Ocupação Mulheres 2023 | Gênero, cuidado e políticas públicas, por Bila Sorj

Neste 8M, na primeira atualização da Ocupação Mulheres 2023, série de matérias sobre mulheres intelectuais, gênero, feminismos e temas afins, publicamos um texto da professora e pesquisadora feminista Bila Sorj, PPGSA/UFRJ. Nele, a autora mostra como o trabalho do cuidado e gênero se entrelaçam, demandando o aprofundamento da discussão de políticas públicas voltadas às demandas do cuidado.

Acompanhem ao longo do dia nossas postagens da Ocupação. Para saber mais sobre a iniciativa, clique aqui.

Boa leitura!


Gênero, cuidado e políticas públicas

Por Bila Sorj

A promoção de sistemas integrais de cuidado, orientados a cuidar, assistir e apoiar as pessoas que assim o necessitam, ocupa, hoje, um lugar central nas discussões internacionais sobre os desafios sociais e políticos para uma sociedade mais justa e sustentável. No Brasil, este debate tem sido muito vigoroso na academia, mas sua repercussão política é tímida ainda. As ações de cuidado permanecem fragmentadas e carecem de uma perspectiva atenta às desigualdades de gênero, classe e raça.

Há muitas décadas, os estudos feministas e de gênero, baseados em pesquisas sólidas, mostram que o regime de cuidado prevalecente no país, no qual se atribui às mulheres a maior parte deste trabalho, seja ele de forma remunerada ou não remunerada, com severas consequências sobre a autonomia econômica das mulheres, sobre a sua participação na cultura, no lazer, na política e em tantas outras esferas da vida social.

Foi somente com a pandemia da Covid-19 que a importância do cuidado se projetou na mídia e passou a ser discutida no espaço público mais amplo. A pandemia exibiu uma das principais tensões das sociedades contemporâneas: a desvalorização social desse tipo de trabalho, o cuidado, e a sua enorme importância para a sobrevivência das pessoas e da sociedade. Nessas circunstâncias, as mulheres aumentaram muito a sua carga de trabalho doméstico, que se mostrou essencial para aplacar os efeitos mais severos da política de isolamento. Assim, a pandemia provocou maior sensibilização de governos e da opinião pública sobre a necessidade de implementar políticas públicas abrangentes nesta área. Neste contexto surgiram várias iniciativas de criação de sistemas nacionais de cuidado na América Latina. A primeiro foi no Uruguai, em 2015, mas, desde 2020, programas semelhantes se estenderam para Argentina, Costa Rica, México e Bogotá, ao nível distrital.

O cuidado compreende as atividades que visam o bem-estar diário das pessoas. Mais especificamente, o termo caracteriza as relações entre prestadores de cuidado e beneficiários de cuidado em situações de dependência: crianças, pessoas com deficiências e doenças crônicas, idosos e inclui, também, atividades mais instrumentais, vinculadas ao trabalho doméstico como cozinhar, lavar etc.

Na provisão do cuidado coexistem diferentes atores sociais que se combinam de maneira diversificada: a família (especialmente, as mulheres, sobretudo as mães, que cuidam das crianças e dos idosos na casa, ou as avós que cuidam dos netos); o Estado, que fornece serviços públicos de cuidado por meio de creches, escolas, hospitais etc.; o mercado, quando o cuidado passa a ser delegado às trabalhadoras domésticas e cuidadoras, ou às creches, hospitais, escolas particulares e às Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPI), mediante relações mercantis. E, finalmente, o último ator que provê o cuidado são as comunidades que, por meio de relações de solidariedade e reciprocidade entre vizinhos, assumem necessidades de cuidado das pessoas.

No Brasil, o regime de cuidado tem duas características principais. A primeira é a prevalência da família, que transparece na quantidade de tempo que as mulheres dedicam ao cuidado na semana (os homens dedicam bem menos, em geral, pouco mais de um terço do tempo das mulheres), de modo que a reprodução social no país ocorre sobretudo pelo trabalho não remunerado das mulheres no interior dos domicílios, no espaço privado.

A segunda característica refere-se a presença de um regime altamente desigual, não só em termos de gênero, mas também em relação à classe e raça. As famílias mais favorecidas compartilham boa parte dos serviços de cuidado com o mercado, enquanto as de menor renda, com forte presença da população negra, lançam mão de outros arranjos, que envolvem a família extensa ou relações de vizinhança. Mesmo para aquelas famílias que tem acesso às creches e às pré-escolas públicas, o fato destas instituições funcionarem em tempo parcial indica que o trabalho de cuidado recai basicamente sobre a família.

É importante salientar que pelo lado da oferta do cuidado também ocorrem profundas desigualdades de gênero, classe e raça. As mulheres mais pobres e negras estão sobrerrepresentadas entre as provedoras de cuidado, sejam elas trabalhadoras domésticas, cuidadoras ou auxiliares de enfermagem. Estas ocupações, que foram muito aplaudidas durante a pandemia, estão na base da pirâmide salarial, boa parte sem proteção social e sujeitas às condições de trabalho muito precárias.

Tal modelo de cuidado intensamente estratificado, além de ser injusto, está chegando no seu limite, em razão das profundas mudanças sociais ocorridas nas últimas décadas. A ampliação da participação de mulheres e mães no trabalho remunerado, as mudanças nas estruturas familiares, com a expansão das famílias monoparentais femininas e o envelhecimento progressivo da população, que tem necessidades de cuidados cada vez maiores e mais complexas, desafia o padrão tradicional de provisão de cuidado. Vivemos o que muitos autores chamam de uma “crise do cuidado”.

Diante deste cenário, pesquisadoras na área de estudos de gênero e feministas têm discutido no Brasil e em vários países da América Latina políticas públicas para lidar com o nó estrutural das múltiplas desigualdades sociais, na chave do bem-estar e sustentabilidade como horizonte do desenvolvimento.

As ideias ou os discursos que estruturam as propostas de políticas integrais de cuidado, abraçadas por feministas, incluem o reconhecimento do cuidado como um direito humano. Apesar da diversidade social, o cuidado é pensado como inerente à condição humana, sem o qual a vida seria impossível. Os recém-nascidos não sobreviveriam às suas primeiras horas fora do útero, as crianças não teriam qualquer socialização para participar da vida coletiva, muitas doenças e deficiências seriam fatais, a dependência durante o envelhecimento poderia comprometer a vida dos idosos.

O reconhecimento que todos têm direito a “cuidar, a ser cuidado e a cuidar de si próprios (autocuidado)”, como advogam as feministas, permite enfrentar várias dimensões das desigualdades sociais, na medida em que o direito ao cuidado é dissociado da condição ou posição no mercado de trabalho, isto é, o acesso a um conjunto de benefícios é independente do regime formal de emprego assalariado. Reconhecer este direito como de todos significa, igualmente, que as mulheres não são o grupo prioritário de prestação do cuidado, e, finalmente, concebê-lo como um direito universal elude a prática excludente de políticas focalizadas em categorias socioeconômicas específicas.

Ao desafiarem entendimentos e práticas tradicionais sobre o cuidado, os novos construtos cognitivos formulados pelas estudiosas de gênero e feministas entraram em debate e tem afetado atores coletivos e individuais na formulação de normas e instituições de maneira a forjar e mudar comportamentos.

Imagem: As Duas Fridas (1939), Frida Kahlo. Retirado de: https://www.ebiografia.com/vida_trajetoria_frida_kahlo_obras/

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