etnógrafo: “Frequentemente subversivo em seu próprio meio e rebelde aos costumes tradicionais, o etnógrafo mostra-se respeitoso até o conservadorismo, quando a sociedade em foco é diferente da sua.” Daí um sério perigo, imediatamente apontado pelo autor. A maioria dos etnógrafos são “conformistas”, e são assim, aliás, de um modo derivado, isto é, “em virtude de uma espécie de assimilação secundária de sua própria sociedade àquelas que estão estudando”. O autor de Tristes trópicos conclui com uma frase lapidar, apurando a crítica do imobilismo político-social que pode esconder-se, contraditoriamente, sob o questionamento do etnocentrismo: “Atuando em casa, privamo-nos de compreender o resto, mas, querendo compreender tudo, renunciamos a modificar seja o que for.”
O advento da etnologia no seio da cultura europeia é pois tardio e apenas foi possível no momento em que um descentramento, cuja importância é acentuada por Derrida, pode ser operado: “no momento em que a cultura europeia – e por conseguinte a história da metafísica e de seus conceitos – foi deslocada, expulsa de seu lugar, deixando de ser considerada como cultura de referência” (A escritura e a diferença). A perda da condição de “cultura de referência” por parte da Europa torna-se uma ferramenta teórica a ser utilizada por Derrida – e, naturalmente, por seus leitores sensíveis às questões pós-coloniais – para apresentar uma equivalência temporal. Escreve ele que “a crítica do etnocentrismo, condição da etnologia, [é] sistemática e historicamente contemporânea da destruição da história da metafísica”.
A importância de tal equivalência será cada vez maior para os estudos acerca do pós-colonialismo na América Latina e nas antigas colônias europeias e servirá de base às propostas do multiculturalismo enunciadas pelos pós-modernistas. A desconstrução em termos derridianos confunde-se pois com um trabalho de solicitação (de sollus + citare, abalar o todo) tanto da história da metafísica quanto da história da cultura europeia como fatores de homogeneização do mundo. A pretensa unidade do planeta tendo como única referência a cultura europeia fora afirmada pela imposição autoritária dos valores étnicos (o homem branco), linguísticos (as línguas nacionais da Europa), econômicos (a burguesia mercantilista) e religiosos (o cristianismo) ao Outro. O código linguístico e o código religioso – dirá Derrida em Da gramatologia – “têm o mesmo lugar e o mesmo tempo de nascimento. A época do signo é essencialmente teológica. Ela talvez jamais tenha fim. Entretanto seu fechamento histórico está desenhado”.
Era preciso abalar essa quádrupla herança – étnica, linguística, econômica e religiosa – pelo efeito de fechamento. Este é desenhado a partir do abalo da estrutura etnocêntrica que sustentava, como um todo, o edifício do colonialismo. Em outro texto do mesmo período, diz Derrida: “pode-se então ameaçar metodicamente a estrutura para melhor percebê-la, não somente em suas nervuras mas naquele lugar secreto onde ela não é nem ereção nem ruína, mas labilidade.” Nem ereção nem ruína, mas labilidade – eis a condição da cultura europeia quando seu centro é ameaçado pela etnologia, ou mesmo pela desconstrução derridiana.
Nos fundamentos precários dos primeiros escritos de Derrida, a labilidade já tem o peso e a função do indecidível. Esta palavra assinala um lugar silencioso e ainda secreto na linguagem e no discurso das ciências humanas, um espaço lábil criado pelas partículas disjuntivas nem [ereção] nem [ruína], cuja abertura apresenta-se como uma terceira margem teórica ameaçadora e escandalosa, na qual se manifestará a possibilidade de um jogo de recomposição suplementar das ciências humanas no quadro da desconstrução. No discurso de Jacques Derrida, essa terceira margem tem a função de criar uma cena cosmopolita onde o personagem do etnólogo recebe os companheiros das ciências humanas para encetar com eles um diálogo. Um diálogo dramático, na medida em que o etnólogo se torna porta-voz dos responsáveis pelas culturas que foram destruídas ou aniquiladas pela colonização europeia. Ele deve enunciar, ele já enunciou juízos disjuntivos sobre o próprio da cultura europeia. No momento em que a cultura europeia perde sua condição de referência universal, ela aceita a contribuição subversiva e suplementar das culturas de seu Outro colonial.
Pelo viés do trabalho dos etnólogos, a cultura europeia reconhece a contribuição não-etnocêntrica das culturas ainda vivas, que o etnocentrismo colonizador tinha desmantelado, reduzindo-as a quase nada no processo de homogeneização do planeta. O próprio da cultura europeia, assim como o das culturas não-europeias, torna-se diferença [différence]. A différance – sob a forma concreta dos indecidíveis que a constituem, trabalha campos semânticos descolonizados, nos quais se revela a importância primordial da desconstrução. Jacques Derrida escreve que o etnólogo “acolhe em seu discurso as premissas do etnocentrismo ao mesmo passo em que o denuncia”. Em outras palavras: “Trata-se de colocar expressa e sistematicamente o problema do estatuto de um discurso que colhe numa dada herança os recursos necessários à desconstrução dessa mesma herança”. Mostra-se indispensável a distinção feita por Derrida entre o método como instrumento e o valor de verdade. O etnólogo caracteriza-se pelo fato de conservar como instrumento de trabalho aquilo cujo valor de verdade critica.
Dando-nos como modelo a etnologia e sua situação ambígua, apresentando-a como produtora de indecidíveis no seio das ciências humanas europeias, apresentando-nos o etnólogo como herói contestatário em interlocução com o filósofo centrado na história da metafísica ocidental, Derrida cria, ao mesmo tempo, a possibilidade de pensar o estatuto do intelectual brasileiro ou latino-americano. Este é a uma só vez europeu (por sua formação, que é apropriação do universal) e não-europeu (por sua identidade, que é apropriação do nacional). O autor escreverá em L’autre cap: “nem o monopólio nem a dispersão”. Abdesselam Cheddadi comenta a expressão disjuntiva: “nem a centralidade hegemônica nem a explosão em particularismos múltiplos e irredutíveis”. O efeito de separação (ou de afastamento) pelas conjunções disjuntivas serve a uma estratégia da différance que reúne os elementos separados (ou provisoriamente afastados), confundindo-os num terreno gramatológico povoado pela invenção de um mundo mais humano e mais justo, e também mais democrático. Fica evidente que o axioma inicial de Derrida sobre o próprio da cultura europeia torna-se válido também para a cultura brasileira ou latino-americana: “o próprio de [sua] cultura é não ser idêntica a si mesma”.
De maneira oblíqua, Jacques Derrida ajuda-nos a constituir uma terceira margem universal sob a forma de um entre-lugar. Aí estão em jogo forças contraditórias e suplementares de uma “identidade” que não é necessariamente fragmentária e múltipla, mas que tampouco é pura explosão, uma “identidade” que é diferença. A economia interna da “identidade” já não serve para recolocar o problema dos créditos metropolitanos e do superendividamento colonial, mas deve apoiar-se no trabalho de desconstrução que um dos parceiros, que os dois parceiros, que todos inventam juntos nas margens do fechamento da metafísica ocidental e de todas as formas de colonialismo. No espaço das margens desenrolam-se os efeitos suplementares ocasionados pelas culturas não-europeias que escaparam há tempos ao processo de homogeneização ocidental e ainda hoje lhe escapam.
