Série Nordeste | Região e nação: textos de Irlys Barreira e Mariana Chaguri

No segundo post da Série Nordeste do Blog da BVPS, que corresponde à aula introdutória da disciplina Sociologia Política do Nordeste (dia 14 de abril), trazemos dois textos sobre região e nação: “Pensar o regional: o Nordeste em questão”, de Irlys Alencar F. Barreira, professora titular de sociologia da Universidade Federal do Ceará; e “Gilberto Freyre e José Lins do Rego: Modernismo e Regionalismo”, de Mariana Miggiolaro Chaguri, professora de sociologia da Unicamp.

O texto de Irlys Barreira faz um mapa precioso da questão regional vista da ótica do Nordeste nas ciências sociais que se mostra estratégico para iniciarmos a Série Nordeste BVPS. Lembra a autora da crítica ao dualismo de Francisco de Oliveira em “Crítica à razão dualista” e Elegia para uma re(li)gião, bem como das dificuldades decorrentes de uma concepção de política pensada exclusivamente a partir de uma instância social objetiva, como as apontadas por Moacir Palmeira. Já o texto de Chaguri faz uma revisão do regionalismo e do modernismo em Pernambuco dos anos 1920-30, movimentos culturais contemporâneos e em tantos aspectos concorrentes e complementares. Como mostra a autora, várias ideias que ganhariam expressão intelectual e artística na sociologia de Freyre e nos romances de José Lins estão ligadas a este contexto inicial. O texto que publicamos a seguir foi retirado do capítulo 1 do premiado livro de Chaguri, O romancista e o engenho: José Lins do Rego e o regionalismo nordestino dos anos de 1920 e 1930 (2009). 

A Série Nordeste BVPS é uma iniciativa que une a vocação do Blog da BVPS – formação de editores/as, autores/as e leitores/as de comunicação pública das ciências sociais, literaturas e artes – aos propósitos pedagógicos da disciplina Sociologia Política do Nordeste, que está sendo ministrada na Graduação em Ciências Sociais do IFCS/UFRJ neste primeiro semestre de 2023. Nossas postagens saem às quintas-feiras.

Você pode conhecer melhor a proposta da Série Nordeste clicando aqui.

Boa leitura!


Pensar o regional: o Nordeste em questão

                       Por Irlys Alencar F. Barreira (UFC)*

O adjetivo regional é mais que uma especificação de lugar. Pensar sob a ótica de uma região sugere imediatamente a contraposição a outras, aludindo a um conjunto amplo que denominamos por nacional. Essa perspectiva já refletida por Bourdieu (1989) em suas pesquisas aponta os dilemas da identidade regional, com os pressupostos de inclusão e exclusão aliados à busca de reconhecimento de espaços. No Nordeste é interessante mencionar diferentes significados simbólicos que foram se estruturando em conceitos fundamentados em modelos históricos. Destacam-se, entre outros, a linguagem da modernização desenvolvimentista (de Celso Furtado) e a cultura do passado colonial (presente na obra de Gilberto Freyre). Percepções de teor acadêmico, ou baseadas no senso comum, valorizam práticas culturais, concebendo a região como reservatório de tradições, incluindo o folclore e as formas típicas de manifestação popular.

Quando se tem o Nordeste como referência, a dimensão regional remete ainda a formulações de natureza política que englobam a demanda por intervenções governamentais, visando o fortalecimento de setores excluídos de benefícios sociais.

As ciências sociais não estão imunes aos atributos associados à questão regional.

Os diferentes encontros de Ciências Sociais Norte/Nordeste,[1] incluindo pesquisas realizadas no período 1985-1997, constituem um rico material em torno do qual foi possível vislumbrar elementos significativos de um olhar acadêmico voltado para entender singularidades. Destacam-se em várias pesquisas a vigência de processos sociais em curso, sob o impacto de modernizações tecnológicas, incorporando a redefinição do papel do Estado na implementação de políticas públicas. No conjunto das reflexões um destaque para a especificidade chamou atenção para determinados processos sociais tais como modernização, crescimento industrial e expansão urbana que ocorreram de forma diferenciada, guardando singularidades dignas de serem sustentadas pela observação empírica. O reforço à especificidade trouxe por consequência o questionamento de teorias abrangentes, que pensavam o país a partir de polos hegemônicos, desconsiderando singularidades observáveis no âmbito das diferentes regiões (Martins, 1993).

A crítica ao dualismo emergiu também como um ponto importante de reforço simultâneo às especificidades e suas articulações gerais. Trata-se da tentativa de compreender o país em sua totalidade, pensando o regional com base em uma dupla entrada, reunindo a um só tempo homogeneidade e heterogeneidade. Nesse sentido, foram fundamentais as reflexões de Francisco de Oliveira presentes no artigo sobre a “Crítica à Razão Dualista” (1977) e posteriormente no livro Elegia para uma Re(li)gião (1991), deslocando o enfoque dos “desequilíbrios regionais” para o exame do planejamento articulado, visto agora sob a ótica da divisão regional do trabalho no Brasil.

 O Nordeste como uma espécie de enigma a ser decifrado serviu de referência a inúmeras pesquisas, congregando tanto pesquisadores da região como demais estudiosos envolvidos, sobretudo, com a temática agrária. Um “saber acumulado” sobre diferentes sistemas produtivos (cana, algodão) e contextos políticos diversos conformou preferências temáticas e influenciou a criação de equipes de pesquisa (Novaes, 1988).

A esse respeito é importante mencionar as reflexões de Moacir Palmeira quando tematiza sobre as dificuldades de pensar a política puramente a partir de uma instância social objetiva:

Boa parte da atividade política em nosso país é pensada como uma espécie de distorção com relação a certos esquemas explicativos pré-existentes. Você pensa um fato político em termos institucionais ou de oposição de classes e, depois, aquilo que não é explicável nesses termos você vê como um tipo de distorção. Quer se reconheça como tal ou não, trata-se de uma visão normativa, que reduz os fatos a serem explicados a sua distância da regra postulada, distância creditada (ou debitada, como queiram) a alguns ismos mágicos: clientelismo, cartorialismo, corporativismo – escolhidos de acordo com a retórica política do momento. Cada vez que se pensa em clientelismo no Brasil, por exemplo, ele é formulado como uma sobrevivência. Você começa falando do coronelismo, depois começa a falar da decadência do coronelismo e por aí vai até chegar ao clientelismo (Palmeira, 1989: 114).

No escopo dessas reflexões, é possível acrescentar que a região Nordeste terminou sendo instituída como berço dessa distorção, caracterizada pela existência de processos sociais inconclusos: o Nordeste quase capitalista, quase modernizado, cuja evidência estendia-se a diferentes esferas da vida social.

Discussões desse teor lançaram luzes na temática das chamadas especificidades, sem enquadrá-las a partir de um reduto espacial ou temporal. A observação sobre a existência de processos sociais diferenciados em outras sociedades, o chamado saber local, rompeu com a ideia de resíduo, ou com as dualidades entre o que estaria do lado de uma possível lógica conceitual e o que ocorreria no plano das “distorções”.

O conjunto de textos registrado em livros e Anais dos Encontros Norte e Nordeste, designados à época como “Anpocs Regional”, compõe um acervo importante sobre a memória social e política da investigação, revisitando temáticas sobre o mundo social e político em destaque nos últimos decênios do século passado.

Notas

* Professora Titular de Sociologia do PPGS da UFC. É pesquisadora do CNPq e integra o Núcleo de Antropologia da Política/Museu Nacional. É autora dos livros: Chuva de papéis, ritos e símbolos de campanha eleitoral no Brasil (Relume Dumará, RJ, 1998), Imagens ritualizadas, apresentação de mulheres em cenários políticos (Pontes, SP, 2008), A cidade como narrativa (ICS Lisboa, 2013) e O labor criativo na pesquisa (Edições UFC, Fortaleza 2017). Foi Presidente da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) no biênio 2012-2013.

[1] Uma versão ampliada e mais detalhada sobre essa questão pode ser encontrada em Barreira I. e Lemenhe A. (2000).

Referências

BARREIRA, Irlys Alencar F. (2000). “Artes e recortes do regional”. In Barreira I. e  Lemenhe A. (orgs). Além das fronteiras: Região, políticas públicas e dinâmicas institucionais, São Paulo: Terceira Margem.

BOURDIEU, Pierre. (1989). O poder simbólico, Lisboa: Difel.

MARTINS, Paulo Henrique. (1993). O regional e o nacional no imaginário desenvolvimentista brasileiro: da nostalgia oligárquica ao fim do nordeste. In: XIMENES, Tereza (org). Novos Paradigmas e Realidade Brasileira. Belém: Universidade Federal do Pará.

NOVAES, Regina. (1988). O que há de novo no Nordeste? anotações acerca das relações entre recentes projetos governamentais e sindicalismo de trabalhadores rurais. In: Nordeste o que há de novo? Anais do Encontro de Ciências Sociais, Natal. 22 a 25 de novembro de 1988.

OLIVEIRA, Francisco de. (1977). Elegia para uma re(li)gião. Rio de Janeiro:Paz e Terra.

OLIVEIRA, Francisco de. (1981). A Economia Brasileira: Crítica à Razão Dualista. Estudos Cebrap. Petrópolis: Vozes/Cebrap.  

PALMEIRA Moacir. (1989). Política, facção e compromisso: alguns significados do voto. In: Anais do IV Encontro de Ciências Sociais do Nordeste. Salvador, 10 a 13 de dez. de 1989.


Gilberto Freyre e José Lins do Rego: Modernismo e Regionalismo*

Por Mariana Miggiolaro Chaguri (Unicamp)** 

É neste cenário do Recife dos anos 20 que o então polemista Lins do Rego, com destacada atuação no semanário Dom Casmurro que dirigia com Osório Borba, inicia sua amizade com Freyre, então um jovem sociólogo recém-chegado de anos de estudos fora do Brasil.

Sobre o semanário comenta Souza Barros,

naquele ano [1922], o romancista do Ciclo da Cana-de-Açúcar se juntaria a Osório Borba para editar um panfleto literário e político. E Dom Casmurro empolgou o Recife, pelo seu tom de desafio. Borba liderava o ataque. Os artigos de José Lins não possuíam a agressividade dos escritos pelo futuro autor de A Comédia Literária. Nenhum deles, entretanto, atacava problemas, mas indivíduos (Souza Barros, 1972: 1980).

Segundo Neroaldo Pontes de Azevedo (1996: 23), o semanário Dom Casmurro seria uma amostra exemplar do envolvimento político da imprensa e de suas consequências, “é a crônica política que constitui o grosso das publicações do impiedoso panfleto, que era temido por suas críticas aos políticos locais, à ‘politicagem provinciana’ em geral ou à atuação do governo federal”. Tanta efervescência política trará inúmeros problemas como esse episódio citado por Luiz do Nascimento:

a revista panfletária Dom Casmurro, de Osório Borba e José Lins do Rego, […] estava sendo composta e impressa na modesta tipografia de Nelson Firmo, que tomara a peito o trabalho, recusado por várias outras oficinas gráficas, temerosas de represálias policiais. Pois, no assalto de 30 de abril, os vândalos carregaram todas as páginas de Dom Casmurroem ponto de impressão (Nascimento, 1967: 217).

No plano cultural, Dom Casmurro se dedicará, vivamente, à crítica ao Modernismo da Semana de Arte Moderna, veiculando algumas das posições mais hostis em relação ao movimento,

já no número de estréia, a 1ª de novembro de 1922, num artigo sem assinatura, ‘O pensamento brasileiro na voz das novas gerações’, faz-se o elogio do livro de poemas, Horizonte, de Oliveira e Silva, ‘em que o lirismo parnasiano esplende, brilhante e claro, como a melhor resposta às extravagâncias infantis que a geração dos futuristas de São Paulo tenta agora mesmo erigir em doutrina de reação contra a estética parnasiana’. No n., de 6 de novembro, em artigo também sem assinatura, ‘Restrições aos nossos exageros’, sobre o teatro nacional, escreve-se que em São Paulo ‘há uma porção de energias perdidas nas preocupações preciosas do ‘futurismo’, ou melhor, um lamentável esnobismo literário’. No número 3, de 13 de novembro, num artigo ainda uma vez sem assinatura, ‘Enquanto os futuristas de São Paulo fazem ridículos, uma geração no Sul salva a cultura brasileira’, volta-se a criticar os futuristas de São Paulo, contrapondo-os à ‘nova geração intelectual do Rio’. Klaxon é criticada, enquanto Árvore Nova, do Rio, merece elogios. O grupo de São Paulo ‘inventa originalidades fáceis a custo de escândalo de ignorância’ (Azevedo, 1996: 39-40).

Em entrevista a Moema D´Andrea, Freyre comenta que “nunca soube o que era esse Dom Casmurro. Eu sei que era um jornal panfletário e sei que me ufano ter arrancado José Lins do Rego do jornalismo panfletário em que o encontrei atolado, quando cheguei da Europa”, quando inquirido sobre a possível alteração nas posições políticas e estéticas de José Lins, Freyre responde

bem, ele tomou inteiramente outro rumo, ele repeliu, brigou com Osório, Osório brigou com ele. E era um jornal dessa espécie que recebia dinheiro para atacar. Tinha um lado ético, em que eu sinto que o José Lins do Rego tivesse se deixado meter. Eles se atacavam servindo-se de certos políticos contra outros, recebendo quantias que não deviam receber. Não era jornalismo independente. Agora, a renúncia de José Lins do Rego a essa espécie de popularidade que ele estava gozando, através desse panfletarismo, é uma das mais belas coisas na vida desse meu amigo (Freyre, 1992: 24).

Em vários escritos, José Lins confirmará tais observações de Freyre. Um dos mais emblemáticos é o prefácio do autor ao livro Região e Tradição (1941) de Freyre, no qual José Lins afirma que a partir da amizade com o sociólogo “começava a existir para mim um outro mundo das ideias, o mundo das artes”. O romancista afirma ter passado a enxergar o Brasil não mais como um “vulgar cotidiano”, percebendo que “havia o Brasil, que havia uma grandeza brasileira, com raízes sólidas, plantadas pelo lusitano que tanto se desprezava” (Rego, 1941: 11).[1]

Precisamos considerar José Lins um informante bastante parcial quando comenta sobre o impacto das ideias e das sugestões de Gilberto Freyre não apenas sobre ele, mas especialmente sobre os círculos intelectuais do Recife. Mesmo como fonte quase viciada, não podemos esquecer, contudo, que as crônicas e artigos de José Lins contribuirão, e muito, para a legitimação de Freyre como o sistematizador das ideias regionalistas já em voga no Recife. Citemos um exemplo:

começou Gilberto a agitar nos seus artigos temas inteiramente novos para o Brasil, a falar de gente inteiramente desconhecida para nossos meios literários, revelando um Joyce, um Meredit, o neo-thomismo de Maritain, os Browing, Ganivet, a escrever de um jeito que era novo sem ser “moderno”, a dar à língua portuguesa uns acentos melódicos, a descobrir soluções poéticas para certo acentos ásperos da nossa língua. A prosa de Gilberto era por esse tempo uma coisa inteiramente original, sem que fosse bizarra ou exótica (Rego, 1941: 15).

Com o objetivo de aproximar os homens das manifestações mais íntimas da vida, a sociologia de Freyre se asseguraria

mais na vida que nas teorias, é mais humana que sistemática […] as descobertas de Gilberto Freyre, as suas análises miúdas, as suas interpretações, as suas síntese, provém do homem, da organização lírica, da sabedoria humanizada que é a sua. Os americanos lhe ensinaram muito, mas muito sabia por si mesmo (Rego, 1941: 18).

Nesses termos, José Lins também concederá a Freyre o mérito de dar novos contornos ao Regionalismo até então existente no Brasil, o qual

quando não era uma coisa de superfície, o saudosismo do burity solitário de Affonso Arinos, todo pitoresco, mais sentimental que cultural, era o caipirismo paulista que atingira com Monteiro Lobato o seu melhor padrão. Ou então limitavam o Regionalismo às extravagâncias de linguagem e traje. É verdade que Simão Lopes Neto no Rio Grande do Sul compusera uns contos admiráveis, onde havia algumas coisas mais que a cor da terra e o exotismo da gente […] Mas no plano das idéias e da literatura, Regionalismo era uma limitação, quando não se tornava uma manifestação perniciosa (Rego, 1941: 19).[2].

Desse modo, será entre bacharéis nordestinos que desenvolviam atividades como cronistas ou críticos em jornais do Recife que Freyre encontrará acolhida privilegiada para suas ideias. São figuras como José Lins do Rego, Olívio Montenegro, Alfredo Morais Coutinho, Odilon Nestor, Luís Jardim que, juntamente com outros, apresentavam preocupações comuns quanto ao tumultuado período político que a República atravessava, canalizando seus descontentamentos especialmente para a centralização política entendida como puro artificialismo, uma fórmula fictícia

sem bases históricas, nem geográficas, que em vez de uma coloração harmoniosa de entidades histórico-sociais, resultou nesse irritante fenômeno de hegemonia alternativa, em que dois Estados mais influentes se revezam, de quatriênio em quatriênio, na direção do país (Coutinho, apud Azevedo, 1996: 213).

Demonstram, ainda, preocupações, embora pouco sistematizadas, quanto à desagregação das formas de vida tradicionais especialmente na zona açucareira, bem como com a progressiva descaracterização das formas típicas de organização social da região, de modo que, à luz da progressiva decadência do Nordeste, as questões relacionadas à região e à tradição colocam-se na pauta do dia.

Retornando ao Brasil em 1923, Gilberto Freyre insere-se vivamente nas discussões sobre a renovação cultural da região Nordeste, travando polêmicas com Inojosa e articulando e sistematizando o Regionalismo que ganharia contornos claros a partir de 1924 com a fundação do Centro Regionalista do Nordeste e em 1926 com a realização do Primeiro Congresso Regionalista do Nordeste. Historiadores do período como Souza Barros (1972) e Tadeu Rocha (1964) atribuem grande importância a esses dois eventos, marcando-os como os elementos que ajudaram a alargar o raio de ação do Regionalismo, principalmente, pelos estados de Alagoas, Paraíba e Rio Grande do Norte[3]. No trabalho de divulgação e publicização das sugestões regionalistas, José Lins também assumirá um papel privilegiado particularmente entre os círculos intelectuais paraibanos e alagoanos.

Importante notar como mesmo reunindo um grupo de intelectuais, o Centro Regionalista nunca chegou de fato a institucionalizar-se, mantendo reuniões extremamente familiares na casa de Odilon Nestor, “em volta da mesa de chá com sequilhos e doces tradicionais da região” (Freyre, 1976b: 54). O Centro não teve duração muito prolongada, correspondendo a uma tentativa de, no contexto dos anos 20, dar contornos claros e agregar o que vinham sendo as discussões sobre o Regionalismo, em especial no Recife, de modo a compor aquilo que ficaria conhecido como o Movimento do Recife e que gravitou, especialmente, em torno de Freyre e de suas sugestões, sendo batizado por ele como Movimento Regionalista, Tradicionalista e, a seu modo, Modernista do Recife[4].

Numa síntese expressa no Manifesto Regionalista, Freyre argumenta ser o Regionalismo

tão contrário a qualquer espécie de separatismo que, mais unionista que o atual e precário unionismo brasileiro, visa a superação do estadualismo, lamentavelmente desenvolvido aqui pela República – este sim, separatista – para substitui-lo por novo e flexível sistema em que as regiões, mais importantes que os Estados, se completem e se integrem ativa e criadoramente numa verdadeira organização nacional. Pois são modos de ser – os caracterizados no brasileiro por suas formas regionais de expressão – que pedem estudos ou indagações dentro de um critério de inter-relação que, ao mesmo tempo que amplie, no nosso caso, o que é pernambucano, paraibano, norte rio-grandense, piauiense e até maranhense, ou alagoano ou cearense em nordestino, articule o que é nordestino em conjunto com o que é geral e difusamente brasileiro ou vagamente americano (Freyre, 1976b: 54-55).

Para Freyre, ao longo do Império (1822-1889) as províncias foram sacrificadas por um suposto imperialismo da Corte que, por sua vez, seria, de acordo com as conveniências do momento, excessivamente afrancesada ou anglicizada. Com a República, por sua vez ianquizada, as províncias foram substituídas por estados que

passaram a viver em lutas entre si ou com a União, impotente, nuns pontos, e, noutros, anárquica: sem saber conter os desmandos para-imperias dos Estados grandes e ricos, nem policiar as turbulências de alguns dos pequenos em população e que deviam ser ainda Territórios e não, prematuramente, Estados (Freyre, 1976b: 55).

A solução proposta pelos regionalistas nordestinos estaria, segundo Freyre, na articulação inter-regional, “pois de regiões é que o Brasil, sociologicamente, é feito, desde os seus primeiros dias. Regiões naturais a que se sobrepuseram regiões sociais”, desse modo, as ações dos governos central e estaduais devem ser pensadas interregionalmente porque “somos um conjunto de regiões antes de sermos uma coleção arbitrária de ‘Estados’”, logo é regionalmente que o Brasil deve ser administrado

sob uma só bandeira e um só governo, pois Regionalismo não quer dizer separatismo […] Regionalmente deve ser estudada, sem sacrifício de sua unidade, a cultura brasileira, do mesmo modo que a natureza; o homem do mesmo modo que a paisagem. Regionalmente devem ser considerados os problemas de economia nacional e os de trabalho (Freyre, 1976b: 56, grifo nosso).

Nota-se que a defesa da coesão regional encontra no aspecto homogeneizador da região seu mais forte argumento funcional. Nesse sentido, é a partir de uma identidade espacial e sob o predomínio do Nordeste açucareiro que se construiu a defesa da região. Para Freyre (1976a: 13), o Movimento do Recife caracteriza-se como um “esforço de renovação cultural mais de dentro para fora do que de fora para dentro”, buscando aquilo que seria organicamente brasileiro em termos culturais, voltando-se para a tradição e para o povo.

Movimento que seria apolítico e contrário a quaisquer dogmatismos estéticos ou políticos, elementos que teriam permitido sua imensa repercussão na cultura e na vida brasileira, fazendo com que ambas não possam ser analisadas sem que se dedique especial atenção ao Movimento do Recife.

Freyre observa que o Congresso Regionalista de 1926 representaria justamente um esforço para deixar clara a ação regionalista que, para ele, ainda era mal compreendida e superficialmente julgada. Segundo José Lins, convergiram para o Congresso “moços e velhos, gente das tendências mais opostas. Chamou [Gilberto Freyre] padres, juizes, senhores de engenho, advogados, médicos, presidentes de clube de carnaval, velhas cozinheiras, doceiras, o governador do Estado, o arcebispo, o juiz federal” (Rego, 1941: 19). Assim, o Congresso caminhava para a vida,

a terra e a gente não como temas, mas como personagens do drama […] o Regionalismo de Gilberto Freyre […] no plano político é contrário ao estadualismo que a República plantara; no plano artístico é uma sondagem na alma do povo, nas fontes de folclore, no que há de grande e vigoroso na alma popular.

[…]

A este Regionalismo poderíamos chamar de orgânico, de profundamente humano. Ser da sua região, de seu canto de terra, para ser-se mais uma pessoa, uma criatura da vida, mais ligada à realidade. Ser de sua casa para ser intensamente da humanidade […] Com um Regionalismo desses é que poderemos fortalecer mais ainda a unidade brasileira (Rego, 1941: 20).

Freyre assume, na maior parte dos casos, uma posição contrária às propostas da Semana de Arte Moderna, sendo recorrente a crítica de serem excessivamente europeizados, ao invés de se dedicarem vivamente ao Brasil e às tradições brasileiras. Considera o Regionalismo tradicionalista e seu modo modernista do Recife como completamente “independente do ‘Modernismo’ Rio – São Paulo, do qual tanto se fala, às vezes esquecendo-se esse outro movimento da mesma época, saído do Recife” (Freyre, 1976a: 15), afirma que não aderiu à Semana e que seus “modernismos trouxe-os direta e pessoalmente ao Brasil, da Europa e dos Estados Unidos. Descobertos por mim. Assimilados por mim” (Freyre, 1981).[5]

Argumenta, ainda, que o grande impacto do Movimento do Recife foi sobre

as próprias formas de vivência e de convivência e sobre as formas mais diretas de interpretação dessas formas por ensaístas, por sociólogos, por antropólogos, por historiadores, por folcloristas de um novo e revolucionário tipo: com algo de poético e por vezes até de líricono seu modo de serem analistas mais ou menos científico (Freyre, 1976a: 29).

Tadeu Rocha (1964: 13) aponta Maceió como a cidade onde “surgiu a mais importante sucursal do Regionalismo Tradicionalista […] O movimento só foi ali acolhido em começos de 1927 – um ano após o lançamento do Manifesto Regionalista e alguns meses após a chegada do escritor José Lins do Rego à capital de Alagoas”. Nesse sentido, a cidade teria vivenciado a ebulição regionalista na década de 30, em razão, especialmente, do encontro de “pessoas essenciais” como José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Jorge de Lima, Rachel de Queiroz, Aurélio Buarque de Hollanda etc., ganhando fôlego, pela primeira vez desde o início das discussões sobre o Regionalismo, a produção de romances.

José Lins passou a residir em Maceió para ocupar o cargo de fiscal de banco. Também na capital alagoana, publicou inúmeros artigos e crônicas sobre o Regionalismo e sobre a renovação literária decorrente dele, tornando-se, inclusive, o correspondente alagoano de A Província, dirigida por Freyre. Segundo Tadeu Rocha (1964: 29), a influência de José Lins “junto ao povo alagoano foi o tipo do apostolado moderno: apostolado do meio, em que o intelectual chegado de fora atuou entre intelectuais da terra, passando a estes a incumbência de levar a nova mensagem regionalista”. Nesses termos,

se é certo que a Revolução de 1930, com o desaparecimento de ‘A Provícia’, o ostracismo político de Odilon Nestor e o exílio de Gilberto Freyre, determinou uma descontinuidade nos trabalhos do movimento regionalista em sua própria sede, não é menos verdadeiro que em Maceió – onde surgiu a mais importante sucursal do Regionalismo Tradicionalista – as coisas se passaram de outro modo (Rocha, 1964: 70).

Na realidade, o movimento em Maceió se firmou com aparecimento da revista semanal Novidade, dirigida por Alberto Passos Guimarães e Valdemar Cavalcanti, e que fortaleceu a publicação de livros de ficção e de ensaios. No prefácio a Gordos e Magros (1942), José Lins comenta sua passagem por Maceió: “relembro a fase alagoana de minha vida como tempos fecundos, época de floração de minha carreira. Saía do aprendizado para fazer qualquer coisa com as minhas próprias mãos” (Rego, 1942: 47).[6]

Tecendo um panorama sobre o cenário intelectual de Maceió, Tadeu Rocha comenta:

José Lins do Rego e Graciliano Ramos escreviam romances, Valdemar Cavalcanti fazia crítica literária, Mário Marroquim trabalhava em pesquisas linguísticas, Carlos Paurílio redigia contos poéticos e Aloísio Branco publicava seus inesquecíveis poemas. Raul Lima, Diégues Júnior, José Auto, Aurélio Buarque de Hollanda, Alberto Passos Guimarães, Paulo Malta, Carlos Duarte e Arnon de Melo, em Maceió, no Recife ou no Rio de Janeiro, cometiam também os seus poemas, escreviam os seus contos ou crônicas e começavam a encaminhar-se pelos mais diversos roteiros da vida prática.

Foi nesta fase […] que Rachel de Queiroz levou ali uma parte daqueles quatro anos decorridos entre a conclusão de João Miguel (dezembro de 1931) e a elaboração do Caminho de Pedras (outubro de 1936)” (Rocha, 1964: 81).

Em linhas gerais, é possível notar que a efervescência cultural de algumas capitais nordestinas no fechar dos anos 20 marcará decisivamente a produção intelectual da região, particularmente no que se refere à prosa de ficção. Para Freyre, esta seria tributária não das tendências estéticas ou literárias vindas do Sul; antes, seriam influenciadas pelas propostas regionalistas gestadas no Recife, propostas que, para ele, reuniam a busca e a explicitação de valores tradicionais, bem como a utilização da experiência pessoal de cada artista num movimento que reunia tradicionalismo, Regionalismo e Modernismo como modo de revolucionar as “normas de artes brasileiras”. Considera, portanto, o romance social do Nordeste um exemplo da manifestação de novas expressões literárias fruto das provocações do Movimento do Recife às convenções literárias e artísticas da época.

É a partir da expressão da vida vivida que os regionalistas retomam o passado de prosperidade do Nordeste, bem como apontam, à luz desse mesmo passado, o drama atual de uma região reduzida à sombra de sua história, assistindo àquilo que consideram ser a inversão de seus valores sociais e que transformou netos de senhores de engenho em “pífios funcionários públicos”, descaracterizando os engenhos que, agora, “profiteuirs venturosos administram de longe, por trás de firmas comerciais” (Freyre, 1976b).

Assim, Gilberto Freyre argumenta que o Brasil é “combinação, fusão e mistura. E o Nordeste, talvez a principal bacia em que se vêm processando essas combinações, essa fusão, essas mistura de sangues e de valores que ainda fervem […]” (Freyre, 1976b: 76). Ainda ressalta que vários valores da região tornaram-se nacionais “depois de impostos aos outros brasileiros menos pela superioridade econômica que o açúcar deu ao nordeste durante mais de um século do que pela sedução moral e pela fascinação estética dos mesmos valores” (Freyre, 1976b: 57), podendo o Nordeste se considerar uma região que já contribuiu grandemente para dar à cultura ou à civilização brasileira autenticidade e originalidade.

Pode-se argumentar, como sugere Moema D´Andrea, que é por meio do referendum cultural do colonizador que Gilberto Freyre reivindicará para o Regionalismo nordestino a expressão cultural mais autêntica de brasilidade, isto é, ao insistir na identificação da colonização portuguesa com uma cultura nacional, Freyre elege o passado como o elemento autenticamente brasileiro, convertendo, por essa via, o passado em um presente contínuo.

Freyre argumenta, por exemplo, que o Nordeste foi a região do país onde a Abolição se fez sentir mais profundamente, chegando alguns senhores de engenho a falirem por não conseguirem outra fonte de mão-de-obra para as lavouras. Se, por um lado, não contar com os imigrantes para substituir a força de trabalho escrava representou uma grave crise econômica, por outro, transformou o Nordeste num “refúgio da alma brasileira”, ou seja, permitiu que “se fortalecesse, mais do que no Sul, a brasilidade […] o tempero mais vivo que já se sente ir animando uma cultura distintamente brasileira, saída da região mais endogâmica do Brasil contra as infiltrações européias ou norte-americanas” (Freyre, 1941: 193).

Em síntese, o Regionalismo inspirado por Freyre procurou não só estudar e observar direta e objetivamente as características regionais, como buscou, também, enriquecer tais observações com experiências pessoais vividas diante do que seriam os traços típicos da região. Trata-se de um estudo do todo (o Brasil) por meio das partes (as regiões) de modo a revelar um país que não seria “dividido, mas respeitando-se nas suas diversidades […] Um Brasil livre de tutelas que tendem a reduzir a feudos certas regiões” (Freyre, 1941: 57).

Notas

* Rerirado de: CHAGURI, Mariana Miggiolaro. O romancista e o engenho: José Lins do Rego e o regionalismo nordestino dos anos de 1920 e 1930. São Paulo: HUCITEC; ANPOCS, 2009, p. 30-42.

** Professora do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Unicamp. Bolsista produtividade CNPq, nível 2 e Secretária Executiva da Anpocs.

[1] Nota-se esse quase encantamento de José Lins com a redescoberta do Nordeste quando comenta, no mesmo prefácio, uma viagem que fez com Freyre à Paraíba: “nosso passeio pelos engenhos dos meus parentes. Eu mostrando a minha gente e a minha terra, os partidos de cana, os bangüês, os tios, as tias, e tudo aquilo lhe parecendo melhor do que eu pensava que fosse” (Rego, 1941: 15, grifo nosso).

[2] Tadeu Rocha (1964: 12) atribui aos artigos publicados por Freyre no Diário de Pernambuco o início do movimento regionalista: “o seu estilo revolucionário e os seus assuntos regionalistas e tradicionalistas surpreenderam os velhos e, até mesmo, alguns dos novos intelectuais do Recife”.

[3]Tadeu Rocha (1964) comenta que ambos os eventos chamaram a atenção dos intelectuais nordestinos para o trabalho renovador de Freyre que, no Livro do Nordeste (1925), já dera mostras de seus métodos de pesquisa.

[4] Pode-se considerar que a denominação atribuída por Freyre destaca o cunho de modernidade que deveria nortear essas manifestações culturais e artísticas: a marca da oralidade linguística, a plasticidade rítmica, a sintaxe corrida e o lirismo telúrico. Para Moema D´Andrea (1992), teríamos um “modernismo ordeiro” que opera como uma força centrífuga da tradição.

[5] Nerolado Pontes de Azevedo (1996) comenta que em 1922 Freyre viaja para a Europa e em Paris torna-se próximo dos pintores pernambucanos Joaquim e Vicente do Rego Monteiro, conhece Brecheret e os movimentos de vanguarda da Europa.

[6] Tadeu Rocha (1964) comenta que José Lins e Jorge de Lima transformaram os “meninos de Alagoas” em seus confidentes, a quem mostravam poemas e capítulos de romances ainda em elaboração. 

Referências

AZEVEDO, Neroaldo Pontes de. (1996). Modersnimo e regionalismo: os anos 20 em Pernambuco. João Pessoa: Ediotra UFPB/Recife: Editora UFPE.

D´ANDREA, Moema. (1992). A tradição re(des)coberta. Campinas – SP: Ed. da Unicamp.

FREYRE, Gilberto. (1941). Aspectos de um século de transição no nordeste do Brasil. In: Região e tradição. RJ: José Olympio.

FREYRE, Gilberto. (1976a). O movimento regionalista, tradicionalista e, a seu modo, modernista do Recife. In: O manifesto regionalista. Recife: INPJN.

FREYRE, Gilberto. (1976b). Manifesto regionalista de 1926. In: O Manifesto regionalista. Recife: INPJN.

FREYRE, Gilberto. (1981). Serei um anti-São Paulo (2). Folha de São Paulo. São Paulo, 12 set. 1981.

 FREYRE, Gilberto. (1992). Entrevista à Rosa Maria Godoy Silveira e Moema Selma D´Andrea em 14.abr.83. In: D´ANDREA, Moema. A tradição re(des)coberta. Campinas: Editora da Unicamp.

NASCIMENTO, Luiz do. (1967). História da imprensa de Pernambuco. vol. 3. Recife: Imprensa Universitária.

REGO, José Lins. (1941). Notas sobre Gilberto Freyre In: FREYRE, Gilberto. Região e tradição. Rio de Janeiro: José Olympio.

REGO, José Lins. (1942). Gordos e magros. RJ: Casa do Estudante do Brasil.

ROCHA, Tadeu. (1964). Modernismo e regionalismo. Maceió: Imprensa Oficial de Alagoas.

SOUZA BARROS. (1972). A década de 20 em Pernambuco. RJ: Editora Paralelo.

Imagem: Joana Lavôr, colagem da série Dei Normani, Sicília. Para a disciplina/série Blog da BVPS Nordeste Autopoiesis.

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