Resenha | Uma encarnação encarnada em mim: cosmogonias encruzilhadas em Stella do Patrocínio

No post de hoje, a Coluna Primeiros Escritos publica uma resenha do livro Uma encarnação encarnada em mim: cosmogonias encruzilhadas em Stella do Patrocínio, de Bruna Beber, escrita por Ceci Penido (PPGSA/UFRJ).

No texto, a autora faz uma reconstrução das principais teses do livro, capítulo a capítulo, ao mesmo tempo em que posiciona esta pesquisa no panorama dos trabalhos mais recentes sobre Stella do Patrocínio no Brasil.

Boa leitura (e escuta)!


UMA ENCARNAÇÃO ENCARNADA EM MIM – cosmogonias encruzilhadas em Stella do Patrocínio, de Bruna Beber

Por Ceci Penido (PPGSA/UFRJ)

Introdução da resenha

Uma encarnação encarnada em mim: cosmogonias encruzilhadas em Stella do Patrocínio, livro de Bruna Beber lançado em abril de 2022, é baseado em sua dissertação de mesmo título, defendida um ano e três meses antes no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). A dissertação de Bruna, pioneira em diversos sentidos, navega ao lado de outros trabalhos acadêmicos lançados recentemente sobre Stella do Patrocínio, poeta e paciente por mais de vinte anos da Colônia Juliano Moreira. Ao lado de sua pesquisa, encontram-se as de Anna Carolina Zacharias, também estudante da UNICAMP, defendida em 2020, e de Sara Ramos, da Universidade Federal de Integração Latino-Americana (UNILA), em 2022.

A relação entre os três trabalhos se faz evidente, tendo as três pesquisadoras, inclusive, participado do podcast da Revista Quatro cinco um (451 Mhz) em conjunto, falando sobre eles. Não à toa, vida e obra de Stella interessam a mulheres, sobretudo estas que veem, no mundo, uma força encantada que opera também através dela e seu falatório. Força esta que, tamanha, expande sua existência e(m) voz para além dos muros do manicômio em que foi compulsoriamente internada. Especificamente sobre esse aspecto se estende o trabalho de Zacharias, intitulado “Stella do Patrocínio: da internação involuntária à poesia brasileira”, que busca investigar as lacunas de sua vida, desapercebidas ao longo dos últimos anos para outros detetives da vida da poeta.

Zacharias, entre outras coisas, descobre o nome real de Stella – lhe adicionando um “l” – através de documentos inéditos no arquivo do Museu Bispo do Rosário. Além disso, consegue fazer contato com seus familiares, desmistificando e trazendo à tona aspectos cruciais da biografia da poeta. Já Ramos revela outra sorte de descobertas. Ainda que, da mesma forma que Zacharias, seu trabalho se baseie em forte crítica às análises feitas em trabalhos acadêmicos sobre o falatório, Ramos se utiliza de larga pesquisa histórica para provar não só que alguns exotizam essas falas, mas também a forte influência do racismo ao longo de décadas de políticas de exclusão, encarceramento e morte, culminando na construção de um discurso de e sobre Stella do Patrocínio.

Além de também propor novas visões acerca de Stella, Beber se ancora por outras paragens. Como diz Edimilson de Almeida Pereira no posfácio do livro: “Beber tensiona o universo da poesia, da antropologia e da psicanálise, afirmando e questionando, simultaneamente, as fronteiras específicas dessas diferentes áreas de conhecimento.” (p. 231) É neste trabalho que mergulharemos nas linhas que se seguem. Esta resenha irá tratar, de forma breve, sobre cada capítulo de seu livro, detendo-se, vez ou outra, em alguns assuntos de maior relevância para quem a escreve e, espera-se, para quem a lê.

Assim, é importante, aqui, dar destaque a alguns detalhes sobre a autora e o processo de criação de sua dissertação e consequente livro. Como narra na introdução do mesmo, sua ideia inicial era produzir um mestrado não em Literatura, mas sim, em Antropologia, fato que será notado ao longo das páginas de seu ensaio. Além disso, e digno de ênfase, Beber é poeta e escritora dos livros: A fila sem fim dos demônios descontentes (Ed. 7Letras, 2006), Balés (Ed. Língua Geral, 2009) Rapapés & apupos (Edições Moinhos de Vento, 2010; Ed. 7Letras, 2012), Rua da Padaria (Ed. Record, 2013), Zebrosinha (Galerinha Record, 2013) e Ladainha (Ed. Record, 2017), o que também se nota em seus escritos ensaísticos sobre Stella.

Introdução do livro

Inicialmente, Beber narra as linhas gerais da existência da poeta, também necessárias aqui, colhidas e levantadas, como anteriormente citado, por Zacharias. Ou seja, que “Stella do Patrocínio foi uma mulher negra nascida no estado do Rio de Janeiro no dia 9 de janeiro de 1941.” (p. 21) No entanto, sua certidão nunca foi encontrada, sem saber-se seu horário ou lugar de nascença. Sabe-se dos nomes de seus pais e irmãos, além dos de três sobrinhos, tendo um deles feito breves relatos sobre sua tia. Neles, diz que ela adorava estudar, ler e escrever, e planejava largar o serviço de doméstica que realizava na Zona Sul do Rio de Janeiro, assim como sua mãe, Zilda Francisca do Patrocínio.

Beber continua a narrar:

Aos 21 anos, no dia 15 de agosto de 1962, Stella foi deliberadamente registrada e encaminhada pela 4ª Delegacia de Polícia, localizada na avenida Presidente Vargas, 1100, para o Centro Psiquiátrico Pedro II, atual Instituto Municipal Nise da Silveira, no bairro do Engenho de Dentro. O motivo tampouco é conhecido, mas à mercê de seu desamparo, foi examinada e diagnosticada: ‘personalidade psicopática mais esquizofrenia hebefrênica, evoluindo sob reações psicóticas’ – e sua sorte foi confiada a este único diagnóstico, que lhe asilaria para sempre do mundo exterior. Quatro anos depois, no dia 3 de março de 1966, foi transferida para o Núcleo Teixeira Brandão, pavilhão de mulheres da Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, onde viveu durante trinta anos e de onde saiu, enfim, aos 51anos de idade, em 20 de outubro de 1992, dia de sua morte, em decorrência de uma hiperglicemia que culminou na amputação de uma de suas pernas e configurou um grave processo infeccioso. (Beber, 2022: 22)

A autora recolheu as informações supracitadas do livro que foi e é referência para a maior parte dos trabalhos sobre Stella do Patrocínio: uma organização de suas falas, versificadas pela filósofa Viviane Mosé, e transformada em Reino dos Bichos e dos Animais é o meu nome, publicado pela editora Azougue em 2001. Estas falas, a que sua autora intitula falatório, foram gravadas entre 1986 e 1988 pela artista plástica Nelly Gutmacher e sua estagiária à época, Carla Guagliardi, em oficinas do Projeto de Livre Criação Artística, de iniciativa da Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV) na Colônia Juliano Moreira (CJM). Além dessas, o conjunto também inclui falas gravadas e transcritas por Monica Ribeiro de Souza, à época estagiária de psicologia da CJM, na ala feminina onde vivia Stella – o Núcleo Teixeira Brandão.

É a partir dessas falas que a estudante de literatura, Beber, vai escrever seu trabalho. As gravações constituem-se em quatro áudios em formato .mp3, totalizando em torno de uma hora e meia de duração, tendo sido recentemente publicizadas por Sara Ramos, junto de sua dissertação, no repositório institucional da UNILA. Antes de iniciar seu trabalho propriamente, Beber cita inúmeras criações artísticas – audiovisuais, teatrais, performáticas, literárias e musicais – do falatório de Stella, além de criar uma breve explicação de como ela própria se aproximou do mesmo e iniciou seu processo de escutálo – verbo muito presente em seu trabalho.

Beber organiza a escuta do áudio do falatório de Stella em torno de algumas ideias. Uma delas é a de que a última, ao se enunciar enquanto sujeito lírico, se torna matéria de sua poesia. E, invocando, é provocada pelo real. Assim, a voz que invoca é também sujeito invocante. Ela se torna, portanto, interlocutora e interlocução de seu falatório. Este, que também é dirigido a outras vozes que a indagam, em uma espécie de entrevista – conduzida por Carla e Nelly – mas que, nos versos de Mosé, estão ocultas. Ao criar incessantemente ideias, a partir de temas recorrentes que ela mesma  traz – o mundo, a família, a casa, o corpo, a cabeça – e que Beber analisa minuciosamente, Stella restitui seu corpo e sua própria existência.

Capítulo 1 – Uma encarnação encarnada em mim: Cosmogonias encruzilhadas em Stella do Patrocínio

No início do primeiro capítulo de seu livro, Beber assume partir de uma ação e de um sentimento antirracista para colocar Stella como Porta-voz de sua voz – conceito que será aprofundado no final da obra – afirmando-a como sujeito que busca retomar seu arbítrio e seu corpo por meio da voz, da palavra oriunda da vibração de uma garganta de carne [1]. Assim, analisa sua enunciação a partir do que foi dito e pela maneira como foi dito, através da carga de sentimento poético do falatório e dos contextos invocados por ele. Desse modo, ela o insere em diversas cosmogonias e mitologias, desenhadas na história e no caráter divino de quem ela chama de profeta e poeta: Stella do Patrocínio. “Nunca pela loucura, jamais pelo delírio.” (Beber, 2022: 48)

Para propor essa nova escuta, Beber busca novos cenários para abrigar os diálogos que ocorrem nas gravações, não de forma ficcional, mas a partir de releituras que deslocam a escuta e o discernimento pela imaginação histórica. Passando pela Antiguidade ocidental, em seguida pela mitologia iorubá, ora entre povos amazônicos, passando por tempos e geografias extremamente distantes e extensos, os cenários propostos são: 1) Delegacia de polícia, 2) Consultório de psicanálise, 3) Rua, 4) África Ocidental, Mali, 5) Grécia Antiga, 6) A Galiléia de Jesus, 7) Gênesis, 8) O Cavalo e o Reino do Meio Celeste (que se subdivide em “O Cavalo e outros bichos/ Diamantina”), 9) Bacia do Rio Uaupés, Amazônia, que desvia em um braço intitulado “Refrões” para desembocar no cenário 10) Casa de Umbanda, voltando aos “Refrões”, relacionando-os também com o Cenário 5) e desembocando nos braços “Mensageiros”, “Exu” e “Dentro e fora”, para finalmente terminar no cenário) 11) Centro espírita.

Assim, a partir dessas nomeações, Beber estabelece seus diálogos místicos, históricos, culturais e filosóficos com a voz de Stella. Após configurar essa espécie de cama-paisagem ao falatório, a autora aponta para uma nova camada do mesmo, que seriam seus personagens, ou seja, figuras que a poeta evoca ao longo de suas conversas com Nelly e Carla, como “Doutora Elizabete”, Marília (ou Marli), Anjos da Guarda, Um Homem, Gilda ou Malezinho Prazeres, que são estopins para a elaboração de seus pensamentos, ou, como no caso de Marília, pessoas de carne e osso que interrompem seu fluxo de pensamento ou servem como interlocutoras desses diálogos. E, por fim, encerra este capítulo após falar dos temas já citados aqui anteriormente: “mundo, família, casa, cabeça e corpo”, trazendo reflexões sobre o que ela chama de “Metafalatório”, “Porta-voz” e “A escuta e o tempo”.

Capítulo 2 – A fala, o canto, a voz

Tanto são importantes os temas acima, que Beber dedica um capítulo inteiro aos mesmos, se distanciando um pouco da análise “semântica” do falatório, para adentrar nas modulações próprias de sua oralidade. “O som, assim como a luz, o perfume e o verme, é a origem e o retorno extratemporal do ser indeciso entre o eco e a visão. Logicamente, esse som primevo é a voz, que vibra o sentimento – corpo e espírito – e vibra a vida por si (…)” (BEBER, 2022, p. 168), diz a escritora. A voz de Stella oscila em frequências diversas, denotando suas emoções através da mesma. Cria, assim, um canto ou canção próprios da mesma, originando linguagem e palavras inéditas e um novo sujeito a partir delas, distante daquele indivíduo oprimido pela homogeneização manicomial.

Para esta análise, o trabalho de Paul Zumthor[2] é muito mobilizado, servindo de base para pensar o corpo de onde sai essa voz, os sentimentos que expressa (raiva, angústia, calma, segurança, etc), inflexões, escansões e repetições, por exemplo. Além disso, através de sotaques, pronúncias, entonações e, sobretudo, ritmo (métrica) ou ginga, sobre a voz da poeta a autora vai desvendando possíveis evidências biográficas, bem como a importância da tradição oral e as consequências não só psiquiátricas, – no sentido anti-manicomial – mas psicanalíticas da escuta dessa mesma vibração de cordas vocais e vitais de Stella.

Capítulos 3 – A geografia da voz: Transcrição acústico-topográfica do falatório

No primeiro dos dois capítulos que constituem a última parte dessa resenha, a pesquisadora propõe uma nova escuta e visualização do falatório de um ponto de vista geográfico. Nele, o ato de ouvir é recriado através do texto, com o intuito de cartografar esses cantos no espaço. É o resultado de mais uma das facetas de Beber: uma construção poética que apresenta, segundo suas palavras – e escuta – um contracanto do falatório, forma e mapa, mas também uma forma de tradução (outro ofício da escritora), translada. Assim, redigindo uma espécie de mapa – ou transcrição, inventa nomes para as pausas, entonações, interrupções, nomeando o ritmo da fala de Stella através deles. Por exemplo, para nomear silêncios ou suspensões, denomina: lago do silêncio ou “vale da angústia muda”. Para as hesitações ou pausas: “istmo” (pausa breve), “restinga” (tempo do ponto e vírgula), “lagoa” (pausa longa). Para ruídos, interrupções ou sobreposições de som: “lagoa apedrejada” (quando os ruídos externos preenchem a cena enunciativa), “névoa” (quando há ruídos na compreensão), “ravina” (quando outrem a interrompe), “vereda” (quando Stella chama alguém para a conversa), e assim sucessivamente, com outras classificações. O texto fica aproximadamente como nesta imagem:

4 – Decantório: Partituras para o falatório e conclusão

Já no último capítulo do livro, como que para encerrar essa espécie de ode à Stella do Patrocínio, Bruna Beber a homenageia em forma de poema. No entanto, diferentemente de Viviane Mosé, a autora desse livro a que me refiro busca transpor para este seu canto, através da decantação, as mesmas pausas e suas diferentes durações, além da voz e suas diferentes entonações. Ou seja, ela cria uma espécie de escrita auditiva, ou escuta gráfica, como denomina, como, por exemplo, no poema a seguir, retirado da gravação das conversas de Stella com Nelly e Carla:

Esta última imagem consiste na última parte da partitura de número um de Beber, que inicia o canto de Stella nas gravações, mas que, aqui, finaliza meu texto. Assim, do mesmo modo que a autora enfatiza no final de seu livro, ensaio e dissertação, também nesta resenha recantaremos Stella, em um esforço de destacar e reiterar a magnitude de suas palavras, assim como esta o faz com o sol, pelo simples fato de que ele penetra no dia. Desse modo, ciclicamente, saudamos o dia para encerrar o texto, desejando a todos que se interessarem não só a leitura-escuta dessas encarnações interpretadas, mas da própria voz da entidade Stella, presentes no repositório da UNILA. Boa escuta!

Notas

[1] Ítalo Calvino, “Um rei à escuta”, in: Italo Calvino, Sob o sol-jaguar, São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 79. Citação da Beber que utilizei, também aplicada por Sara Ramos para dar título à sua dissertação Stella do Patrocínio: Entre a letra e a negra garganta de carne.

[2] Importante medievalista, crítico literário, historiador da literatura e linguista suíço. Autor de Introdução à poesia oral. Tradução de Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia Diniz Pochat e Maria Inês de Almeida. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

Referências

https://pt.wikipedia.org/wiki/Bruna_Beber

BEBER, Bruna. (2022). Uma encarnação encarnada em mim – cosmogonias e encruzilhadas em Stella do Patrocínio. Ed. José Olympio. Rio de Janeiro. Dissertação disponível em: https://www.unicamp.br/unicamp/teses/2021/01/04/uma-encarnacao-encarnada-em-mim-cosmogonias-encruzilhadas-em-stella-do-patrocinio

RAMOS, Sara Martins. (2022). Stella do Patrocínio: Entre a letra e a negra garganta de carne. Universidade Federal da Integração Latino-Americana. Foz do Iguaçu.

ZACHARIAS, Anna Carolina Vicentini. (2020). Stella do Patrocínio: da internação involuntária à poesia brasileira. Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas, 2020. Disponível em: <http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/348087&gt;. Acesso em: 30 out 2020.

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