Eros e deseducação: puxando conversa com Eliane Robert Moraes

Atendendo à remissão malandra de Eliane Robert Moraes na entrevista publicada ontem, passamos a palavra a André Botelho para um texto que experimenta o diálogo com a Seleta erótica de Mário de Andrade a partir de seu recém-publicado O modernismo como movimento cultural (Vozes, 2022, em coautoria com Maurício Hoelz). O texto, apresentado na rodada paulista do seminário Mário Eros de Andrade, faz parte de um díptico que conta ainda com a contribuição de Maurício Hoelz para a rodada carioca do mesmo seminário, no próximo dia 20, que publicaremos nos próximos dias.

Eros e deseducação: puxando conversa com Eliane Robert Moraes [1]

André Botelho (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Eu gostei muito de como Eliane Robert Moraes compõe sua seleta. Mais do que uma coleção, o livro rastreia presenças e silêncios eloquentes e levanta hipóteses convincentes para a transversalidade da erótica na obra de Mário de Andrade. Lendo sua belíssima seleta assim, belíssima tanto do ponto de vista intelectual, quanto editorial (parabéns à editora Ubu), foi inevitável rememorar quantas vezes, leitor que sou de Mário, deparei-me com a questão. Eliane seguiu em frente. Tinha que ser ela. Também outros intérpretes começam a explorar esse caminho. “Mário trezentos, trezentos e cinquenta + 1”. Que título feliz para esta mesa. Deixo-me interpelar e levar pela adição que nos reúne hoje. Aceito o convite, gostaria de dialogar com a questão para revisitar também um pouco o meu próprio percurso.

A tópica da erótica, afinal, é provocativa. Não é tema, apenas. É também forma. Uma subjetividade que se forja, esteticamente. Assim Eliane sugere em sua ótima apresentação. A erótica de Mário e em Mário. Eliane recusa assimilar mecanicamente o literário pelo biográfico. Sinto-me acolhido. E estimulado. Mário, trezentos, trezentos e cinquenta. Fraturado. Multiplicado. Dissimulado. Homem e autor são sujeitos lançados ao fluxo de forças contrapostas entre a sua subjetividade individual e a objetividade da vida social que delimita possibilidades e a própria liberdade do indivíduo. É no conflito com a sociedade brasileira inaceitável, e com todo um mundo contra o qual ele se opõe, que a própria subjetividade individual de Mário ganha forma.

Mário de Andrade se colocou inteiro em tudo (e não era pouco) o que fazia, transitou na fronteira de diferentes mundos e ousou cruzá-las, ocupou o centro de diversos debates, redes e gerações intelectuais. Ele buscou, porém, manter seu pensamento sempre descentrado ao conectar, polifonicamente, outras vozes e escutas do Brasil e do mundo. Mário de Andrade é mesmo um mundo, como ele costumava dizer de Bach e Beethoven.

Voltar a Mário hoje é uma experiência contundente. Em mais uma volta da espiral da crise da democracia no Brasil, nos irmanamos com o sofrimento pessoal e as agruras sociais e políticas do poeta. Assistimos novamente à mobilização de identidades coletivas apelando a um nacionalismo programático autoritário em correntes de opinião, políticas governamentais e manifestações públicas. Mais ainda, vivemos um momento global de recrudescimento dos nacionalismos e das fronteiras nacionais que deixa poucas ilusões sobre a chamada mundialização da cultura – que não parece estar, de fato, gerando relações exatamente multicêntricas ou mais equitativas, apesar da intensificação de trocas de todos os tipos garantidas pelos desenvolvimentos tecnológicos. Também na cultura persiste uma geopolítica com relações e trocas assimétricas que recria hierarquias de vários tipos.

Por isso, gostaria de ressaltar que a seleta de Eliane Robert Moraes me parece ainda uma afirmação potente da tarefa da crítica em tempos de negacionismos. Negacionismos esses também relativos ao modernismo, que colaboram para enviesar e reduzir a nossa maltratada esfera pública à mera polêmica, sem lugar para problematização. As tensões e ambiguidades constitutivas das ideias de Mário de Andrade e seu sentido crítico em relação aos temas dominantes de seu tempo foram, em grande medida, perdidas nos últimos 100 anos. Apagadas as ambiguidades e contradições, ele pôde, então, ser monumentalizado como matriz oficial da modernidade cultural brasileira. Por esse mesmo motivo, infelizmente, Mário já vem sofrendo como uma espécie de palmatória do modernismo, sendo-lhe cobradas as violências simbólicas implicadas na sociedade brasileira da sua época, no modernismo como movimento cultural e na nacionalização que ele operou de práticas e valores culturais de um Brasil tão diverso e desigual.

Como tudo indica que essa tendência revisionista supostamente crítica deve continuar, talvez devêssemos nos perguntar o que faz de Mário de Andrade, dentre tantos outros modernistas, uma presa talvez mais fácil para esse tipo de cobrança anacrônica? Mulato, distante do modelo masculino heteronormativo e pobre – ao menos a ponto de depender do seu próprio trabalho intelectual e como professor de música para sobreviver –, Mário viveu, sobreviveu e morreu numa sociedade classista, racista e homofóbica como era a sociedade brasileira da sua época e ainda é a sociedade brasileira hoje. Imagine, então, conviver com os círculos de elites abastadas e preconceituosas, como o próprio Oswald de Andrade, seu companheiro de jornada nos princípios do movimento modernista, e, sobretudo, nos círculos de poder político como Mário fazia.

Então, Eliane, eu quero dizer que a sua seleta erótica é nada mais nada menos do que um “livro de amor”. Era assim que Mário via sua obra de fôlego inacabada Na pancada do ganzá – cujos quatro livros, Danças dramáticas do Brasil, Melodias do boi e outras peças, Os cocos e Música de feitiçaria no Brasil foram organizados e publicados postumamente por Oneyda Alvarenga. A primeira linha do prefácio desse livro inconcluso – cujo subtítulo é “Subsídios para conhecimento da vida popular brasileira, especialmente do Nordeste” – afirma ser ele não um livro de ciência, mas um “livro de amor”. Ato contínuo, Mário escreve: “Deus me livre de negar que a ciência seja por sua vez fenômeno de amor, mas ‘conhecer’ no sentido de decidir da Verdade, é verbo que me assusta um bocado. […] De maneira que dou ao verbo conhecer um sentido, se não mais humilde, pelo menos mais ‘namorista’, pra falar como o caipira”.[2]

Essa abordagem “namorista” facultaria um tipo de compreensão baseado na “empatia”, na comunicação intersubjetiva, na capacidade de “ouvir e aceitar o povo”. Ao suspeitar da pretensão de universalidade e objetividade de todo saber, substituindo o discurso totalizante e exclusivo sobre as outras culturas (incluída a popular) por um diálogo com elas, esse “ato de amor”, em suas palavras, possibilitaria reconhecer os portadores sociais da cultura popular em sua dignidade e alteridade plena. O que geraria não apenas a ampliação do nosso campo cognitivo, mas formas mais descentradas e inclusivas de identidades. O namoro com a cultura popular seria o compromisso de Mário com a união da imaginação com o sentimento brasileiro. Como, com o perdão do paradoxo, especialista em algo tão vasto como “interpretações do Brasil” que sou, é sobre essa união entre imaginação e sentimento – e agora erótica – que ainda gostaria de falar mais um pouco.

I

A tópica da união entre imaginação e sentimento que, de certa forma, pode ser considerada dispositivo estruturante da interpretação do Brasil de Mário de Andrade como um todo, e tão importante nos seus livros decisivos de 1928, Macunaíma e Ensaio sobre música brasileira, surge muito emblematicamente, como sabemos, no início da correspondência de Mário com Carlos Drummond de Andrade, o então jovem provinciano embotado de cultura francesa. Anos depois o próprio Drummond reconheceria o papel da deseducação exercido por Mário no artigo “Suas cartas”, publicado no jornal Folha Carioca em 6 de março de 1944 e nesse mesmo ano recolhido em Confissões de Minas. “Suas cartas” mostra a clareza com que Drummond apreciou muito cedo o projeto epistolar mariodeandradiano e os sentidos pedagógico e sacrifical assumidos nessa prática de si, como nos mostra de modo contundente o livro de Marcos Antonio Moraes. Diz Drummond: “Vejo moços no fundo do poço, tentando sair para a vida impressa e realizada. Como falam! Como escrevem! Como bebem cerveja!”. Aquilo que o poeta afirma ver ao debruçar-se, em 1944, à beira de um “poço de dezenove anos de profundidade”, lá embaixo, em 1924, claro, é a sua própria juventude. Mas não apenas ela, e sim, “a” juventude:

Os nomes mudaram, porém, os moços continuam existindo na literatura, amando-a e fazendo dela um valor humano. Por que xingar os moços de literatos? O que há de melhor neles é a literatura, ou seja, a vida fantástica, que aperfeiçoa e cristaliza a vida cotidiana, a literatura que ajuda a viver, e que tanto permite sair da vida como entrar nela.

Essa mocidade, porém, não é um estado da natureza. Mas antes – fosse em 1944, como teria sido em 1924 – uma condição ativa, política e social a ser conquistada – e bravamente conquistada, podemos acentuar. Nos anos 1920, pondera Drummond, a “mocidade verdadeira” tinha que vir de “uma depuração violenta dos preconceitos intelectuais”, tinha que superar

fórmulas de bom comportamento político, religioso, estético, prático, até prático! Havia excesso de boa educação no ar das Minas Gerais, que é o mais puro ar do Brasil, e os moços precisavam deseducar-se, a menos que preferissem morrer exaustos antes de ter brigado.

A educação seria então e urgentemente uma deseducação. Deseducar-se, para a juventude modernista de Drummond, parecia constituir a única alternativa para fugir ao destino da geração anterior, a que morreu exausta antes de ter lutado. As imagens mobilizadas no trecho citado são fortes e nos remetem ao título algo paradoxal Mocidade morta, que Gonzaga Duque escolheu para o seu romance de 1899. Ao grupo dos “insubmissos” do romance de Duque, formados em meio à desagregação da ordem social monárquica e escravocrata e à emergência, do seio desta, de um novo regime de trabalho e de organização política e social, com a República, não foi possível uma adesão unívoca e progressista em face dos desafios do tempo. Eles não tiveram, em suma, como fugir a uma coexistência ambígua entre formas pretéritas e certas antecipações ainda não inteiramente objetivadas do futuro que caracterizam as épocas de transição, e de cuja equação, aliás, parece sempre depender nossa visão do momento presente.

Contra esse destino é que se voltará a ação de Mário de Andrade como parte de uma estratégia de afirmação do modernismo como movimento cultural a partir de 1924. Conhecida e mesmo emblemática é a carta datada de 22 de novembro de 1924, na qual Drummond desabafa para aquele que já reconhecia como líder intelectual: “Não sou ainda suficientemente brasileiro. Mas às vezes me pergunto se vale a pena a sê-lo […] O Brasil não tem atmosfera mental; não tem literatura; não tem arte; tem apenas uns políticos muito vagabundos e razoavelmente imbecis e velhacos”. E recorria, na sequência, às afirmações do escritor, político e diplomata Joaquim Nabuco, feitas no capítulo três das suas memórias, Minha formação, publicada em 1900, de que “o sentimento em nós é brasileiro, mas a imaginação europeia”, e que o “Novo Mundo, para tudo o que é imaginação estética ou histórica é uma verdadeira solidão”. Irônico, como quase sempre, e também algo maldoso, Mário não hesitou em observar ao jovem poeta na resposta a sua carta:

Você fala na “tragédia de Nabuco, que todos sofremos”. Engraçado! Eu há dias escrevia numa carta justamente isso, só que de maneira mais engraçada de quem não sofre com isso. Dizia mais ou menos: “o doutor [Carlos] Chagas descobriu que grassava no país uma doença [transmitida pelos barbeiros] que foi chamada moléstia de Chagas. Eu descobri outra doença, mais grave, de que todos estamos infeccionados: a moléstia de Nabuco”. É preciso começar esse trabalho de abrasileiramento do Brasil…

Interessa-me chamar a atenção, neste momento, para a ideia de “moléstia de Nabuco” forjada, com a graça e também certa maldade tão características de Mário, como uma espécie de justificativa moral para a ação modernista de abrasileirar o Brasil a que deveriam se entregar dionisiacamente, e não de modo apenas racional, apolíneo. Buscava reconciliar sentimento e imaginação na e da experiência brasileira, cuja consecução passava senão pela diluição por uma aproximação criativa e, na verdade, por uma recriação das relações entre erudito e popular.

Não podendo deixar de contar-se “Em suas cartas” entre aqueles moços que, em 1924, falavam, escreviam e bebiam cerveja – quase uma cena de O amanuense Belmiro (1937), de Cyro dos Anjos, o romance sabidamente baseado na geração modernista de Belo Horizonte – assume-se Carlos Drummond de Andrade como livresco e mesmo deslumbrado: “Estou entre eles, mas não sei que sou moço. Julgo-me até velho, e alguns companheiros assim também se consideram. É uma decrepitude de inteligência, desmentida pelos nervos, mas confirmadas pelas bibliotecas, pelo claro gênio francês, pela poeira dos séculos, por todas as abusões veneráveis ainda vigentes em 1924”. A orientação do amigo mais experiente é segura: “Tudo está em gostar da vida e saber vivê-la. Só há um jeito feliz de viver a vida: é ter espírito religioso”. Não se trataria, como Mário se apressa em explicar “milhor”, de ser católico ou budista, “trata-se de ter espírito religioso pra com a vida, isto é, viver com religião a vida”. Prossegue Mário na explicação, com sentido educativo, de seu modo de ser:

Eu sempre gostei muito de viver, de maneira que nenhuma manifestação da vida me é indiferente. Eu tanto aprecio uma boa caminhada a pé até o alto da Lapa como uma tocata de Bach e ponho tanto entusiasmo e carinho no escrever um dístico que vai figurar nas paredes dum bailarico e morrer no lixo depois como um romance a que darei a impassível eternidade da impressão.

“Viver com religião a vida” constitui o princípio por meio do qual a própria dualidade codificada no “mal de Nabuco” entre civilização e pátria e/ou história e natureza se desfaz. Como bem observou Ricardo Benzaquen de Araújo, não se tratava exatamente de desqualificar a vocação com que Drummond se apresentava encarnando uma racionalidade hipertrofiada – “que diabo! estudar é bom e eu também estudo. Mas depois do estudo do livro e do gozo do livro, ou antes vem o estudo e gozo da ação corporal”, diz Mário – mas sim de “batalhar para que ela não envolva um afastamento definitivo do colorido e do calor encontráveis quer nos sentimentos mais íntimos quer no som e na fúria que costumam atravessar o mundo da experiência”.

E como o próprio Drummond fez questão de acentuar posteriormente, a perspectiva de Mário combinava uma “espontaneidade de espírito” em que a “saturação de cultura não corrompia”; tinha caráter educativo, sem ser uma atitude estética circunstancial, mas antes um “modo de ser” que, em nada se confundia com “certa euforia pseudofilosófica então muito generalizada nos arraiais modernistas e que trazia a marca de fábrica de Graça Aranha”. A notável capacidade de Mário de Andrade em desempenhar simultaneamente as mais diferentes atividades, sempre lhes conferindo importância, e vivendo-as com intensidade e gozo, seria parte dessa maneira de viver a vida que apresenta, compartilha e contagia o jovem correspondente, e também o/nos desafia. Penso que Eliane Robert Moraes nos municia agora para seguirmos em frente.

Esse self modernista, como trabalhamos eu e Maurício Hoelz no livro que também acabamos de publicar, O modernismo como movimento cultural. Mário de Andrade, um aprendizado, problematiza o ideal de autoaperfeiçoamento da Bildung, e se relaciona com a erótica, em sentido pleno, percebo melhor agora. A erótica em Mário de Andrade, Eliane Robert Moraes nos mostra, parece jogar, teórica e ficcionalmente, com os modos, direções e intensidades de diferenciação de linhas de ação/individualização, e as relações de tensão entre elas. E assim, afeta decisivamente o nosso repertório de formas de subjetivação.

II

O pensamento de Mário de Andrade existe em movimento. Ele não termina inacabado, estancado por sua morte repentina ou devido às contrariedades de uma existência e aos percalços de uma trajetória, para não falar das atribulações políticas decisivas do Brasil que afetaram e alteraram as possibilidades de seus projetos e seu próprio destino etc. Tudo isso não deixa de ser verdade. Quando digo, porém, que o pensamento de Mário de Andrade sempre existiu em movimento – melhor seria retomar seu vocabulário original e chamá-lo diretamente de seu “pensamentear” –, desejo enfatizar sua qualidade de abertura intrínseca, dialógica, posto que dependente necessariamente do outro para existir. Sua força motriz não reside em si e no mesmo.

Não por acaso, chama a minha atenção nesse “pensamentear” de Mário de Andrade que, talvez, inclua também a erótica, que a própria noção de sociedade com que opera, em certo sentido tão diferente do que ocorre no notável conjunto ensaístico contemporâneo ao modernismo, seja ela própria não um ente definido, mas um problema – que não comporta resolução definitiva. “[…] juntos formamos este assombro de misérias e grandezas, /Brasil”, diz o eu lírico ao final de “Noturno de Belo Horizonte”, publicado em Clã do jabuti, livro que tece uma meditação sobre esse totem-tabu chamado Brasil a partir de estruturas musicais populares.

Em “Carnaval Carioca”, o paulista frio, erudito e preconceituoso, carregado de “policiamentos interiores” e “temores de exceção”, dissolvendo-se como vivente anônimo no calor libertador do povo, canta a mistura de cores e tipos, mas não silencia sobre o caráter contraditório, porque excludente, dessa mesma sociedade: “Eu enxerguei com estes meus olhos que inda a Terra há-de comer/ Anteontem as duas mulheres se fantasiando de lágrimas/ A mais nova amamentava o esqueletinho./ Quatro barrigudinhos sem infância, / Os trastes sem aconchego/ No lar-de-todos da rua…”). A fresta democrática da festa não é suficiente para derrubar de vez o muro da exclusão. A religião do Carnaval carioca, ao colocar em suspensão as normas e as identidades, o tempo e o espaço, propicia o gozo imanente do “heroísmo do prazer sem máscaras supremo natural”, excepcional e excessivo, e nela o intelectual descobre a felicidade. No fim do transe ritual dessa festa profana, o “eu” talvez renasça, das cinzas, profundamente modificado. Mas e a sociedade?, eis a pergunta que quer calar.

“Descobrimento” e “Acalanto do seringueiro” – os “Dois poemas acreanos” do mesmo livro – cantam menos as lembranças imaginadas de uma abstrata e intangível comunidade nacional do que o esquecimento do abismo de diferenças e desigualdades que separa nossos corpos, bem como a incapacidade de ver e ouvir – sentir empatia por – esse outro ausente: “Porém nunca nos olhamos/ Nem ouvimos e nem nunca/ nos ouviremos jamais…”. A tensão contínua, o dilaceramento agônico e mesmo a impossibilidade estética de resolução são os silêncios e sons da música de uma sociedade inacabada que se grafam, como chagas da paixão, na partitura de si de Mário de Andrade. Não podem, porém, ser dissociados do sentido aberto e inacabado que nela faz também vibrar os harmônicos utópicos de um outro mundo possível.

A nos lembrar que ninguém participa de um contexto comum da mesma forma, temos a interpretação do Brasil de Mário e do mesmo ano dos seus livros decisivos, 1928, Retrato do Brasil, de Paulo Prado. Nele, procura-se estabelecer uma descontinuidade crucial entre a particular formação de São Paulo, dada, sobretudo, à pouca miscigenação da sua população com os africanos, e sua vantagem em relação ao restante do Brasil – esta sim uma sociedade estragada pela colonização, pela escravidão, pelo predomínio do elemento negro na sua população e por seus pecados capitais correspondentes: a luxúria, a cobiça, a tristeza e o romantismo.

O oposto de Mário, que, em vez de formulador de uma visão sintética, unívoca e estável de identidade, se mostrou crítico às ideias de autocentramento e de autenticidade da cultura brasileira. Além do mais, se posicionou contra um sentido eurocêntrico da cultura brasileira e manteve uma escuta atenta à sua diversidade regional. Nesse sentido, a própria valorização das culturas populares tão emblemática em sua obra e trajetória pode ser revista menos nas chaves usuais de um colecionismo romântico ou diluída no movimento folclórico dos anos 1930-1960, e mais como política de reconhecimento.

No pensamento brasileiro, a erótica emergiria com força contundente poucos anos depois em Casa-grande & Senzala, de 1933. Se Mário valorizou a cultura popular, seu interesse, porém, não se extingue nas manifestações que colheu, mas antes no reconhecimento social e político que provocou delas e na dignidade e visibilidade que procurou conferir a seus portadores sociais. E, sobretudo, diferente de outras correntes do modernismo, o fato de ter buscado problematizar tanto as fronteiras entre erudito e popular indica que Mário não pensou apenas as diversidades culturais ou a diversidade em si mesma, mas antes se mostrou atento às suas relações com os processos duradouros de desigualdades sociais na sociedade brasileira. Bastante diferente, portanto, de Gilberto Freyre. A cultura em Mário não é uma unidade expressiva homogênea ou um campo do consenso e da reconciliação, mas antes da tensão e do conflito em aberto.

Mário entende que nos processos socioculturais estruturas e formas podem combinar-se para gerar algo novo, o que já coloca em suspeita qualquer pretensão de definir identidades “puras” ou “autênticas”, uma vez que elas são sempre abstrações da história das misturas em que se formaram e dos conflitos que a construíram. No entanto, Mário também está atento ao fato de que os permanentes fluxos e trocas que as constituem não acarretam integração ou fusão harmoniosa, mas contradições e, sobretudo, assimetrias. Economia política e cultura articulam-se — não é como se as desigualdades socioeconômicas fossem não-simbólicas ou as diferenças culturais fossem imateriais ou apolíticas. No processo histórico as diferenças culturais sempre assumem significado dentro de contextos de aguda desigualdade social e econômica e podem, na prática, ser tão hierarquizadas quanto renda, riqueza e prestígio. Isso implica reconhecer que a aspiração à cópia dos padrões universais imaginados pode representar não simplesmente colonização mental, ou capitulação diante do imperialismo cultural, mas também um anseio de igualdade, uma reivindicação por condições de vida melhores, um desejo de superação da subordinação explícita.  

Tanto a intepretação do Brasil de Mário de Andrade, quanto a ideia de movimento cultural que forjamos, eu e Maurício Hoelz, a fim de para ela criar uma nova inteligibilidade sociológica, implicam, necessariamente, sentidos inacabados e abertos. Tentamos encontrar e explorar justamente esse ponto de intersecção entre um pensamento que só existe em movimento – não apenas porque traduz em sua forma aberta o processo social, mas também porque conforma uma ética e uma política da interlocução e, portanto, do reconhecimento do outro – e um pensamento que se faz movimento. “O ritmo é a organização expressiva do movimento”, define Mário. Insistimos que não basta considerar que a mudança social na sociedade brasileira se realiza mais pela reiteração e acomodação do que apenas pela ruptura para se constatar a atualidade de uma intepretação. Se fosse assim, toda obra do passado seria atual. O poder de interpelação contemporânea de Mário de Andrade é também de ordem teórica, e o testamos na concepção e fatura de textos e nas análises críticas elaboradas por ele de um ponto de vista muito próprio, num cerrado e criativo corpo a corpo com as questões do seu tempo e, anacronicamente, do nosso tempo ainda. Eliane Robert Moraes nos mostra, agora, que a erótica é mesmo parte crucial desse movimento. 

III

Como você pode ver, cara Eliane, estou deliberadamente abrindo frentes de conversa com você, na esperança que ela dure. Começamos recentemente, num seminário anterior, pela hipótese de que catolicismo e erótica não necessariamente se excluem no pensamento e na estética de Mário, lembrando, inclusive, como o ideal de autoaperfeiçoamento da Bildung se relaciona com a religião, nesse caso, pela colaboração do pecado, categoria crítica empregada por ele desde a sua primeira recepção da poesia de outro mineiro, Murilo Mendes. Hoje segui mais pela exploração inicial da hipótese de como podemos acrescentar a erótica como uma dimensão na articulação entre imaginação e sentimento brasileiros, causa maior do movimento cultural a que Mário dá vida; e de como a abertura para o outro, a afirmação de uma política de reconhecimento e de uma relação dialógica e de escuta atenta, em especial com a cultura popular, trazem também elementos de sua erótica. A relação de Mário de Andrade com Chico Antonio, desconfio, talvez condense toda essa discussão: catolicismo, abertura para o outro, dialogia programática e cultura popular. Mas ela vai ficar para a rodada carioca da discussão do seu livro.


[1] Texto apresentado no seminário Mário Eros de Andrade, dia 25 de maio de 2022 na Biblioteca Mário de Andrade, São Paulo.

[2] Todas as citações de Mário de Andrade foram retiradas de André Botelho & Maurício Hoelz: O modernismo como movimento cultural. Mário de Andrade, um aprendizado (Petrópolis: Editora Vozes, 2022).

Ilustrações de Joana Lavôr

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