Ocupação Mulheres 2023 | Desigualdades de gênero, por Verônica Toste Daflon

Em mais uma atualização da Ocupação Mulheres 2023, série de matérias sobre mulheres intelectuais, gênero, feminismos e temas afins, publicamos um texto sobre desigualdades de gênero, no qual a autora sugere que a literatura sobre gênero e organizações oferece perspectivas sociológicas valiosas para elaborar diagnósticos e ações. O texto é assinado por Verônica Toste Daflon, professora de sociologia da UFF.

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Boa leitura!


Desigualdades de gênero: é preciso olhar para as redes e organizações

Por Verônica Toste Daflon

Imagens e infográficos são instrumentos poderosos de comunicação e enquadramento de questões de interesse público. Esse tipo de recurso está presente nas matérias jornalísticas, nos artigos de opinião, e envolve o trabalho criativo de comunicar “o essencial” sobre um assunto. Com o tempo, essas imagens passam a fazer parte do imaginário, das conversas e da forma como enxergamos a realidade. Ao digitar a expressão “desigualdade de gênero” no Google imagens e reunir os principais resultados, identificamos um quadro interessante.

Primeiro, as imagens sugerem quais são e onde se manifestam as desigualdades de gênero mais importantes: o ambiente das firmas, das carreiras profissionais e dos empregos formais. Elas chamam atenção para as desigualdades salariais no topo, ou para o famoso “teto de vidro” – termo que descreve as barreiras invisíveis que impedem mulheres de chegar a posições mais altas na hierarquia das empresas. Segundo, praticamente todas usam a metáfora da pista de corrida, ladeira ou escada. Essa é uma metáfora interessante para o mercado de trabalho, porque o retrata como um ambiente de competição justo, ordenado, impessoal e regido por regras claras e transparentes. Sugere que os indivíduos podem chegar na frente se tiverem bom desempenho. No caso de gênero, a sugestão que fica é que a corrida só se torna injusta porque existem barreiras e obstáculos, porque os outros competidores trapaceiam, ou porque as mulheres saem de um ponto de partida desprivilegiado.

De modo geral, as imagens representam uma fonte de anomalias a ser corrigida: os indivíduos. Essa representação da relação entre o mercado e as desigualdades é antiga e tem origem na forma mais habitual de se pensar em questões sociológicas no senso comum do século XIX em diante: a visão individualista. Aplicada ao mercado, ela esconde o fato de que na verdade ele é uma teia densa de relações sociais. Como nomear um problema já implica sugerir um tipo de solução, se o problema são os indivíduos, as soluções também devem ser individuais. A perspectiva individualista inspira muitas iniciativas importantes de combate a vieses e estereótipos e esforços para mudar culturas organizacionais por meio de estratégias de sensibilização e treinamento voltada a indivíduos. Embora sejam louváveis, há crescentes dúvidas levantadas por pesquisas empíricas acerca da sua efetividade (2009). No limite, o perigo das soluções individualistas está em tentar resumir tudo a mudanças comportamentais ou subjetivas.

Nessa perspectiva, assim como o desempenho no mercado é uma questão de empenho individual, o problema da desigualdade é simplesmente uma questão de superação pessoal ou de bondade. Sentimentos e moralidades são importantes. No entanto, abordagens individualistas deixam de lado mecanismos de produção de injustiças e desigualdades que são invisíveis – e até por isso mesmo mais eficazes (Tomaskovic-Devey e Avent-Holt, 2019). O problema é que gênero e outras desigualdades estão imbricados nas estruturas e organizações. Mudar as pessoas é condição necessária, mas está longe de ser o suficiente.

As desigualdades de gênero e raça estão profundamente cravadas na ordem econômica. Mercados e organizações são modelados por essas desigualdades e costumam resolver problemas do dia a dia contando com elas. Por isso, é equivocada a ideia de que a estrutura de oportunidades de uma sociedade pode ser representada como uma linha vertical, uma pirâmide – ou uma corrida. Isso reforça a ideia de que o mercado é aberto e a mobilidade social é livre para cima ou para baixo. A crença nessa competição livre e na superioridade de quem vence a corrida ajuda a naturalizar a desigualdade.

E assim deixamos de fazer perguntas cruciais: como as próprias profissões e nichos ocupacionais são criados em primeiro lugar? Quais são as suas relações de interdependência? Como trabalho doméstico remunerado e não remunerado se relaciona com o trabalho realizado nas firmas e organizações? Porque existem ocupações consideradas “masculinas” e “femininas”? Por que existem desigualdades raciais no mercado de trabalho?

Para falar sobre isso, vou me apoiar em dois sociólogos que olharam para essas questões: Joan Acker (2006) e Charles Tilly (1998). Acker fala sobre como as desigualdades de gênero, raça e classe atravessam as organizações de uma maneira fundamental. Tilly mostra, entre outras coisas, a importância das redes de relações sociais e da extração de recursos e concentração poder como mecanismos de produção das desigualdades duráveis como as de raça, gênero, migração e outras.

Desigualdades organizacionais

As sociedades industriais introduziram uma novidade: a separação física entre o local do trabalho e o lar. Evidentemente, sempre houve uma diversidade muito grande de experiências com o trabalho. Entre a classe trabalhadora, por exemplo, homens eram empregados no mercado formal ou informal, e mulheres em posições de serviço – isso sem falar da população de trabalhadores rurais, em que a casa permanece sendo também um local de trabalho (Wharton, 2005). No entanto, entre a classe média, o local de trabalho tornou-se um domínio masculino. A ideologia das “esferas separadas” colocou homens no espaço público e mulheres no privado. E foi essa experiência que se tornou a base para as normas culturais, institucionais e para a própria organização do trabalho nas empresas (Wharton, 2005).

Os empregadores definiram a organização e as rotinas do trabalho tendo o homem de classe média como modelo. A jornada de trabalho, a dinâmica do tempo e as necessidades de deslocamento foram estabelecidos sob a premissa de que o trabalho remunerado no mercado é feito por homens. E um tipo particular de homem: aquele totalmente dedicado ao trabalho, sem responsabilidades ou demandas familiares. Esse homem, por sua vez, deveria sempre contar com uma mulher para administrar a casa, o cotidiano e a família (Wharton, 2005). O trabalho tornou-se um domínio generificado.

Em vários lugares do mundo, de 1970 em diante houve uma expansão da economia de serviços e uma entrada massiva de mulheres de classe média nesse setor. Outros processos importantes também aconteceram: a queda dos salários dos homens, o aumento dos divórcios, o aumento da educação feminina, mudanças culturais. Mas o mercado de trabalho, longe de parecer uma pista de corrida, permaneceu profundamente estruturado por gênero.

Joan Acker (2006) fala sobre como as rotinas de trabalho, a distribuição de tarefas, as formas de tomada de decisão, as promoções e recompensas em firmas e organizações são fortemente influenciadas por gênero, raça e classe. Se as mulheres têm mais obrigações fora do trabalho e o trabalho continua organizado sob as mesmas premissas e rotinas, isso colabora para a distribuição desigual por gênero nas hierarquias da organização.

Além disso, a entrada dessas mulheres de classe média no mercado de gerou um dilema: o que fazer com a casa e as crianças? Depois da II Guerra Mundial, os países europeus construíram uma ampla rede de proteção para ajudar as mulheres a ficar no mercado de trabalho, sobretudo porque precisava delas para reconstruir a economia destruída pela guerra. Nos Estados Unidos, os governos praticamente forçaram as mulheres a voltar ao lar para que o mercado de trabalho pudesse ser reocupado por homens – uma das causas dos protestos de mulheres que foram eclodir nos anos 1960 (Wharton, 2005).

Já no Brasil, as desigualdades duradouras de classe e de raça ofereceram uma solução perversa: mulheres pobres, negras e migrantes seguraram as pontas do lar das famílias de classe média na condição de empregadas domésticas (Lima, 2019). Esse exemplo mostra que, longe de ser uma escada ou pista de corrida, o mercado de trabalho se parece mais com conjuntos de células, se estrutura a partir das desigualdades e pode contribuir para reforçá-las. As ocupações não estão em uma hierarquia ou escala, simplesmente. Elas estão relacionadas umas com as outras, formando uma estrutura altamente interdependente.

Além disso, as desigualdades podem desempenhar certas funções para o mercado de trabalho. Por exemplo, contratar seletivamente pessoas com menos poder pode ser uma forma de exercer controle e garantir previsibilidade e obediência nas relações de trabalho. Para certas funções, a pessoa ideal é uma mulher, que aceitará ordens e salários mais baixos. Pode acontecer ainda de ser uma mulher negra ou migrante (Acker, 2009). Não se está aqui sugerindo que tais pessoas são “naturalmente” subservientes: esse comportamento reflete a própria falta de poder, influência e redes de conexão com os poderosos que marca a experiência e as oportunidades dessas pessoas. Como ensina Norbert Elias (2000), muitos passam então a interpretar essa inferioridade de poder como sinal de inferioridade humana.

Desigualdades relacionais

Seleções para empregos acontecem na maior parte das vezes através de redes e contatos, o que torna mais fantasiosa a imagem da ladeira ou da corrida (Granoveter, 1973). Afinal, como os competidores chegaram até a linha de largada? Geralmente, as pessoas não pensam sobre as redes ou supõem que a informação sobre as oportunidades de trabalho flui livremente. No entanto, numa sociedade generificada, racializada e composta por diferentes classes sociais, as redes entre homens e mulheres, negros e brancos costumam ser segregadas. Como trabalhadores passam aos seus amigos, parentes e conhecidos as oportunidades de trabalho, a segregação das redes é um fator fundamental.

No caso de gênero, o processo de segregação de redes é reiterado desde a infância, quando “meninos” e “meninas” são desestimulados a brincar juntos e incentivados a cultivar interesses diferentes. Na vida adulta eles irão formar redes muito diferentes. No caso de raça, a segregação das redes ocorre em razão de desigualdades duráveis e cumulativas, que posicionaram pessoas negras nas classes baixas. Preconceitos, discriminação e estereótipos também desempenham um papel ativo na manutenção de redes segregadas. No entanto, na maior parte das vezes não é sequer necessário discriminar, pois as distâncias sociais já fazem o trabalho de manter determinadas pessoas distantes das oportunidades. Frequentemente essa segregação é também territorial, pode se perpetuar por gerações, e é muito mais forte do que a segregação de redes por gênero. Além disso, mulheres negras estão na interseção dessas segregações de redes: são segregadas por gênero das redes masculinas, e por raça das redes de pessoas brancas da classe média e da elite.

Charles Tilly (1998) explica como é importante observar o poder das relações e das redes na produção e sustentação de desigualdades. Quando um determinado conjunto de pessoas consegue ter acesso a poder e recursos, elas têm a tendência a criar redes de solidariedade que permitam manter o controle sobre esses bens. Para que possam sustentar sua própria rede e garantir que manterão seu acesso privilegiado a benefícios, essas pessoas vão excluir os “de fora”.

Essa exclusão, por sua vez, resolve problemas práticos da organização:  por exemplo, no caso de gênero, impede que as próprias rotinas do trabalho mudem por demanda de mulheres e que isso possa ameaçar as hierarquias internas estabelecidas, a coesão do grupo mais poderoso e as formas de circulação de recursos e status. Sendo assim, aqueles que vêm de fora ameaçam o poder instituído, as rotinas, o status quo. Não pela sua “virtude” essencial, mas por injetar novidade, desestabilizar hierarquias, por questionar as regras do jogo e trazer outras redes para dentro do poder. Ação e estrutura estão fortemente imbricadas nesses processos e, portanto, eles não podem ser reduzidos a inclinações individuais a ser corrigidos unicamente pela sensibilização.

Conclusões

Mais do que uma questão de superação pessoal, as desigualdades de gênero devem ser combatidas com mudanças organizacionais e políticas públicas. Por isso, não podemos nos limitar a soluções individualistas. E precisamos chamar o Estado para a conversa, pois firmas, empregos e famílias existem na relação uns com os outros e com as instituições estatais. Programas como a renda básica, investimentos em creches, programas de assistência à família, formas de regulação do trabalho e ações afirmativas têm a chance de aumentar o poder de barganha dos desprivilegiados frente aos poderosos. Ainda pouco lida no Brasil, a literatura sobre gênero e organizações oferece perspectivas sociológicas valiosas para elaborar diagnósticos e ações.

A perspectiva das redes mostra também como construir coalizões, pontes, é importante. Nesse sentido, a chave individualista de leitura das desigualdades atrapalha, pois promove a ideia equivocada de que homens, brancos, heterossexuais etc. são essencialmente maus e que o combate às desigualdades é um combate aos seus maus sentimentos. Ao contrário: é necessário fazer esforços para descontruir visões essencialistas, para dessegregar redes – e não para reforçar separações. Como demonstra Joan Acker (2006) no seu trabalho com organizações, experiências bem-sucedidas de redução de desigualdades organizacionais costumam vir da combinação de pressões externas e a colaboração de aliados internos.

Referências

ACKER, Joan. (2006). “Inequality Regimes: Gender, Class and Race in Organizations”. Gender and Society, v. 20, n. 4, p. 441-464.

ELIAS, Norbert & SCOTSON, John. (2000). Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro, Zahar

GRANOVETTER, Mark. (1973). “The strength of weak ties”. American Journal of Sociology, University Chicago Press, v. 78, n. 6, p. 1930-1938.

LIMA, Márcia & PRATES, Ian. (2019). “Emprego doméstico e mudança social: reprodução e heterogeneidade na base da estrutura ocupacional brasileira”. Tempo Social, v. 31, n. 2, p. 149-172.

PALUCK, Elizabeth Levy & GREEN, Donald P. (2009). “Prejudice Reduction: What Works? A Review and Assessment of Research and Practice”. Annual Review of Psychology, v. 60, p.339-367

TILLY, Charles. (1998). Durable Inequality. Berkeley, University of California Press.

TOMASKOVIC-DEVEY, Donald; AVENT-HOLT, Dustin. (2019). Relational Inequalities: an organizational approach. Oxford, Oxford University Press. 

WHARTON, Amy. (2005). The Sociology of Gender: an introduction to Theory and Research. Hoboken, Wiley-Blackwell.

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