Simpósio | 22: Projetos para o Brasil (II)

O Blog da BVPS publica hoje o segundo post do simpósio 22: Projetos para o Brasil, uma parceria com o GT de Pensamento Social no Brasil da Anpocs e o Suplemento Pernambuco. Às vésperas do bicentenário da Independência política do Brasil e do centenário da Semana de Arte Moderna de São Paulo procuramos sugerir reflexões, a partir dos desafios do presente, sobre esses dois eventos/processos que marcam a história política e cultural do país.

Enviamos 4 perguntas propondo relações sobre os temas centrais do ano que vem a profissionais de diferentes áreas, regiões do país e instituições. As 28 respostas recebidas – de um conjunto maior de convites realizados – estão sendo publicadas em 4 grupos durante esta semana, até sexta-feira. A organização é de Andre Bittencourt (Blog da BVPS), Maurício Hoelz (GT de Pensamento Social da Anpocs) e Schneider Carpeggiani (Suplemento Pernambuco)

Para ler a apresentação geral escrita pelos coordenadores do simpósio e o primeiro post de respostas basta clicar aqui e aqui.  Para acompanhar as atualizações do Blog, siga nossas páginas no Instagram e no Facebook.

Hoje teremos como convidadas/os:

Isabel Lustosa, pesquisadora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, FCSH, Universidade NOVA de Lisboa. Autora, entre outros, de O jornalista que imaginou o Brasil: tempo, vida e pensamento de Hipólito da Costa (2019).

Dominichi Miranda de Sá, pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz (Fiocruz). Autora, entre outros, de Diário da Pandemia: o olhar dos historiadores (Org.) (2020). 

José Vicente Tavares dos Santos, professor titular de sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Autor, entre outros, de O Romance da Violência: sociologia das metamorfoses do romance policial (2020). 

Marcos Costa Lima, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Foi presidente da ANPOCS (2011-2012). Autor, entre outros, de Sobre a China (2018)

André Capilé, poeta, professor e tradutor. É doutor em Literatura, Cultura & Contemporaneidade pela PUC-Rio. Autor, entre outros, de Azagaia (2021)

Guilherme Gontijo Flores, poeta, tradutor e professor de latim na Universidade Federal do Paraná. Autor, entre outros, de Todos os nomes que talvez tivéssemos (2020).

Fernando Santoro, professor de filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Autor, entre outros, de Dicionário dos Intraduzíveis (2018).

Paulo Maciel, professor do Departamento de Artes Cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Autor, entre outros, de “As escritas de Orfeu e a opereta no Brasil do Segundo Reinado” (2013).


1. Em 2022 completa-se o bicentenário da Independência brasileira e o centenário da Semana de Arte Moderna, marco simbólico do modernismo. Como você relacionaria esses dois eventos/processos?

Isabel Lustosa: Creio que são eventos incomparáveis, no sentido de que não dá para estabelecer uma relação entre os dois a não ser do ponto de vista comemorativo que fez coincidir as datas. Aí talvez eles sirvam como inspiração para entender mudanças de longa duração em duzentos anos de história brasileira. 

A Independência do Brasil se inscreve em um contexto internacional de revoluções constitucionais que agitaram a Europa e as Américas no começo do século XIX, na sequência da Independência dos Estados Unidos, da Revolução Francesa e do período napoleônico. Seu processo envolveu interesses políticos, econômicos e sociais e teve também impacto cultural. 

Liberais de um lado e de outro do Atlântico queriam a adoção de um modelo político liberal, no entanto, do ponto de vista econômico e social, seus interesses eram antagônicos e esse antagonismo levou ao rompimento. 

No âmbito dos debates que marcaram o processo da Independência, emergiu uma disputa identitária, digamos assim, entre portugueses e brasileiros. Se, até então, éramos todos portugueses, os insultos trocados de parte a parte fizeram realçar as diferenças e, em torno delas, é que se foi configurando, desde então, uma identidade brasileira em contraste com a do antigo colonizador. Essa identidade reunia elementos raciais, assumimo-nos como índios, mestiços e terra marcada pela forte presença africana; territoriais, a vastidão continental do Brasil; as chamadas riquezas naturais e as diferenças culturais, pois já se fazia distinção entre os modos de falar português na América e na Europa. 

Talvez, neste aspecto, nessa busca de distinção do que era o Brasil e do que era ser brasileiro, se encontre o ponto de contato entre esses dois momentos. A Semana de Arte Moderna, repudiando manifestações das artes que mimetizavam os modelos europeus, resultou também em uma busca por uma definição do que fazia do Brasil, o Brasil. Do momento em que irrompeu em diante, por meio de jovens escritores e artistas que procuravam formas de manifestação que fugissem às tradições e representassem algo de novo e especificamente brasileiro, a Semana acabou impulsionando a onda cultural que envolveu elementos de várias linhas de ação: literatura, música, teatro, artes plásticas e até mesmo a emergência de um pensamento social motivado por essa mesma busca de Brasil. A marca da semana aparece em obras dos anos 30: Casa Grande e Senzala, Raízes do Brasil e Bandeirantes e Pioneiros. Obras que, ao longo de décadas e de forma indireta pela vulgarização de ideias mais elaboradas em manifestações jornalísticas e artísticas, acabaram por configurar uma maneira de ver o Brasil que persiste até hoje. 

Dominichi Sá: Ambos são referências cruciais para o exame dos elementos políticos e culturais de formação do Brasil como país, de seu lugar no mundo e de projetos de futuro. Para além dos eventos em si, os contextos de 1822 e 1922 eram de muita efervescência política e social e de grande debate intelectual sobre a constituição do Estado brasileiro, a identidade nacional, visões de cidadania e das populações do país, a necessidade de políticas públicas de saúde e educação, a importância de universidades, e a convivência entre o atraso e a modernidade, entre muitos outros temas. Devemos ter em mente que outros projetos de país estavam em disputa nessas ocasiões e que as efemérides mencionadas são a expressão da hegemonia de certos projetos em detrimento de muitos outros. Por isso, penso que a ocasião é muito importante para cientistas sociais e historiadores recuperarem o universo histórico de disputas de modo a dar visibilidade também à polifonia do contexto atual. Há muitos Brasis em disputa hoje. Nem 1822 nem 1922 estiveram orientados exclusivamente pela simbologia positiva do passado nacional, mas sim e especialmente para a definição de rumos futuros. Por que 2022 seria ocasião de “celebrar o passado”? É, portanto, mais uma vez oportunidade de refletir sobre nosso destino como país.

José Vicente Tavares dos Santos:  Poderíamos refletir acerca da formação da sociedade e da literatura. A Independência significou o início da construção do Estado- Nação, com todas as contradições entre a esfera política e a esfera social, somente a ser superadas com a Abolição da Escravatura e a República, ainda que os avatares do racismo persistam até hoje. O Modernismo implicou uma florescência da cultura brasileira, em seus sucessivos momentos, implicando uma descentralização e uma universalização da produção literária, impressionante na América Latina. Ambos significam o processo de construção da Nação e da Cultura, ainda em curso.

Marcos Costa Lima: Em primeiro lugar afirmo que não sou um historiador e muito menos um conhecedor do processo brasileiro no período que vai da vinda da Corte Portuguesa, os Bragança, fugindo à guerra Napoleônica para se instalar no Rio de Janeiro, até a proclamação da Independência do Brasil em 1822, por D. Pedro, e sua renúncia em 1831 com a posterior posse de D. Pedro II como imperador do Brasil. Há historiadores altamente qualificados como Leslie Bethel e José Murilo de Carvalho que não apenas conhecem em detalhes o período, mas podem dar um panorama muito mais próximo ao que de fato ocorreu no Brasil, um país que contava com aproximadamente 4 milhões de habitantes, quando da chegada da Corte  e  em 1822, somava em  torno de 4,6 milhões de habitantes. Em 1872, portanto 50 anos depois, o nosso país já mais que dobrava sua população, subindo para 9,9 milhões, quando foi realizado o primeiro censo demográfico do Brasil.

De todo modo, há um sentimento generalizado entre os brasileiros, de que a independência foi um processo que se deu entre elites, e de que a rua quase fica de fora. Sabemos por efeito comparativo que a independência norte-americana foi feita durante uma guerra que durou oito anos (1775-1783), e na qual estima-se a morte de cerca de 25.000 homens. Uma guerra que chegou a envolver fortemente a França. Na independência brasileira, tivemos que pagar a Portugal uma indenização de 2 milhões de libras esterlinas, recursos emprestados pelos ingleses. Ou seja, foi um processo eminentemente diplomático, envolvendo uma triangulação entre Portugal, Inglaterra e Brasil, com a Inglaterra fazendo a mediação entre brasileiros e portugueses. A Inglaterra, berço do capitalismo, que tinha no Brasil um de seus grandes mercados e já buscando a liberação dos escravos, o que não interessava aos grandes senhores das lavouras.

O país, em que pese a centralização monárquica, era uma totalidade frágil, fragmentada, quando em Pernambuco   as demonstrações de insatisfação aconteceram por meio da Revolução Pernambucana de 1817. A mudança da família real para o Brasil havia resultado em grande aumento de impostos e interferido diretamente na administração da capitania. Disto decorre a chamada Tríade Revolucionária em Pernambuco, que além de 1817, se levantou em 1824, com a Confederação do Equador e em 1848, com a Praieira, movimentos que lutavam pela emancipação, estimulados pelas ideias iluministas.

Relacionar este processo de Independência do País, com tantas repercussões futuras com a Semana de Arte Moderna de 1922, não é nada simples.  De todo modo são rupturas no seu processo histórico. Aqui, a reunião de artistas, pintores, músicos, escritores, representava o desejo de mudança, de sair do Parnasianismo, escola importada da Europa, muito distante e impermeável às mudanças que se passavam no mundo a partir da aceleração da revolução industrial O surgimento da classe operária, (inclusive da criação do Partido Comunista Brasileiro, em 1922), da luz elétrica, dos automóveis e fábricas, alteram profundamente a sociedade, mesmo nos trópicos.

Segundo certos autores, 1922 celebrava também cem anos da Independência e  foi um dos motes da Semana:  atualizar intelectualmente a consciência nacional, mas sobretudo de parte das elites. O Brasil, que se transformava e se modernizava, precisava de um novo olhar artístico, na arquitetura, na literatura, na música, que propusesse uma arte nacional original e atualizada, trazendo consigo um pensamento a respeito dos problemas brasileiros e da variedade cultural que se estendia por nosso vasto território.

André Capillé & Guilherme Gontijo Flores: A observação dos eventos, em suas modalidades processuais, causa interesse no corpo presente de suas contradições internas, de função, e externas, no que tange sua construção às vistas internacionais. Se nossa Declaração de Independência se dá, de algum modo, com publicidade de uma ação que se realiza algo escamoteada, só vai se realizar como fato em 1825, mediante uma compra vergonhosa, em que o Brasil assume as dívidas de Portugal com a Inglaterra, além de resoluções financeiras em modo de multa.

A Semana de 1922, apesar de construída em nosso imaginário como memória de ruptura, resulta, por sua vez, como um gesto local, patrocinado por elites cafeeiras e, até, conservadoras. Ou seja, o que se realiza, mesmo, atua como mediação cultural, imitando a superfície do épater le bourgeois que imperava na Europa. Apesar de avanços, inclusive em campos teóricos, como a Antropofagia, ainda é resultado de uma relação subordinativa com o pensamento euro-ocidental.

Fernando Santoro: A Independência Brasileira da Coroa Portuguesa traz à história do Brasil uma ideia controversa e singular de independência, a qual paradoxalmente é muito a cara do país. Quando o herdeiro do trono da metrópole prefere se tornar o imperador da colônia e assim torná-la independente, menos do que a independência de um país, vê-se quase um grito de independência familiar. Assim, na rebeldia adolescente do “Fico!”, o Brasil deixa seu pacto colonial para entrar sem mais amarras na era da dependência econômica imperialista, em que o centro deslocou-se para a Inglaterra, outra metrópole europeia. Foi que não foi, acabou ficando o que já era; como isso é a nossa cara! A Semana de Arte Moderna, nas comemorações do centenário da Independência, vem por meio das artes celebrar de modo crítico aquela independência fajuta, que não livrou Pindorama das formas de poder, de economia e de cultura. E se o grito de independência às margens do Ipiranga fosse trocado pela deglutição do Bispo Sardinha nas praias da Bahia? A Semana de Arte Moderna vem propor outra ideia de país e de nação, cuja independência no plano da Constituição, seja ela monarquista ou republicana, deveria buscar as matrizes culturais dos povos originários da terra, assim como aquelas das culturas e povos que nela aportaram e foram incrementando o grande caldeirão do banquete antropofágico. Mas o ideário da Semana de Arte não se desprendia tanto assim da última moda das vanguardas europeias, tanto que se propunha a ser… Moderna.

Paulo Maciel: Vou responder à pergunta retomando a relação da Semana com a comemoração dos cem anos da Independência em 1922, a partir da perspectiva de Carlos Eduardo Ornellas Berriel sobre a montagem de “O contratador de diamantes” (devo essa indicação ao André Botelho, os desdobramentos são de minha responsabilidade) no Teatro Municipal de São Paulo, em 1919, um dos capítulos de Tietê, Tejo, Sena: a obra de Paulo Prado (1994). O autor salientou que a escolha deste texto representado no Teatro Municipal no mesmo momento que a instituição, também, abrigava uma exposição de pinturas e esculturas francesas, transitaria da arte para a função política, sendo um indicativo de “traços ainda imaturos do Modernismo em gestação”.

O espetáculo apresentado em 1919 reuniu os grandes membros das famílias quatrocentonas paulistas que assumiram, em conjunto, a responsabilidade não apenas pelo apoio e o patrocínio, mas também pela representação. A peça se baseia em episódio tido como verídico da vida de Felisberto Caldeira Brandt no século XVIII e centra atenção do drama no acordo que se mostrou desastroso para nosso herói. Segundo a leitura de Berriel, no espetáculo, a oligarquia do café proclamava sua primazia “sobre todas as substâncias materiais e espirituais do país”, “eram eles os fundadores da pátria, e os responsáveis pela existência da nação” que, desde de outrora, lutaram “pela independência e pela insubmissão nacional”.

Teríamos como principais ingredientes: a cultura popular aproveitada num contexto erudito, conforme sugere a síntese forjada pela elite tradicional paulista que, de acordo com o argumento da peça, estaria à frente da Independência liderando o ideal pátrio segundo os termos “nativistas” da peça. Neste sentido acena para a futura viagem redescoberta do barroco mineiro pelos paulistas. O empreendimento antecipava os valores bandeirantes das comemorações que se sucederiam em São Paulo em torno dos cem anos da Independência em 1922.

No final da década de 1910, o teatro brasileiro levou à cena um imaginário bucólico voltado à retórica da identidade primitiva do país como estando depositada no interior e ou no campo recuperando, muitas vezes, formas tradicionais da cultura popular em função dessa ideologia conversadora. O drama histórico de Afonso Arinos não fugia à regra de seu tempo; entretanto, espetáculos que apresentavam danças ou manifestações populares não costumavam ter espaço nos teatros municipais.

O congado arrancado de seu contexto era resinificado em contato com a cultura erudita evidenciando, assim, a síntese das “substâncias materiais e espirituais do país” de acordo com pacto “nativista” proposto entre elite e povo em torno da “insubmissão nacional”.  Projetando o espetáculo e o evento teatral no contexto da Semana de 22 podemos partir deste cenário preparatório dos cem anos da Independência inscrevendo, em sua comemoração, o futuro gesto crítico do movimento modernista em contraponto às realidades entrelaçadas no espetáculo do Municipal.

2. Quais realizações desses movimentos na política, na cultura e na sociedade brasileira devem ser comemoradas ou questionadas?

Isabel Lustosa: Na verdade, talvez seja o caso de se questionar o sentido das comemorações em geral. Elas acabam sempre contaminando com uma carga positiva a leitura que se faz dos acontecimentos do passado. No entanto, isto faz parte das tradições de todos os países e nós fomos criando as nossas que até sofreram alterações de datas ao longo do tempo, por circunstanciais preferências políticas ou culturais.  

O 7 de setembro, por exemplo, só se fixa como data comemorativa da Independência a partir de 1825, conforme os estudos de Maria de Lourdes Viana Lyra. Isto para dar a d. Pedro I o papel de ator central de todo o processo em que estiveram envolvidos muitos outros atores de um lado e do outro do Atlântico. E isto em si já embute uma questão, pois a decisão de d. Pedro ficar no Brasil a partir da pressão das elites do Rio, São Paulo e Minas, representou a implantação de um regime monárquico que, em contraste com a instabilidade das repúblicas americanas, depois das turbulências do Primeiro Reinado e da Regência, manteve o mesmo governante por mais de quarenta anos. Essa estabilidade institucional ajudou a consolidar a unidade territorial e cultural do país e a conquistar algum espaço no cenário internacional. De qualquer maneira, no início do século XIX, a tendência mundial era a da independência das colônias europeias na América e o Brasil talvez tenha sido o único caso em que uma re-união com Portugal foi temida durante muito tempo justamente por conta dessa ligação familiar próxima entre as duas monarquias.

Não se pode negar o papel modernizador da Semana de Arte Moderna na transformação da forma de fazer arte e literatura no Brasil. Do ponto de vista estético, essa modernização estava inserida em movimento internacional em que também se apelavam para a valorização das culturas ditas exóticas, reveladas pelos etnógrafos e do subconsciente, revelado por Freud. Do ponto de vista nacional, a elite passava a incorporar o que era até então rejeitado como elemento digno de compor uma alegoria de Brasil tal como as criadas por Debret no tempo da Independência. A valorização estética do que era considerado nacional acabaria por avançar na direção de um nacionalismo político radical inspirado em outras manifestações de nacionalismo europeias que tiveram consequências bem tenebrosas para o mundo. No entanto, há sempre que se comemorar a aceitação da diversidade racial do povo brasileiro que começa a ser reconhecida e valorizada naquele contexto.

Dominichi Sá: O ano de 1922, além de marcar a emergência do modernismo como movimento intelectual e artístico no Brasil, foi ocasião também de celebração do Centenário da Independência do Brasil. Uma grande exposição internacional foi montada no Rio de Janeiro, então Capital Federal, e durou de setembro de 1922 até abril do ano seguinte. A Exposição exaltava o passado do país como pacífico percurso em direção ao modelo da modernidade europeia e os progressos da ciência e da indústria no primeiro centenário da nação independente. Ocorria em meio à ascensão do movimento operário, de rebeliões militares, como o Tenentismo, da emergência de vanguardas estéticas e intelectuais e, sobretudo, de fortes divisões políticas entre as oligarquias nacionais. Todas essas crises e processos foram invisibilizados no Centenário da Independência. Insisto que este deve ser o nosso contra-modelo em 2022. 

Outros pontos importantes a serem fortemente problematizados em 2022 são a memória do 07 de setembro, ou a visão da Independência apenas a partir do grito do Ipiranga, como se tivesse havido um único momento fundacional do novo país; a perspectiva da mudança histórica conduzida, de modo pacífico, por heróis nacionais; e, sobretudo, a própria definição da nação como corpo político constituído por características unificadoras e homogêneas. O padrão da modernidade europeia, que orientou os projetos de modernização do país em 1922, também precisa ser questionado no atual cenário. O que, por exemplo, é o atraso brasileiro na atual conjuntura da crise climática? As sociedades indígenas ou o agronegócio industrializado com sua simplificação brutal de ecossistemas? Reforço que a visão crítica e a contextualização histórica desses processos devem orientar a atualização de nossa agenda de futuro como país.

José Vicente Tavares dos Santos: A preservação da unidade territorial, obtida ao final do Século XIX, é uma conquista importante para consolidar o Estado-Nação. A democracia representativa, com o voto das mulheres e, recentemente, dos analfabetos, abriu caminho para as experiências de democracia participativa, crescentemente em nível municipal. A formação e consolidação da literatura, agora policêntrica, superou o centralismo paulista, possibilitando perceber os traços do modernismo em autores de várias regiões brasileiras. Em outras palavras, democracia e literatura são realizações em curso.

Marcos Costa Lima: Foram muitas e poderíamos falar do próprio sentido de nação, e mesmo que sob forte dependência militar e financeira da Inglaterra. Mas também as disputas entre os portugueses e brasileiros, do partido brasileiro.  José Bonifácio então irá exercer seu papel na consolidação do império brasileiro. Podemos dizer, nos primeiros anos da independência, da formalização de nossa diplomacia. A princípio, com o futuro marquês de Barbacena, a quem José Bonifácio fez encarregado de negócios com a Europa, segundo Oliveira Lima (O movimento da independência (1821-1822) / Oliveira Lima). Mas também a própria figura de José Bonifácio, a demonstrar que as pessoas importam e no dizer de Oliveira Lima: “A fama de José Bonifácio como estadista tem contribuído para eclypsar sua fama como sabio, isto é, seu nome é hoje muito mais conhecido e reverenciado no Brazil pela sua intima associação com o movimento da independencia do que pelos seus commettimentos de investigador da natureza. Não se deve · comtudo esquecer que foi elle um homem de sciencia de reputação européa, e como tal vive nas páginas de rara belleza de estylo em que Latino Coelho traçou o perfil do seu predecessor como secretario perpetuo da Real Academia das Sciencias de Lisboa. Alli o vemos nos amphitheatros de Pariz e de Freiberg ouvindo os mais celebres professores do tempo; companheiro de Alexandre de Humboldt e sagrado mestre pelo biographo allemão do grande cosmographo; visitando minas e fazendo descobertas mineralogicas de que Le Play disse que mereciam estatuas; recebido no seio das mais respeitaveis associações e dos mais afamados institutos; consultado, disputado no estrangeiro, galardoado pelo governo portuguez com uma successão de mercês e de cargos”. (Oliveira Lima, op. Cit. P.178).

Lendo Oliveira Lima, ficamos convencidos nas idas e vindas diplomáticas, do senso político de Bonifácio, arguto o suficiente para não confundir entre uma Europa afeita a tradições seculares e a América pejada de novos ideais, que não excluía a liberdade. Aqui podemos sublinhar um parâmetro de semelhança com o Movimento de 1922. A disputa entre a tradição e o novo. Outro ponto a celebrar no decorrer da Independência foi o de manter-se intacta a unidade nacional, em momento tão delicado.

No caso do Movimento de 1922, a própria expressão das artes, música, dança, pintura, literatura. Novas tendências floresciam e se tornaram realidade a partir da Semana de Arte Moderna, onde artistas brasileiros podiam experimentar novas linguagens, novos materiais. No dizer de Mário de Andrade: “O modernismo no Brasil foi uma ruptura, foi um abandono de princípios de técnicas consequentes, foi uma revolta contra o que era a inteligência nacional” (Andrade, Mário de., Aspectos da Literatura Brasileira, SP, 1974, p.23). Aqui o negro surge na literatura e na pintura brasileira de Di Cavalcanti. A poesia de Manuel Bandeira se insurge contra o parnasianismo em seu poema “Os sapos”:

(…) Clame a saparia

Em críticas céticas:

Não há mais poesia,

Mas há artes poéticas (…)

André Capillé & Guilherme Gontijo Flores: No que cabe comemoração, em sua maior parte com feitos que retornam pelas vias de construção do imaginário, pode-se pensar a introjeção do olhar, mais agudo, em problemas singulares e próprios na construção do país, bem verdade que herdado de um pensamento romântico presente nos liames da Independência, bem como em amplos aspectos da Semana de 22.

Do que é rejeitável, ainda que sob um olhar algo rápido, outro aspecto herdado da febre dos nacionalismos, qual seja, um certo ufanismo, cuja construção do pensamento harmônico do mito das 3 raças, bem como a manutenção da escravização negra, cava residência nas tratativas de 1822. Com relação ao século XX, e sua entrada brasileira via Semana de 1922, no anseio de colocar São Paulo, não apenas no mapa, mas no centro dele, houve certo endosso de uma revisão histórica que via nos Bandeirantes verdadeiros heróis nacionais [apesar dos custos com relação à escravização negra e indígena, por exemplo, bem como a destruição das reduções jesuíticas, feita de modo ilegal].

Fernando Santoro: A Proclamação da Independência tenta criar uma cara de Brasil soberano, mas nem de longe livrou o país dos laços de dependência econômica com as metrópoles do Norte. A Semana de Arte Moderna tenta criar uma ideia de nação miscigenada em um evento que ocupa por uma semana o teatro da elite de uma capital provinciana, com artistas que acabaram de voltar de Paris. Um grande salto é ver com olhares críticos que aquela República e o Império que a antecedeu ainda não tinham reconhecido a constituição real de suas gentes. A Semana de Arte invade o Teatro Municipal com a quebra dos cânones eruditos europeus e abre caminho para as vanguardas entrelaçadas a veios da cultura popular: a pesquisa da música regional de Mário de Andrade, o conceituário antropofágico tupi de Oswald de Andrade, as composições nacionalistas de Villa Lobos, a iconografia tropical de Tarsila, a poesia vanguardista de Pagu… A atitude, sem dúvida, é para ser comemorada, mas o evento é marcadamente regional, e fogem manifestações decisivas da cultura brasileira, como toda a cultura oriunda dos africanos, decisiva no tropicalismo baiano e no samba carioca, a cultura sertaneja das rotas do gado, a cultura armorial nordestina, fora todas as nações indígenas para além do tronco tupi-guarani. O Brasil nação é muito mais amplo e diverso do que o que se apresenta para a pauliceia dos anos 20. O caldeirão antropofágico de Oswald precisa de mais ingredientes… A diversidade em si é tamanha que a própria ideia de uma nação integrada é uma ideia a ser questionada. Não é a toa que daquela mesma verve nacionalista nasça um movimento fascista como o Integralismo.

Paulo Maciel: Uma das conquistas após a Independência diz respeito ao próprio teatro brasileiro. Ou seja, sua criação se tornava um novo problema posto para os profissionais e os críticos de teatro desde o Império. Quem estuda e trabalha com teatro brasileiro e sua história sabe da importância do evento e de seus desdobramentos críticos no sentido de possibilitar aos artistas locais (autores, atores, atrizes, dentre outros e outras) espaço nas produções que circulavam nos teatros, sobretudo das capitais. Ao mesmo tempo, não podemos deixar de lembrar que essa conquista não se deu em detrimento do estrangeiro (dominou as traduções, adaptações e outras formas de intertextualidade), mas significou o “embranquecimento” de elencos e companhias se comparados aos atuantes no século XVIII, por exemplo. 

3. Que projetos para o Brasil e momentos decisivos da história relacionados à Independência política e ao modernismo como movimento cultural você destacaria?

Isabel Lustosa: No âmbito da Independência, os projetos de homens como Hipólito da Costa e José Bonifácio de Andrada representavam o que havia de mais avançado para o futuro do Brasil. O desenvolvimento interno seria propiciado pela transferência da capital para uma região central do país e, com isto, estradas seriam abertas e rios se tornariam navegáveis para que essa capital se integrasse ao resto do país. Nos projetos de Hipólito da Costa, a criação de um sistema nacional de correios completaria essa integração. Escolas, universidades e acesso de pessoas qualificadas aos cargos públicos (no lugar dos apadrinhados de sempre) dariam eficiência ao aparelho de Estado. Liberdade de imprensa, de comércio e de religião também estavam em pauta e seriam garantia de transparência nas contas públicas e de atração para investidores e imigrantes estrangeiros, não necessariamente católicos. A abolição da escravatura como algo a ser concedido em breve também esteve presente nas manifestações do Andrada e de Hipólito. 

Certamente, o longo e minucioso trabalho de Mário de Andrade, alma mater da semana e de seus desdobramentos, em sua correspondência com intelectuais dos mais diversos lugares do Brasil e através de uma atuação contínua na imprensa teve um papel transformador que, por sua dispersão, ainda não está bem avaliado. Sua visão da cultura brasileira, as ações que achava necessário empreender em defesa do patrimônio histórico e artístico e das tradições populares, representam a primeira ação intensiva de reconhecimento e valorização das especificidades dessa cultura. Mário lançou sua rede longe e, por meio de uma atuação pessoal, a trouxe cheia de novos talentos que, ao lado dele, passaram a também atuar no mesmo sentido.  

Dominichi Sá: Esses processos históricos, como já mencionei, foram ocasião de fortes debates conceituais e políticos sobre Estado, soberania, liberdades individuais, o valor da Constituição, pactos sociais, direitos, igualdade, regras eleitorais, a adoção do regime monárquico ou republicano, da centralização ou do federalismo, das relações entre espaços urbanos e o campo, a importância da saúde e da educação para o fortalecimento da nação, e a definição dos princípios da representatividade política e da cidadania em um país de passado escravocrata. Os múltiplos componentes do “Brasil moderno”, do país integrado ao mundo, também eram pautas de discussão.

Neste momento, em que há fortes tentativas de pacificar a história nacional, de exaltar supostos heróis, e de normalizar experiências autoritárias, é fundamental refletir sobre os usos sociais do passado, para que o diálogo com a sociedade sobre a história nacional demonstre o dinamismo e a violência das disputas, a multiplicidade de atores históricos que participaram desses eventos e processos, e sobretudo que o Brasil pode e deve ser uma composição muito diversa de múltiplos elementos culturais, como já defendiam os modernistas de 1922. A diversidade populacional, que era temática crucial em 1822 e 1922, deve também ser destacada e atualizada em 2022.

José Vicente Tavares dos Santos:  A Abolição da Escravatura, tardiamente, e as dificuldades da integração do negro na sociedade brasileira, além das inovações literárias do Século XX, pós Semana de 1922, certamente mereceriam uma apreciação. A lei de Terras, como equivalência da mercadoria e restrição à posse da terra, que são dimensões ainda hoje restritivas, malgrado o Estatuto da Terra.

Marcos Costa Lima: Em primeiro lugar, o sentimento de criação de um projeto nacional, mesmo dentro das limitações e das contradições de momentos marcados pelas elites brasileiras, que não são unânimes. Se é necessário que a história nos ensine algo, é que o momento atual que vivemos (2016-2022), tem a expressão dos piores momentos de 1822 e 1922. O conservadorismo, as desigualdades que se acumulam, de toda ordem, os princípios oligárquicos, autoritários, racistas e violentos, intrínsecos aos valores da ordem. Os modelos econômicos de desenvolvimentos que não incorporam as camadas populares e que estabelecem às mulheres lugares de subalternidade e que fazem da democracia muito mais um arremedo do sentido mais forte da expressão.

Me valho aqui de duas reflexões fortes de Celso Furtado a propósito de nosso país que espelham dois problemas que precisamos superar se quisermos construir um País verdadeiramente democrático, inclusivo e solidário. A primeira, sobre a continuidade do atraso, com face de progresso: “A evolução do sistema capitalista, no último quarto de século, caracterizou-se por um processo de homogeneização e integração do centro, um distanciamento crescente entre o centro e a periferia e uma ampliação considerável do fosso que, dentro da periferia, separa uma minoria privilegiada e as grandes massas da população”. (Furtado, Celso. “O Mito do Desenvolvimento Econômico”, 1974, p. 46)

A segunda, sobre a natureza obliterada de nossas elites, em sua dimensão tributária do processo escravista e senhorial: 

“O distanciamento entre elite e povo será a característica marcante do quadro cultural que emerge nesse período. As elites, como que hipnotizadas, voltam-se para os centros da cultura europeia, de onde brotava o fluxo de bens de consumo, que o excedente de comércio exterior permitia adquirir… O povo era reduzido a uma referência negativa, símbolo do atraso, atribuindo-se significado nulo à sua criatividade artística”. (Furtado, Celso; “Cultura e Desenvolvimento em época de crise”; 1984, p. 23)

A Semana de Arte Moderna soube inspirar-se no melhor que vinha da Europa e mesclá-lo e articulá-lo à cultura brasileira, o que esteve representado em Villa-Lobos, em Anita Malfatti, em Oswald de Andrade, e tantos outros.

André Capillé & Guilherme Gontijo Flores: Apesar de todos os atropelos, a partir de 1822 buscou-se uma modernização em algumas frentes no Brasil, particularmente, para tomarmos apenas um caso mais imediato, as empreitadas de Visconde de Taunay, repensando processos de fronteiras territoriais, incorporando ao imaginário um planejamento de “Brasil profundo”, interiorizado, que vai ser tema de inúmeros pensadores brasileiros. Junto disso, ainda, uma certa unidade da língua é determinada próximo aos períodos que estamos aludindo.

No que tange às realizações dos pensadores no começo do século XX, particularmente Mário de Andrade, tomaria como exemplaridade o projeto formulado por ele para o SPHAN, cujas características principais, embora não de todo realizadas, por intromissão de forças políticas do período, são definidas em dar igual atenção em relação ao erudito e ao popular, à arte pura e à arte aplicada; interesse pela paisagem transformada pelo homem; inclusão na noção de patrimônio nacional dos elementos “imateriais” afeitos diretamente ao folclore; e, ainda, uma proposta de revisão arquitetônica e patrimonial, não só por via da revisão, mas da manutenção histórica dos feitos.

Fernando Santoro: O primeiro projeto para o Brasil a destacar é o de uma nação miscigenada. A cozinha antropofágica é onde as culturas e os povos podem se misturar para criar uma diversidade de formas e para valorizar essa diversidade. Mas a miscigenação não é necessariamente um projeto que valoriza as diferenças. O mito da nação multirracial, formada pelo encontro do europeu, do africano e do americano, continua servindo para constituir a falácia do homem cordial e ocultar as formas de domínio, discriminação e genocídio das populações não brancas ou menos brancas. O índio é ainda o indolente ou o ingênuo que precisa ser tutelado, o negro é o selvagem que precisa ser domesticado e afinado. A cultura tradicional dos povos não europeus, mesmo valorizada e transformada em mercadoria midiática altamente lucrativa, continua confinada aos espaços populares, fora da alta cultura e dos currículos acadêmicos que, ao fim e ao cabo, ensinam quem manda e quem obedece.

O segundo projeto a destacar e criticar é a ideia mesma de Modernidade, atrelada à ideia de progresso econômico, cultural e civilizacional. Ainda vale dizer que o Brasil é o país do futuro? Que futuro é este para o qual pretensamente sempre caminhamos? O Modernismo de vanguarda projeta para amanhã os seus ideais. Mas qual é nosso amanhã? A Modernidade e o Progresso são ideias europeias dos séculos XVIII e XIX… Ainda há lugar para acreditar que os vetores da ciência e da civilização europeias correm para o telos das utopias e das cidades perfeitas? Onde está o paraíso de Pindorama? Em que tempo imemorial do passado, do futuro… ou dos desafios do presente?

Paulo Maciel: Difícil pergunta para um não especialista ou estudioso do modernismo. Salientei os momentos decisivos relacionados à Independência e ao modernismo em torno do que viria a ser chamado de teatro brasileiro (a partir do século XIX em razão da batalha travada em torno do teatro nacional). Mas, de um ponto de vista mais geral e relacionado ao modernismo como movimento cultural, destacaria a democratização da arte, da cultura e do pensamento levada adiante pela linguagem poética que dava estatuto de cidadania a diversidade da língua falada e carregava consigo a realidade já filtrada de seus portadores; além de desmistificar a oposição conservadora entre nacionalismo e cosmopolitismo alimentada, muitas vezes, de maneira irrefletida durante a Primeira República. 

É preciso fazer uma pequena diferença entre modernismo e modernidade, pois, a relação entre eles vai depender do tipo de discurso crítico do primeiro com relação ao progresso e à nação associados ao segundo. Então, para quem fabula ou deseja um mundo e um país diferentes do existente precisa exercitar a imaginação situando a dupla comemoração num outro horizonte cognitivo e ou inteligível distanciando, se possível, o gesto festivo do ufanismo crítico da Semana diante da Independência problematizando os dois eventos enquanto marcos dos problemas do país. Precisamos repensar hoje o contrato selado pela inteligência modernista comprometida com a democratização dos temas e das formas da linguagem artística para ir além e, deste modo, alcançar as formas da vida e da cultura negligenciadas ao longo dos duzentos anos.  

4. Quais os significados atuais da Independência política e do modernismo para os projetos de Brasil possíveis em e para além de 2022?

Isabel Lustosa: O Brasil vive um momento tão dramático que, mais que nunca, é preciso relembrar o que esteve em jogo tanto no cenário da Independência quanto no Brasil dos anos 1920. No momento em que vemos um ataque às bases da cultura nacional construída ao longo de nossa história, desde seu momento fundador, a Independência, passando pela literatura do século XIX; pela Semana de Arte Moderna; pelo romance regionalista; pelo surgimento dos nossos primeiros estudos sociológicos; pelo Cinema Novo e pela Tropicália até chegar aos nossos dias, precisamos refletir sobre que Brasil foi esse que construímos, em que bases ele foi formado e quais as ameaças que esse Brasil sofre neste momento. Elas têm nos atingido no que compõe a nossa memória afetiva, inclusive aquela que acreditamos ser a que nos define como brasileiros. Por mais que essa definição seja móvel, ela contém alguns elementos comuns que são compartilhados por aquela massa de indivíduos de várias origens e classes sociais que imaginam, produzem e pensam intelectual e culturalmente o país, influindo sobre seus compatriotas. 

Assim, a ideia de independência precisa ser novamente resgatada no âmbito das relações do Brasil com os Estados Unidos; o amor às riquezas naturais que inspirou os nossos poetas do passado deve ajudar a impulsionar a luta pela defesa do meio ambiente que vem sendo devastado; o sentido da miscigenação, ressaltando o papel de índios e africanos na formação original do povo Brasil deve servir de anteparo ao racismo estrutural que está na base da situação de vulnerabilidade que negros e índios viram agravadas neste ambiente tóxico que tomou conta do Brasil desde 2016. É indo buscar e entender o que os primeiros brasileiros a usarem legitimamente esse toponímico pensaram e os que vieram depois e compreenderam que era preciso sacudir o pó das capas eurocêntricas que nos fazia querermos ser o que não éramos e sair em busca da identificação ou mesmo da construção do que deveríamos ser ou vir a ser.

Dominichi Sá: Os marcos temporais de 1822 e 1922 devem ser balizas de reflexão para o Brasil de 2022, pois é imperativo o balanço sobre os processos deles decorrentes: Que Independência, afinal, tivemos? Que cidadania fomos capazes de construir em 200 anos? O que significa a modernidade em cenário de mudança climática?

As condições de nossa participação qualificada nos debates de 2022 é que são muito preocupantes: como integraremos essa agenda numa das piores crises científicas em dois séculos de país “independente”? Os projetos de ciência comprometida com visões de um país soberano estruturaram a própria história do Brasil. Qual é o valor social da ciência hoje e suas condições efetivas de atuar em projetos nacionais?

Parece, portanto, incontornável refletirmos também sobre a importância das ciências na história nacional, mas sobretudo como resposta à crise e aos desafios contemporâneos do Brasil. Há país independente sem ciência nacional forte, com forte dependência técnico-científica externa?

Além da já péssima situação orçamentária do sistema de CT&I no Brasil, enfrentamos também movimentos organizados anticiência e negacionistas. Os cientistas são definidos, por esse tipo de movimento, como “inúteis”, sem pesquisas de relevância no cotidiano da população, e “excessivamente politizados”, especialmente nas universidades públicas. Um dos fundamentos desse movimento negacionista é a defesa de que a ciência deve ser “neutra” e obrigatoriamente aplicada, ou seja, destituída de valores sociais e ética, dedicada exclusivamente ao desenvolvimento de aparatos tecnológicos de uso comercial ou industrial imediato. Devemos combater com veemência esta visão de que a ciência básica não é importante ou de que a ciência ideal é aquela destituída de valores. Além de missão histórica, cientistas devem ter sim compromisso social e com visões de país. Em 2022, é fundamental que nós também expressemos que país queremos ajudar a (re)construir.

José Vicente Tavares dos Santos: A construção de uma democracia para todos e todas, sem exclusões, com redução das desigualdades sociais e com respeito às diferenças. A necessária reforma agrária, para ampliar o acesso à terra para os trabalhadores sem terra. A democratização da educação e da Universidade Pública. E, na herança dos positivistas do início da República, o respeito ao conhecimento científico. Finalmente, estabelecer o diálogo entre a cultura brasileira e a cultura dos países hispano-americanos, superando a ilha de Tordesilhas – retomando o diálogo entre Antonio Candido, Angel Rama, Darcy Ribeiro – torna-se uma dimensão fundamental para compreendermos o modernismo tardio e ainda não consolidado na América Latina.

Marcos Costa Lima: Em primeiro lugar, em que pese a Independência, e a criação do Estado Nacional, não temos soberania. Somos governados, como também falou Furtado, – de fora para dentro. As elites financeiras, industriais e agrárias do Brasil são dominadas, quer por seus próprios interesses privados, quer por interesses estrangeiros. Não se construiu, ainda, um projeto nacional que nos leve à emancipação. Muito embora em alguns momentos de nossa trajetória tenhamos conseguido avançar, fazer alguns progressos como a escola e as universidades públicas; o Sistema Único de Saúde, o Sistema de Seguridade Social.  Elaboramos uma Constituição generosa que hoje está sendo destruída, bem como o patrimônio nacional do petróleo, do ferro, da energia, da preservação da Amazônia.

Da Semana de Artes Modernas, fica o significado de acreditarmos na criatividade de nossa gente, na imensa riqueza deste país, que vem sendo apropriada e governada por poucos. Somos uma das nações mais desiguais do planeta, a começar por uma estrutura agrária iníqua: os latifúndios com mais de mil hectares ocupam 44,4% das terras, são latifúndios que produzem monoculturas para exportação. A maioria dos proprietários, cerca de 48%, é de donos de pequenas extensões de terra, onde cerca de 70% dos alimentos consumidos pela população brasileira são produzidos. Já os grandes latifundiários, que representam apenas 1% dos donos de terras no Brasil, controlam quase metade delas. Daí surgem os conflitos, as grilagens que têm se abatido sobre os Cerrados e a Amazônia e o genocídio de indígenas e quilombolas. Por conta da expropriação camponesa, as cidades, onde hoje vivem a maioria dos brasileiros, estão repletas de favelas, que só reforçam esta imagem de desigualdade. Os pobres vivem e se acumulam em áreas sem saneamento e em casas sem conforto, em ambientes propícios ao tráfico de drogas, onde os jovens, sobretudo os negros são exterminados.

Finalmente, como já dizia Karl Polanyi, uma sociedade onde a regulação é realizada pelo mercado tende ao caos e a destruição. A presença do Estado teria que se fazer em direção oposta ao que vimos percorrendo. Um Estado que não seja capturado pelo grande capital, seja nacional, seja internacional. Dificilmente poderemos avançar como país autônomo e soberano se não enfrentarmos com coragem e descortino estas profundas desigualdades.

André Capillé & Guilherme Gontijo Flores: Certamente a ideia de independência política do Modernismo, sobretudo da Antropofagia, que surge alguns anos depois, e nos sugere olhar para uma interdependência humana dos grupos, com a lida difícil dos convívios interétnicos, que avança na contramão do projeto de extermínio e autoritarismo que vimos, ainda vemos, no Brasil. Contudo, cabe a observação: curiosamente o sonho autoritário também tem germes na Semana de 22, uma vez que de lá, também, se desdobram o movimento da Anta, bem como nascem as antas do Integralismo.

Fernando Santoro: O expresso 2222 parou na estação de Bonsucesso? Em 2022 os desafios políticos, culturais e civilizacionais não são pequenos nesse imenso país de mais de 200 milhões de habitantes que acolheu ao longo de sua história, com graus diferenciados de violência, povos e tradições de todos os continentes. Teremos neste ano eleições presidenciais e congressuais em que os principais projetos de nação não apontam para o futuro, mas para experiências do passado – ambas ancoradas em discursos de economia desenvolvimentista, em fés de religiões cristãs, em vozes de figuras mitificadas, uma formada nas corporações militares, outra nas associações sindicais. Como se fosse tão simples definir o que leva os brasileiros às urnas! Difícil, em uma terra não acostumada à alternância democrática, que mal saiu das capitanias hereditárias, é usar conceitos modernos como direita e esquerda.

Por outro lado, a diversidade dos povos e das culturas se encontra no desafio de afirmar suas identidades e marcar suas diferenças ao mesmo tempo em que estas se entrecruzam no sangue das populações e na criatividade dos artistas. Como podemos ressignificar a ideia de independência em um mundo interconectado e globalizado? Onde exercer a soberania, a autonomia e finalmente a liberdade de trilhar os próprios destinos? Onde estão nossas tribos? Há modelos em nossas tantas tradições do passado? Onde andam os sonhos que fazem rodar as rodas da história? As rodas rodam reto à frente sobre trilhos ou giram sobre eixos em que voltamos a ser o que sempre já éramos? O tempo da comemoração é um tempo de cruzamentos na encruzilhada do instante, como o ewè que avisa que Esù mata o pássaro ontem com a pedra que há de lançar hoje.

Paulo Maciel:  O primeiro aspecto a ser observado acerca dos projetos de Brasil possíveis é desfazer o “nós” que retoricamente vem sendo usado, muitas vezes, quando falamos da Independência e da Semana como conquistas de todos ou todas brasileiros (as).  Reconhecer isso não diminui a importância dos eventos, entretanto, ajuda a lembrar aos convivas das festas do país que comemora. O modernismo se converteu também em negócio rentável e norma do bom gosto, pois sua sobrevivência, ao longo do tempo, levou à reconfiguração de sua plataforma crítica transformada, desde os anos de 1960 especialmente, em uma ideologia libertária da burguesia nacional e culta (sentido mergulhado no breu do espetáculo recente de Macunaíma dirigido por Bia Lessa). Precisamos rever o contrato do modernismo segundo o cenário atual para ver de novo as bases do seu e do nosso entendimento. Sendo assim, comemorar os cem anos da Semana levando em conta seu desafio e empenho no sentido da crítica ao nacionalismo e ao eurocentrismo das “substâncias materiais e espirituais” do país, em função do “ufanismo crítico” (Roberto Schwarz) e ou do sincretismo como estratégia crítica do “Terceiro Mundo”, segundo observou Ella Shohat e Robert Stam (2006). Ir além do modernismo não significa negar suas conquistas, mas, nos ajuda a reconhecer os problemas que seu pacto no passado nos legou.

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