
Neste último dia da Ocupação Mulheres 2023, série de matérias sobre mulheres intelectuais, gênero, feminismos e temas afins, publicamos um texto encomendado para a Rede Brasileira de Mulheres Cientistas, assinado por Katarini Giroldo Miguel e Rafaella Lopes P. Peres, ambas professoras de jornalismo da UFMS. O texto discute o surgimento da rede em 2021, propondo uma ciência com perspectiva de gênero, e apresenta algumas de suas atividades e desafios.
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Boa leitura!
“Não está claro se existe uma forma feminina de fazer ciência, mas o modelo colaborativo talvez ajude a descobrir”
Por Katarini Giroldo Miguel e Rafaella Lopes P. Peres
Uma rede de acolhimento. De conhecimento. De mulheres resistentes.
Em uma sexta-feira à noite, no final de abril de 2021, um grupo de pesquisadoras cientistas se reuniu remotamente, de forma voluntária, em meio ao trágico contexto da pandemia da Covid-19 e afetadas pela crise sanitária-econômica-moral-científica que assolava o país, para propor o desenvolvimento de estratégias de ação e pressão política que garantisse proteção às mulheres brasileiras. Naquela ocasião, doze docentes-pesquisadoras escreveram e divulgaram a carta aberta “Em defesa da vida das mulheres na pandemia”, com foco em mobilizar o conhecimento acadêmico para adensar políticas públicas de suporte às mais vulneráveis. O documento denunciava:
“No momento em que publicamos a Carta, 360 mil brasileiros/as morreram em razão da pandemia de Covid-19. Como é de conhecimento da comunidade nacional e internacional, parte significativa dessas mortes foi provocada pela decisão do Governo Federal de afrontar a ciência e desprezar a vida da população brasileira, colocando em risco aqueles que tinha por dever proteger. O agravamento das condições sociais, econômicas e psíquicas decorrentes da ausência de políticas públicas adequadas para a contenção da doença tem esgarçado o tecido social e lançado milhares de brasileiros e brasileiras à própria sorte”.
Mais de três mil mulheres referendaram a carta e se uniram para formar uma inédita mobilização de cientistas atuantes em prol de uma ciência com perspectiva de gênero e a partir de seis temas-eixo: saúde, violência, educação, assistência social e segurança alimentar, trabalho e emprego, moradia e mobilidade. Se autogestava aí a Rede Brasileira de Mulheres Cientistas (RBMC) que, como o próprio nome já diz, é uma organização colaborativa formada por pesquisadoras de todas as regiões do Brasil e algumas instituições do exterior, com caráter multidisciplinar e abrangendo todas as grandes áreas do conhecimento científico nacional.
Em uma das primeiras publicações realizadas em nome da RBMC, a frase que apresenta os caminhos dessa conexão nacional enseja o tom que moveu e move a defesa da ciência feita por mulheres e que intitula este texto[1]. Uma ciência plural, diversa, afeita à colaboração, atenta à compreensão do mundo à sua volta, aberta ao diálogo e à mudança, consciente da intencionalidade de seus estudos e dos usos que se farão deles. Em dois anos de atividade, a RBMC realizou diferentes diálogos com setores da sociedade, mesas de debates, ciclos de conversa, videocasts, campanhas, notas técnicas que embasaram decisões políticas; ampliou a visibilidade das mulheres que produzem ciência e contribuiu para a ampliação da presença da mulher nos espaços de pesquisa, já responsáveis, em 2020, por 40% da produção científica (OPENCIENCIA, 2020). Jogou luz à notória dificuldade do gênero feminino ascender como pesquisadoras e cientistas, tendo em vista o contexto estrutural que o limita à vida privada, aos cuidados e à maternidade, sem ofertas de políticas públicas que promovam a ocupação de espaços de produção de ciência e tecnologia, em universidades, pós-graduações e afins.
A RBMC investe esforços e equipes na construção de grupos pontuais de fortalecimento da atuação das mulheres na ciência, como o projeto Mulheres em STEM, e em bancos de dados que sirvam como fonte de consulta e pesquisa sobre iniciativas, programas, políticas, projetos, ações etc., a exemplo do Banco de Iniciativas da RBMC. Também organiza o cadastro e busca de pesquisadoras e cientistas brasileiras, para a divulgação de perfis de mulheres cientistas integrantes da Rede, por meio do Banco de Pesquisadoras da RBMC. Esses repositórios – que compõem um sistema de informação capaz de contribuir para demarcar espaço e direitos -, foram pensados inicialmente para reduzir o impacto da pandemia, mas vão além: permitem conhecer as mulheres que fazem pesquisa/ciência no Brasil a partir do local em que vivem, da instituição na qual trabalham e/ou dos temas que pesquisam.
Há quase dois anos (completados em abril deste ano) e, essencialmente por meio de esforços voluntários, a RBMC mantém equipes de trabalhos em áreas diversas, desenvolvendo projetos e promovendo a comunicação científica e a valorização da atuação da mulher na ciência, em especial no Brasil. Esse empenho coletivo de movimentação focada na igualdade de gênero, contudo, esbarra em uma série de desafios que vão da falta de financiamento e tempo de dedicação voluntária ao conhecimento projetual e de comunicação consciente e vigilante que possa reverberar informações embasadas, ratificadas e advindas de estudos aprofundados (Peres & Teixeira, 2022). Para este corpo se manter vivo e em movimento são necessárias estratégias de comunicação e mobilização que possam disseminar valores e objetivos para a formação de uma necessária política científica feminista. A comunicação ativista precisa pautar as condições das mulheres em diferentes contextos sociais, de maneira propositiva e situada em estudos e levantamentos sistematizados, realizando divulgação científica, produção de jornalismo científico e visualidades, propiciando, assim, um importante laboratório de conteúdos científicos com perspectiva de gênero no seio das tantas possibilidades midiáticas.
Consciente de seu papel social e atenta à relevância das lutas sociais e de gênero, a RBMC abriu espaço não apenas para uma ciência engajada e questionadora das desigualdades, como também para a possibilidade de um conhecer e reconhecer a realidade – especialmente da ciência – plural brasileira. Nesse sentido, nós, enquanto docentes, pesquisadoras e cientistas do campo da comunicação, acreditamos que encontrar soluções para amplificar o diálogo e a discussão de questões da vida diária e coletiva pode atender e fortalecer a luta pela equidade de gênero, contra uma estrutura patriarcal limitante e mortífera, há muito enraizada em nossa sociedade. Acreditamos, ainda, em uma prática presente desde os primórdios da RBMC, que deveria ser replicada em todas as relações produtivas, que está na esteira do afeto, do cuidado e do respeito, impactante, em grande medida, na maneira como dialogamos entre nós. “Tentamos respeitar os horários de descanso e não marcar reuniões tarde da noite, e evitamos trabalhar no fim de semana – embora isso acabe acontecendo […] São cuidados que deveriam ser replicados na academia, para torná-la um ambiente com mais gentileza e cooperação”[2].
O que há de comum entre todas essas mulheres? O compromisso com a ciência; a disposição para ativar os conhecimentos acumulados ao longo dos anos em universidades e institutos de pesquisa para amenizar as consequências da pandemia e encontrar alternativas para um país mais justo; a compreensão de que é preciso falar dos efeitos da pandemia sobre as mulheres e construir alternativas que levem em conta as desigualdades de gênero (RBMC, 2022: 10).
A RBMC, portanto, nasceu essencialmente de incômodos e desejos. De doze mulheres passou para milhares, um crescimento ironicamente endêmico, em meio a uma pandemia. Por um pouco mais de um ano se movimentou, literalmente, como uma rede. De ações. De apoio. De conhecimento. De resistência. Avançou muito e patinou um pouco, como acontece quando nos deslocamos sem o apoio, inclusive financeiro, necessário. Em um fim de tarde de fim de ano, em dezembro de 2022, a partir de conversas já gestadas, o grupo executivo da RBMC abriu caminho para uma nova configuração, no horizonte de uma institucionalização que permita objetivos mais claros, apoios formalizados e estrutura profissionalizada. O ano de 2023 se inicia na intenção de consolidar a Rede e materializar os ativismos espontâneos em amadurecimento político.
Ainda que a dinâmica de atuação mude, a filosofia de trabalho permanece. As mulheres precisam se manter no centro dos debates sobre as políticas públicas, agindo com firmeza pelo nosso futuro comum. É o momento de apontarmos para o mundo o que queremos e o papel do Estado nele. Ações localizadas e propostas de mudanças estruturais e sistêmicas precisam estar no horizonte. Ainda temos muito a construir, especialmente em termos étnico-racial, e só seremos capazes nos unindo, na nossa diversidade, na articulação de movimentos sociais, na luta por políticas públicas embasadas na experiência e em mudanças centradas que exigem o fim da violência na nossa interdependência e no valor de cada vida.
É fato que as crises impactam diferentemente as diversas camadas sociais, incluídas aí as questões de gênero. Nos últimos anos, com a pandemia e o esvaziamento de políticas públicas que apoiam a inclusão de questões relativas à igualdade de gênero, raça e sexualidade, observamos o entrelaçamento de múltiplas crises que atingem as mulheres de maneira específica, revelando e exacerbando desigualdades e vulnerabilidades preexistentes. Além disso, apesar de batalharmos incansavelmente pelo combate a estereótipos de gênero e atuação das mulheres na ciência – considerando que, segundo a Capes, 54,2% dos pós-graduandos são mulheres, menos de 33% são bolsistas de Produtividade em Pesquisa do CNPq, menos de 7% dessas bolsas são destinadas a mulheres negras e, ainda, poucas mulheres alcançam a carreira docente e a ocupação de cargos de liderança acadêmica -, ainda é urgente lutar por direitos básicos, como o direito à vida. Um pouco antes do ‘Dia Internacional da Mulher’ deste ano, a pesquisa Visível e Invisível, realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostrou crescimento de todas as formas de violência contra a mulher em 2022. A pesquisa também apontou que, acima da média mundial de 27%, 33,4% das mulheres brasileiras já sofreram violência física e/ou sexual. Enquanto outros levantamentos, como o do Monitor da Violência, demonstram que os casos de feminicídio e de homicídio de mulheres continuam aumentando na maior parte dos estados brasileiros.
Desde o começo, e continuando, a RBMC se propõe a ampliar debates, atuar em parcerias, difundir experiências, intervir no debate político, conferir visibilidade às mulheres plurais, contribuir para maior autonomia das pesquisas lideradas por mulheres, estimular e fomentar a garantia da proteção social às mulheres e a inclusão social. O compromisso da Rede, desde sua concepção em meio a uma pandemia avassaladora; um pouco depois, já com milhares de integrantes; na continuidade de um esforço diário em coincidir carreiras e aspirações embasadas na igualdade de gênero, tem sido com a vida das mulheres.
Nós, mulheres cientistas, celebramos a potência feminina na construção das ciências transformadoras e reforçamos a luta por respeito, por qualidade de vida, por espaço, por todos os caminhos possíveis de serem trilhados.
É pela vida das mulheres hoje e no futuro.
Notas
[1] Conferir: https://revistapesquisa.fapesp.br/covid-19-uma-batalha-feminina/
[2] Veja: https://revistapesquisa.fapesp.br/covid-19-uma-batalha-feminina/
Referências:
CONCEIÇÃO, Antonio C. Lima da & ARAS, Lina M. Brandão de. (2014). Por uma ciência e epistemologia(s) feminista: avanços, dilemas e desafios. In: Cadernos de Gênero e Tecnologia, n. 29 e 30, ano 11, jan-jun, pp.10-19.
LERNER, Gerda. (2020). A criação do patriarcado: história da opressão das mulheres pelos homens. São Paulo: Cultrix.
OPENCIENCIA. (2020). Disponível em: https://www.openciencia.com.br. Acesso em fevereiro de 2023.
RBMC. (2022). Relatório Anual de Atividades da Rede Brasileira de Mulheres Cientistas. Disponível em: mulherescientistas.org/wp-content/uploads/2022/02/relatorio-anual-RBMC-2021-2022.pdf. Acesso em julho de 2022.
PERES, Rafaella L. P. & TEIXEIRA, Rafaella M. (2022). Design da Informação e Jornalismo com perspectiva de gênero: o caso da Rede Brasileira de Mulheres Cientistas. In: Anais do 45º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – GP Comunicação para a Cidadania. João Pessoa, setembro de 2022.