Série Nordeste | Duas visões sobre comunidade, democracia e história, por André Botelho e Karim Helayel

No quinto post da Série Nordeste BVPS, André Botelho e Karim Helayel compartilham sua aula “Duas visões sobre democracia, comunidade e história”, sobre o tema em Barrington Moore Jr. e Robert D. Putnam. A aula problematiza as relações entre história, teoria e neo-institucionalismo no estudo da política, em geral, e da democracia, em particular, propondo criar uma perspectiva comparada para as discussões da disciplina Sociologia Política do Nordeste.

A aula será ministrada amanhã, dia 28 de abril, na Graduação de Ciências Sociais do IFCS/UFRJ, e está sendo divulgada no Blog da BVPS como parte do experimento que relaciona ensino e comunicação pública das ciências sociais.

Para conhecer mais sobre a Série Nordesteclique aqui.

Boa leitura!


Duas visões sobre comunidade, democracia e história:

Barrington Moore Jr. E Robert D. Putnam

Por André Botelho (UFRJ) & Karim Helayel (PPGSA/UFRJ)

I. Barrington Moore Jr.

As origens sociais da ditadura e da democracia: senhores e camponeses na construção do mundo moderno (1966)

1. Teoria, história e comparação

1.1. Na sociologia proposta por Barrington Moore Jr., a história e a comparação são mobilizadas não somente com o intuito de enfatizar a existência de singularidades entre os processos históricos de mudança social, mas para, a partir delas, produzir novas generalizações mais matizadas e adensadas.

Objetivo principal de Moore Jr.: “explicar os diversos papeis políticos desempenhados pelas altas classes terratenentes e pelos camponeses na transformação das sociedades agrárias […] em sociedades industriais modernas” (p. 1).

Abordagem comparativa: a comparação surge como um recurso que iluminaria as diferenças e os contrastes entre as diversas trajetórias de modernização assumidas por países distintos, o que permitiria uma compreensão renovada dos processos histórico-sociais. Para Moore Jr., empreender um movimento comparativo poderia contribuir para a formulação de novas generalizações. Em suma, as singularidades podem ser entendidas como o ponto de partida da sociologia histórico-comparada de Moore Jr., atenta às recorrências que poderiam auxiliá-lo na construção de proposições teóricas mais gerais.

1.2. Vias para o mundo moderno

. via democrática: teria sido através dela que Inglaterra, França e Estados Unidos ingressaram na modernidade, ainda que partindo de sociedades diferenciadas. A extração de inferências teóricas mais amplas aparece com clareza na análise da Revolução Puritana, da Revolução Francesa e da Guerra Civil Americana, qualificadas como a via democrática para a sociedade moderna, a partir das quais destaca uma série de condições gerais.

. via capitalista, porém reacionária:  as sociedades inscritas nesta via não passaram por um processo revolucionário, que efetivamente operasse uma ruptura com o passado, projetando-se através de “formas políticas reacionárias”, que desembocariam no fascismo, um dos efeitos políticos da “revolução vinda de cima”. Exemplos: Japão e Alemanha.

. via socialista: marcada por revoluções que teriam tido como uma de suas principais origens o papel desempenhado pelo campesinato, conforme atesta Moore Jr. ao examinar o caso chinês, bem como ainda lembrando do caso russo.

.caso da Índia: país que estaria esboçando, de acordo com Moore Jr., seu ingresso no mundo moderno sem ter sofrido uma “revolução burguesa”, uma “revolução conservadora vinda de cima” ou uma “revolução comunista”.

2. Caso dos Estados Unidos

Os Estados Unidos não teriam enfrentado, argumenta Moore Jr., problemas similares à Inglaterra e à França, como, por exemplo, a questão referente ao desmantelamento de uma sociedade agrária fundamentada em instituições feudais. Ou seja, não houve nos Estados Unidos movimentos revolucionários que poderiam ser comparados aos casos da Revolução Puritana e da Revolução Francesa.

Conclusão de Moore Jr.: a Guerra Civil Americana teria sido “a última ofensiva revolucionária da parte daquilo a que podemos legitimamente chamar a democracia capitalista urbana ou burguesa” (p. 116). 

Capitalismo & escravidão nos Estados Unidos: a escravidão não teria constituído mecanismo impeditivo para o desenvolvimento do capitalismo industrial. Segundo Moore Jr., a escravidão teria potencializado o desenvolvimento industrial dos Estados Unidos em seus momentos iniciais. Em suas palavras, “o algodão produzido pelo trabalho escravo desempenhou um papel decisivo no desenvolvimento não só do capitalismo americano, como também do capitalismo inglês” (p. 118). Ou seja, as plantações cultivadas pelas pessoas escravizadas não constituiriam “mera excrescência anacrônica do capitalismo industrial”, mas, sim, “parte integrante desse sistema e dos seus principais motores no mundo em geral” (p. 120).

2.1. Região e nação

2.1.1. Estados Unidos dos anos 1860 (três sociedades): (i) Sul (cultura do algodão); (ii) Oeste, terra composta por agricultores livres; e (iii) Nordeste, região que se encontrava em um rápido e intenso processo de industrialização.  

2.1.2. Grave problema político: migração da escravidão das plantações do Sul para o Oeste. De acordo com Moore Jr., a problemática da “escravatura nos territórios, como eram chamadas as áreas parcialmente colonizadas que ainda não se tinham tornado estados [caso do Oeste, com áreas ainda por colonizar ou precariamente colonizadas], desempenhou um papel importante para conduzir à guerra” (p. 124).

2.1.3. Sul dos Estados Unidos: civilização capitalista, porém pouco burguesa. Teria havido, na região, a manutenção da noção da posição social estabelecida pelo nascimento, uma vez que os plantadores do Sul teriam defendido com veemência o privilégio hereditário.  

2.1.4. Norte e Sul: estruturas sociais divergentes e com princípios opostos de orientação das condutas. A aliança entre a indústria do Norte e os agricultores do Oeste teria contribuído para eliminar as possibilidades de uma via reacionária para o moderno como teria ocorrido no Japão e na Alemanha. Para Moore Jr.: “Nas circunstâncias da sociedade americana dos meados do século XIX, qualquer solução pacífica, qualquer vitória da moderação, do bom senso e dos processos democráticos, teria sido uma solução reacionária” (p.135). Ou seja, haja vista os elos entre o capitalismo industrial do Nordeste e a sociedade baseada na mão-de-obra de agricultores familiares do Oeste, podemos perceber que Norte e Oeste teriam criado, segundo Moore Jr., “uma sociedade e uma cultura cujos valores entraram cada vez mais em conflito com os do Sul” (p. 139).    

2.1.5. Problema da unidade: Moore Jr. ressalta que seria muito difícil encontrar na história um caso no qual duas regiões distintas tenham forjado sistemas econômicos fundados em princípios de orientação das condutas diametralmente opostos, coexistindo sob a autoridade de um governo central com efetiva autoridade em ambas as áreas. 

2.1.6. Causas da guerra: (i) existência de sistemas econômicos distintos, que teriam conduzido a civilizações diferentes e que mantinham posições incompatíveis no que se refere à escravidão; (ii) vínculos  entre o Norte e o Oeste teriam tornado inviável a coligação reacionária entre os setores urbanos emergentes e os proprietários de terras, única aliança que poderia ter evitado quaisquer possibilidades de guerra; (iii) com as incertezas sobre o futuro do Oeste, a distribuição do poder central teria se tornado incerta, intensificando as desconfianças e disputas entre Norte e Sul; (iv) as forças de coesão dos Estados Unidos ainda seriam marcadamente pusilânimes.

3. Conclusão: sobre o significado da Guerra Civil Americana

. Ainda que a Guerra Civil tenha dado fim à existência de duas civilizações contrastantes, não teria havido, argumenta Barrington Moore Jr., um caráter eminentemente revolucionário.

. Após a Guerra Civil, o capitalismo industrial avançou amplamente, logrando consolidação nos Estados Unidos.

. Após a vitória do Norte, o governo federal teria se transformado “numa série de redutos em torno da propriedade, em especial da grande propriedade, e numa agência para execução da frase bíblica, ‘Ao que tem, será dado’” (p. 152).

. Consolidação de um “capitalismo democrático competitivo”: os sistemas agrícolas fundados com base no trabalho das/os escravizadas/os, ou com repressão das/os trabalhadoras/es das plantações, constituiriam entraves ao desenvolvimento do “capitalismo democrático competitivo”.  

II. Robert D. Putnam

Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna (1993)

1. A noção de “comunidade cívica”

1.1 Definição:

Comunidade cívica implica a ação e a participação dos cidadãos na vida pública

Putnam: a comunidade cívica se caracterizaria por “cidadãos atuantes e imbuídos de espírito público, por relações políticas igualitárias, por uma estrutura social firmada na confiança e na colaboração” (p. 31).

1.2. Putnam e a tradição do associativismo

Alexis de Tocqueville (A democracia na América): a atividade política do cidadão, por meio de organização de associações políticas, ou partidos, que tenham como fim a defesa da cidadania, a manutenção do espaço da palavra e da ação pode dificultar o surgimento de um Estado autoritário.

Através da liberdade de participação política e do poder de ingerência nos assuntos públicos, que afetam direta ou indiretamente seus assuntos privados, os cidadãos atomizados se voltam para os assuntos gerais, equilibrando assim as tendências construtivas e destrutivas da democracia.

Putnam: Tocqueville tinha razão: “diante de uma sociedade civil vigorosa, o governo democrático se fortalece em vez de enfraquecer… Já cidadãos das regiões menos cívicas costumam assumir o papel de suplicantes cínicos e alienados” (p. 191-2).

1.2.3 Putnam e Michael Walzer

. Putnam/Tocqueville: os cidadãos devem buscar interesses próprios, mas sempre compartilhando do interesse de outrem;

. Walzer (Spheres of justice): os valores liberais provocam a dissociação da comunidade cívica.

. Em comum, ambos os autores consideram que (i) a existência de associações é um elemento crucial para o desenvolvimento do civismo numa comunidade e (ii) a virtude cívica da coletividade pode produzir efeitos que elevam a qualidade democrática.

2. O estudo de Putnam

2.1: Comunidade e Democracia:

. Pesquisa empírica envolvendo diferentes metodologias quantitativas e qualitativas que acompanhou por 20 anos (desde os anos de 1970) o processo de descentralização política do governo italiano.

. Análise comparativa do caráter da mudança e do desempenho institucional entre governos de diferentes regiões da Itália, no momento de várias reformas institucionais.

2.2 Neo-institucionalismo

. Compreende muitas subcorrentes

. Estudo do processo político tendo como variável explicativa as instituições

. Putnam: desempenho de algumas instituições democráticas e sua relação com a participação ou não da comunidade cívica//influência exercida pelas instituições formais no comportamento dos governos e nas suas práticas políticas.

2.2. Visão histórica

. A história deixa sua marca, corporificando as instituições, moldando-as com as necessidades de cada contexto social, econômico e político.

. O autor procura desmistificar o caminho para o alcance da qualidade democrática. Observando e analisando as mudanças e as experiências da reforma institucional na Itália, Putnam desenvolve duas hipóteses principais: (i) as instituições moldam a política; e (ii) as instituições são moldadas pela história.

. O estudo sobre o desempenho dos governos nas diferentes regiões italianas mostrou (i) a importância da vida cívica nas práticas governamentais e no desenvolvimento político, social, econômico regional; e (ii) a estagnação econômica e política de outras regiões devido à postura autoritária e centralizadora.

2.3 Instituição e cultura

. Por que certas regiões são mais cívicas do que outras?

. Por que a comunidade cívica no Norte possui um círculo virtuoso que favorece o desenvolvimento pleno da região, enquanto as regiões do Sul têm sua vida coletiva atrofiada e, consequentemente, sofrem no ambiente desfavorecido de bem-estar social?

. “Capital social” e sua relação com as instituições públicas: o capital social em interação com sistemas horizontais de participação cívica favorece o desempenho do governo e da economia.

. O desempenho institucional está associado ao comportamento da atividade cívica, a qual está ligada ao sistema de participação cívica e ao modo como é construída ao longo da história.

. Os círculos virtuosos se configuram a partir de equilíbrios sociais com elevados níveis de cooperação, confiança, reciprocidade, civismo e bem-estar coletivos; tais características definem a comunidade cívica ideal que estimula a manutenção de instituições públicas eficazes.

. No caso da Itália, portanto, foram encontradas diferenças regionais sistemáticas nos modelos de engajamento cívico e solidariedade social e, segundo Putnam, “tais tradições tiveram consequências decisivas para a qualidade de vida, tanto pública quanto privada, hoje existente nas regiões italianas” (p. 31).

. A relação entre cultura e instituição compreende um entendimento causal entre normas e atitudes culturais, as estruturas sociais e os padrões de comportamento que configuram a “comunidade cívica”.

. Atitudes e práticas constituem um equilíbrio mútuo pois “as instituições de cunho cooperativo requerem aptidões e confiança interpessoais, mas essas aptidões e essa confiança são igualmente inculcadas e reforçadas pela colaboração organizada. As normas e os sistemas de participação cívica contribuem para a prosperidade econômica e são, por sua vez, reforçados por esta prosperidade” (p. 190).

3. Conclusão

. Putnam mostra o poder da mudança institucional para remodelar a vida política e as fortes restrições que a história e o contexto social impõem ao êxito institucional.

. O contexto social e a história condicionam profundamente o desempenho das instituições. A existência de instituições eficazes e responsáveis depende das virtudes e práticas republicanas. Mudando-se as instituições formais pode-se mudar a prática política. “Como previam os institucionalistas, a mudança institucional refletiu-se (gradualmente) na mudança de identidades, valores, poderes e estratégias. A mudança formal induziu a mudança informal e tornou-se auto-sustentada” (p. 193).

Referências

FERNANDES, Antônio Sérgio Araújo. (2000). A comunidade cívica em Walzer e Putman. Lua Nova, n. 51, pp.71-96.

JASMIN, Marcelo. (2005). Alexis de Tocqueville. A Historiografia como ciência da política. Belo Horizonte: Editora UFMG.

PUTNAM, Robert D. (2006). Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. Rio de Janeiro: Editora FGV. 

MOORE JR., Barrington. (1983). A guerra civil americana: a última revolução capitalista. In: As origens sociais da ditadura e da democracia: senhores e camponeses na construção do mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, pp. 115-157. 

Imagem: Joana Lavôr, colagem da série Dei Normani, Sicília. Para a disciplina/série Blog da BVPS Nordeste Autopoiesis.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s