ELIDE RUGAI BASTOS: A CORAGEM DA SOCIOLOGIA*, POR ANDRÉ BOTELHO (UFRJ)

*Texto apresentado no evento “Trajetórias e vida intelectual: homenagem a Elide Rugai Bastos e Renato Ortiz” no dia 26 de abril de 2017 na UNICAMP.

    Eu estou muito honrado, agradecido e emocionado por estar aqui nessa homenagem que a UNICAMP, instituição de minha formação e que tanto estimo, presta a dois de seus grandes professores e intelectuais. Fui aluno em disciplinas do Renato Ortiz, e tocado por sua criatividade inquieta na sociologia da cultura. Não fui aluno em disciplinas da Elide Rugai Bastos, e esse é um dos meus defeitos. Mas fui seu orientando no mestrado e no doutorado, o que foi um lance de sorte definitivo não apenas na minha formação e trajetória profissional, como na minha vida – o que não me permite, portanto, contá-la entre, ai de mim, minhas parcas virtudes. Cabe-me falar sobre a homenageada, tão respeitada intelectualmente e tão querida pessoalmente, minha orientadora que me honra também como parceira intelectual em projetos de pesquisa, colaborações para a promoção da área do pensamento social brasileiro e coautorias de escritos, mas, sobretudo, com sua amizade. Aqueles que, como eu, também se beneficiam de uma interlocução intelectual e afetiva com a Elide, e vejo alguns outros privilegiados daqui, entenderão perfeitamente minha dificuldade em levar a cabo a tarefa que me foi confiada pelo Departamento e pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia. Aproveito para agradecer a Mariana Chaguri e Michel Nicolau Neto.

    Entendo que estou aqui representando os muitos orientandos da Elide. O que não ajuda em nada o enfrentamento da tarefa, já que, tendo entre eles colegas excelentes, o meu desafio e a minha responsabilidade tornam-se ainda maiores. Também, como costumo dizer, não existe “ex-orientador”, o que no meu caso é motivo de grande felicidade – mas certamente não será assim para todos! Peço então que, por favor, sejam benevolentes comigo.

    No momento em que escrevia estas linhas que agora leio, numa costumeira semana chuvosa em Petrópolis, não sabia bem se seria um comentário pessoal ou intelectual sobre a obra e trajetória acadêmica da Elide, ou quem sabe sobre sua extraordinária vocação sociológica e pioneirismo com o pensamento social brasileiro o que eu acabaria conseguindo fazer. Tentei seguir o conselho de um bom amigo experiente, também em receber homenagens, que me incentivou para que, afinal, apenas me deixasse escrever sobre a Elide, e depois visse onde isso havia me levado. Pois bem, assim procedendo, acabei chegando à tópica da coragem. Coragem. Do latim coraticum (cor + -atĭcum): associação entre a palavra cor, que tem como um dos significados a palavra coração, e o sufixo -atĭcum, que é usado para indicar a ação da palavra que o precede. CORATICUM seria, então, literalmente, ação do coração. Isto porque acreditava-se que era neste órgão que a coragem se alocava. Eu compartilho dessa crença. Sobretudo no que diz respeito a Elide. Em seu coração está sua coragem. Elide é a pessoa mais corajosa que conheço. Naturalmente, vou me limitar a falar aqui da coragem sociológica que também mora em seu coração.

     Felizmente, a contribuição da Elide a sociologia já vem sendo mapeada: há depoimentos, como o da série “Conversas com autor” da ANPOCS, que dão pistas muito interessantes sobre seu percurso acadêmico e intelectual; sua contribuição à área do pensamento social, com reconhecimento consolidado, também já foi objeto de uma mesa na primeira edição do Seminário da Biblioteca Virtual do Pensamento Social, o mesmo que homenageou também a muito querida Lucia Lippi aqui presente; e não são poucos os trabalhos, sobretudo, dissertações de mestrado e teses de doutorado que tem buscado sistematizar questões teórico-metodológicas e também substantivas dos seus trabalhos como pontos de partida e perspectivas de abordagem na área do pensamento social brasileiro. Mas, também tenho outra dimensão, menos difusa, em mente. O reconhecimento de Elide Rugai Bastos como autora tem levado a iniciativas já mais sistemáticas de análise da sua obra, como exemplifica o dossiê de Sociologia & Antropologia (volume 5, no. 2, maio/agosto de 2015) – o primeiro dedicado a um (a) autor (a) brasileiro (a) na revista.

    Vou me limitar, portanto, aos dois excelentes artigos desse dossiê, tomando-os como ponto de partida para o comentário que gostaria de fazer. A escolha por começar esse comentário dialogando com a fortuna critica que vai se formando sobre a obra da Elide não é aleatória. Antes tem a ver com a socialização recebida, a Elide sempre insistiu com seus orientandos – eu não disse que não existe ex-orientador?! – que a construção de um objeto ou de uma questão é, na sociologia, sempre e necessariamente relacional, isto é, se dá no diálogo e no embate com a fortuna crítica do “nosso” tema. Após situar essas leituras pioneiras, vou tentar contextualizá-las minimamente, posto que as ideias não existem em si mesmas, mas, para alguns de nós sociólogos, sempre em relação não meramente ao contexto, como certa tendência mais mecanicista tende a fazer, mas no contexto. Ideias existem, portanto, em relações no contexto. Aprendi direitinho, Elide?

    Dois colegas dos mais brilhantes da jovem geração de sociólogos brasileiros escreveram sobre a obra da Elide Rugai Bastos em Sociologia & Antropologia – o que em si já é bastante interessante para pensar a recepção da autora. João Marcelo Elhert Maia, “Os sentidos da tradição: um estudo de caso no pensamento social brasileiro”, e Antônio Brasil Junior, “As ideias como forças sociais: sobre uma agenda de pesquisa.

    Ambos os textos chamam a atenção para a presença formadora da obra da Elide e dela própria no campo do pensamento social brasileiro e a dificuldade que isso impõe àqueles que pretendem analisa-las. João Maia diz sobre a sua tarefa: “Não é fácil escrever sobre esta obra. A presença constante da autora nos diferentes fóruns intelectuais das ciências sociais brasileiras produz um sentimento de familiaridade enganoso, como se sua obra fosse de simples decifração” (Maia, 2015: 535). Antônio Brasil: sua atuação permitiu desdobrar esta perspectiva de análise na formação de algumas gerações de pesquisadores, não apenas a partir das pesquisas exemplares que desenvolveu mas igualmente na presença cotidiana como orientadora, examinadora de bancas de qualificação e de defesa de teses e dissertações, debatedora em seminários e congressos, dentre outras atividades. Todos nós, em alguma medida, aprendemos a pesquisar e a refletir sobre o pensamento social no Brasil em diálogo com os trabalhos da autora” (Brasil Jr, 2015: 553). Recorrendo a esses autores, e também amigos, vou tratando de me reconciliar com meu próprio complexo de Marta Argerich – a pianista que se recusa à solidão dos palcos, sempre convocando os amigos para dividirem os concertos com ela.

João Marcelo reconstrói um perfil intelectual muito interessante da Elide, mapeando categorias analíticas centrais provavelmente derivadas de leituras e da formação recebida em seu ambiente intelectual, a mesma escola paulista de sociologia que ela própria tomaria depois como objeto. Um ambiente intelectual marcado pela junção entre o marxismo universitário uspiano mais difuso dos anos 1960-1970 e a orientação sociológica de Florestan Fernandes (na chave do “ecletismo bem temperado” cunhada por Gabriel Cohn sobre a combinação de marxismo e outras sociologias) e também Octavio Ianni, orientador da tese de doutorado da Elide, defendida em 1985, embora o primeiro, então seu colega de departamento na PUC-SP, tenha atuado decisivamente como um tipo de orientador informal, como sabemos. Foi de Florestan, para dizer o mínimo, a sugestão que a Elide deixasse a comparação entre Gilberto Freyre e Euclides da Cunha como duas matrizes de interpretação do Nordeste, para se concentrar no primeiro. Lembro aqui que a Elide vinha então da área da sociologia rural, em que formulara e defendera seu importante mestrado sobre as ligas camponesas. Observo que esse é um dos percursos típicos na área, especialmente entre os orientados da própria Elide. Recentemente ela e Mariana Chaguri vem testando algumas intepretações clássicas do Brasil e sua capacidade de interpelação aos processos sociais contemporâneos no mundo rural, numa abordagem inovadora que confronta dados empíricos (sobre o rural hoje) com interpretações para reconstruir analiticamente um circuito de intersecções entre a produção das ideias e os processos sociais.

Bem, voltando ao artigo do João Maia, ele acerta, a meu ver, ao destacar a importância na obra da Elide das categorias de “tragédia”, “totalidade” e “processo” tomadas a Lukács, sobretudo em seus escritos sobre as relações entre literatura e sociedade, postas em diálogo também com a sociologia do romance de Goldmann, autor que Elide voltou novamente a estudar nos últimos anos junto com alguns dos seus orientandos mais jovens, especialmente Mariana Chaguri e Mário Medeiros, hoje seus colegas de departamento. Na minha época de estudante, de fato, nós éramos estimulados a ler os textos sobre literatura do Lukács no Centro de Estudos Brasileiros, não apenas pela Elide, mas também pela Walquíria Leão Rego. Essas observações aparentemente laterais podem nos ajudar a ilustrar o caráter quase artesanal que fazer pesquisa em pensamento social brasileiro implicava nos anos de 1990 e, talvez, implique ainda hoje, bem como o diálogo estratégico com a crítica literária, no nosso ambiente, de fato, sobretudo, a crítica paulista, da sociologia da literatura de Antonio Candido e Roberto Schwarz. Os livros do Roberto publicados nos anos 1990 e inicio dos 2000 eram aguardados e dinamizavam de fato nossas discussões sobre as possibilidades de se fazer pesquisa do pensamento social considerando a narrativa dos ensaios e não apenas a biografia dos autores (especialmente os detalhes de suas vidas privadas, de preferência picantes) e a história institucional das ciências sociais no Brasil, como acontecia, em grande medida, naquele momento nos trabalhos de colegas que então também se identificavam como pensamento social brasileiro ou pensamento social no Brasil.

João Maia sabe que Gilberto Freyre e o pensamento conservador não são os únicos objetos de pesquisa da Elide, envolvendo ao menos também a própria tradição intelectual que ele lhe atribui como a matriz de sua formação (da Elide), e que é objeto justamente do texto do Antonio Brasil Junior, no mesmo dossiê de S&A, ao qual já passarei. Tendo a concordar com o João que, até o momento, As criaturas de Prometeu. Gilberto Freyre e a formação da sociedade brasileira é a Magnum opus da Elide. Trata-se, como sabemos, de livro de 2006, mas baseado em sua tese de doutorado defendida em 1985, uma das primeiras teses acadêmicas sobre Freyre, talvez, a primeira fora do círculo de influência do próprio autor. Disse por enquanto, pois tenho a expectativa de que a Elide reúna em livro alguns de seus excelentes escritos sobre Florestan Fernandes, e entre eles os comparativos entre este e Freyre.

Ainda com o João Marcelo, a questão central do seu texto é, pois, como a Elide mobiliza aquela perspectiva crítica associada a um marxismo heterodoxo do seu ambiente universitário de formação e atuação profissional para analisar o pensamento conservador, especialmente, de Gilberto Freyre. Também não é esse o momento para discutir a ideia de “aparente contradição” que o autor vê nesse movimento, que busca esclarecer. Mas gosto, sobretudo, do valor heurístico que a exposição desse movimento analítico no interior da obra da Elide pode ter.

De fato, não será novidade para a Elide ser questionada por dedicar tanto de seu tempo e energia intelectual a estudar um autor conservador como Gilberto Freyre. Há comumente nesse tipo de questionamento um suposto muito perigoso que precisa ser discutido, o de uma identidade entre o analista e a obra que toma por análise, como se a posição do analista equivalesse a do autor/obra analisado. Essa identidade que faz tabula rasa da distinção entre método e objeto – central na tradição sociológica – passaria a ser cada vez mais valorizada também nas ciências sociais. E isso, não raro associada a certas apropriações e desdobramentos da antropologia e do multiculturalismo que chegam a nossos dias como afirmação tanto de uma questionável transparência do mundo social, como se o ator soubesse tudo sobre a sua situação e/ou condição, constituindo, portanto, a sociologia como apenas mais um ponto de vista ou discurso equivalente a qualquer outro; quanto a uma brutal reificação da estrutura social que, a meu ver, está por trás dos chamados “lugares de fala” e o principio correspondente de que só é possível falar de uma dada situação se a vivência como ator social, ou seja, a ideia de que o conhecimento sociológico é apenas expressivo. Que a aventura do conhecimento se limita a miséria da vida.

O Brasil seria um país feliz se não fosse preciso estudar o pensamento conservador, especialmente se entendemos, como Elide Rugai Bastos sugere, que as ideias são forças sociais atuantes na modelagem das ações dos grupos sociais, como já veremos. Penso que os acontecimentos em curso na sociedade brasileira desde 2013 e, sobretudo, o sentido que o processo bastante complexo vai assumindo, e de que o Impeachment da presidente Dilma Roussef em 2016 vai se mostrando, enfim, apenas um momento, mostram que, infelizmente, a posição defendida pela Elide em seus livros sobre Gilberto Freyre e outros, de que é preciso entender o pensamento conservador e seu papel na socialização cultural e política brasileira é imprescindível, e diria, sobretudo, para aqueles que se querem progressistas.

    Como João Maia mostra, então, na “obra de Elide revela-se justamente como a dinâmica do processo social brasileiro implica um mergulho no sentido de nossa tradição, ou melhor, nos elementos intelectuais, culturais e sociais relacionados à conservação. Neste estranho movimento reside uma das grandes singularidades nacionais: para entendermos o processo social e a dinâmica da mudança, há que decifrar as forças que lhe são opostas” (Maia, 2015: 539). Essa é uma compreensão sociológica fina que nos faz perceber, como sustenta João Maia, que o processo social brasileiro “não se revela facilmente por uma análise sociológica da vida material e/ou econômica, mas, sim, por uma investigação totalizante que dê relevo ao mundo da cultura e das ideias. Isto se dá porque nosso doloroso processo modernizador foi capaz de produzir elevados indicadores de crescimento econômico, transformando o país num dos mais industrializados do mundo, mas continuou a secretar dinâmicas sociais perversas” (Maia, 2015: 547-548).

Mas não quero ser tão empiricista, com o perdão da palavra. Se a justificativa para pesquisar o pensamento conservador está numa compreensão da dinâmica social particular da sociedade brasileira, como parte de uma experiência mais ampla de transição para a modernidade, dinâmica, reiterada, ao longo da nossa história moderna e também contemporânea, como infelizmente vamos vendo, há muitas formas de realizar uma análise desse tipo. E a inteligibilidade fina do processo social depende, ao fim e ao cabo, justamente dos caminhos percorridos na análise das interpretações do Brasil. É nesse sentido, inclusive, que distinguiria mais do que aproximaria a análise da Elide sobre Gilberto Freyre e o papel de sua interpretação do Brasil na conciliação política pós-30 de outras análises da modernização conservadora, como as de orientação gramsciana de Werneck Vianna evocada por Maia. Mas não posso me estender no assunto aqui.

Justamente esse movimento do método é tratado por Antonio Brasil Junior em seu artigo. O qual, passo, enfim, a considerar. Como sustenta Brasil Jr., a análise da relação entre ideias e vida social é pensada na obra de Elide Rugai Bastos “como uma via de mão dupla, conjugando a reflexão sobre o lugar e os efeitos das ideias na constituição da sociedade brasileira e a análise de como as categorias empregadas pelos intelectuais acompanham o movimento mais amplo da sociedade” (Brasil Jr., 2015: 553). O autor chama ainda a atenção para o fato de que Elide R. Bastos “se mostra contemporânea a uma série de perspectivas teóricas, como as de Anthony Giddens (2013) e de Niklas Luhmann (2007), que valorizam a relação entre ideias e sociedade numa via de mão dupla, isto é, não só a conformação social das ideias – como aponta a sociologia do conhecimento mais usual –, mas igualmente os efeitos sociais das ideias na conformação de imagens de mundo, de desenhos institucionais e de práticas sociais” (Brasil Jr.,: 568).

Tomar a própria tradição sociológica em que se formou como objeto implica igualmente no caso de Elide Rugai Bastos, proceder a distinção entre método e objeto. Como aventa Brasil Jr., parece mesmo que os primeiros textos da autora sobre Florestan Fernandes e seu grupo sejam resultado de um esforço reflexivo de Bastos em contrastar Freyre e Fernandes durante a confecção de sua pesquisa de doutorado sobre o autor de Sobrados e mucambos (1936). Contraste que, como assevera Brasil, não passava mesmo “pela disjuntiva ‘ensaio’/’ciência’, nem tampouco pelo recorte dado unicamente pela institucionalização universitária das ciências sociais. Mas antes, pelas perspectivas muito diferenciadas a partir das quais os dois reconstroem a formação da sociedade brasileira” (Brasil Jr., 2015: 559). Como observa ainda Brasil Junior: lembrando do dialogo de Elide com Gabriel Cohn sobre esse “mais perfeito par de opostos que se possa imaginar”: se é verdade que “Bastos concorda com Gabriel Cohn no sentido de explicar estas diferenças não somente na origem social de Freyre e Fernandes, mas especialmente no modo pelo qual os dois articulam os seus conceitos e métodos, ela vai além e busca situar o cerne de suas principais diferenças nos sentidos e nos efeitos políticos de suas ideias” (Brasil Jr., 2015: 555).

Assim, chama a atenção, no texto “Florestan Fernandes e a construção das ciências sociais”, que está no livro Florestan Fernandes ou o sentido das coisas (1998), uma argumentação que localiza nos diferentes sentidos políticos assumidos pelas ideias as inflexões decisivas no processo de “sistematização” das ciências sociais no Brasil. Para Bastos, é com Freyre, na década de 1930 – antes, portanto, da implantação universitária do ensino e da pesquisa em ciências sociais –, que se estabelece a autonomia explicativa do “social”, se demonstra a “anticientificidade das interpretações racistas” e se faz a “crítica ao determinismo geográfico” (Bastos, 2009: 165). Se a sociologia se “sistematiza” com Freyre, qual a especificidade do modo pelo qual Florestan Fernandes dá seguimento a esta “sistematização”? Justamente na crítica, inscrita na sociologia de Fernandes, ao modo pelo qual as ideias de Freyre (e outros autores anteriores) acabaram contribuindo para a reprodução dos arranjos tradicionais de dominação vigentes. Assim, sugere Brasil Jr., “a disjuntiva que polarizou este debate em torno do “ensaio” e da “ciência” perderia de vista aquilo que é essencial” (Brasil Jr., 2015: 556). Nas palavras da autora:

No final da década de 50 e início dos anos 60, o acordo de quase 30 anos que formou o bloco agrário-industrial está sendo denunciado através de várias facetas da sociedade brasileira – pela crise do poder, pelos movimentos sociais, pelo desenvolvimentismo, pela retomada da questão dos direitos […], pelo debate da questão fundiária, para citar alguns dos elementos presentes no processo. O pensamento social desenvolvido por Florestan soma-se a eles, contribuindo de modo efetivo para o questionamento do bloco no poder. Portanto, é natural que sua análise questione a Sociologia anterior, uma vez que a mesma não pensara a “verdadeira natureza” das relações sociais […] E, nessa direção, critica as análises sociais fundadas unicamente sobre a diversidade – isto é, as explicações culturalistas da década de 30, das quais resultaram as formulações sobre a democracia racial, indicadas como mito por Florestan Fernandes. Sua reflexão busca apontar que essa heterogeneidade esconde uma profunda desigualdade. Portanto, o debate sobre o âmbito da Sociologia não mostra um gratuito enfrentamento entre os autores, mas indica um profundo enraizamento no solo histórico onde se fundamentam as ideias. (Bastos, 1998: 150-151)

Esta passagem condensa os grandes temas de Bastos, como analisa em detalhe Brasil Jr.: “os diferentes efeitos políticos das ideias, o papel dos movimentos sociais, dos conflitos e das crises sociais, econômicas e políticas na definição da ‘questão nacional’ a ser enfrentada pelos intelectuais, a crítica à ideia de que diversidade e desigualdade sejam termos intercambiáveis, o enraizamento social das ideias e de sua gênese” (Brasil Jr., 2015: 556).

A questão central, como também nota Brasil Jr., é o deslocamento provocado pelas análises da Elide tanto de Gilberto Freyre quanto de Florestan Fernandes da questão racial tomada como fenômeno isolado da estrutura social mais ampla para uma discussão sobre o papel social e político do patriarcalismo na sociedade brasileira. Não nos enganemos, ao assumir que cabe à sociologia esclarecer e explicar processos que não se encerram ordeiramente dentro dos objetivos e também interesses dos intérpretes do Brasil, a autora contraria, corajosamente, tanto as autopercepções desses intérpretes sobre a sua obra e seu papel social, quanto o questionável principio de, digamos, identidade ou simetria entre estas representações dos interpretes sobre si mesmos e aquilo que é possível – e necessário – dizer sobre as suas obras. Identidade atuante em grande medida na fortuna crítica tanto de Florestan, quanto de Freyre. E lembremos que a autora conviveu com ambos os intérpretes, com Freyre no início dos anos 1980, entrevistando-o e pesquisando em seu acervo pessoal, quando fazia a pesquisa do doutorado. Com Florestan, como já se disse, como colega de Departamento na PUC. No caso de Gilberto Freyre, em particular, Bastos contraria a ideia repetida ad nauseam, tanto por seus seguidores quanto por detratores, de que a sua originalidade e contribuição estaria na tese da interpretação de etnias e culturas, mas antes no papel do patriarcalismo na articulação da sociedade. Como a própria autora assumiu: “ousei afastar-me do debate que afirma estar na questão da articulação das etnias e culturas o eixo da interpretação de Gilberto. A ênfase dada à contribuição cultural das três raças formadoras na constituição da sociedade brasileira é, inegavelmente, um passo gigante em relação às interpretações anteriores. Talvez essa importância, aliada ao fato de negar a inferioridade das raças não brancas, tenha ajudado a obscurecer o tema que aponto como tese principal que preside o conjunto de suas obras, isto é, a afirmação do papel do patriarcado na construção desse amálgama racial e cultural” (Bastos, 2009: 167).

Sua ousadia e coragem são definidoras do perfil intelectual de Elide Rugai Bastos, e para aqueles que a conhecem de perto, da sua personalidade fascinante. Constituem ainda uma marca da sociologia como método de abordagem do social, na sua melhor tradição. Mas tudo isso, bem como seus os traços que derivam obviamente da personalidade própria da mulher Elide, também modelam o horizonte de expectativas e a recepção de sua obra. Em tempos de multiculturalismo e ciências socais expressivas crescentes é corajosa a afirmação de que a desigualdade social estrutura as relações e processos sociais. Em tempos de valorização da diversidade cultural e de certo pluralismo de identidades como valores em si mesmos é corajosa a afirmação de que eles existem sempre em contextos e que como tais não são independentes de outras relações sociais. Em tempos de fragmentação da política é corajosa a pergunta sobre os limites do projeto emancipatório no Brasil. Em tempos de materialismo sem utopia nas ciências sociais é corajosa a pergunta sobre o porquê de certas interpretações terem tido mais êxito que outras em se transformarem em forças sociais efetivas. Em tempos, enfim, de fragmentação da própria sociologia é corajosa a sociologia que se coloca como tarefa entender como a sociedade se articula em seu conjunto. É essa sociologia corajosa que Elide Rugai Bastos tem dado vida!

* * *

Quero terminar com uma nota política. Como Sísifo, estamos novamente desafiados a explicar sociologicamente por que a legitimidade dos valores e das práticas democráticas parecem não se enraizar no Brasil. Os avanços substantivos da democracia nas últimas duas décadas no Brasil, especialmente o combate às desigualdades e as políticas de reconhecimento de direitos sociais e civis, concomitantes à consolidação de sua perspectiva constitucional, desde a Constituinte de 1988, talvez tenha levado a muitos de nós além da ilusão de que falava Florestan Fernandes na segunda edição de A sociologia numa era de revolução social, de 1976 (e a Elide sempre alertou para as diferenças entre os dois prefácios do livro, deste e do de 1962 nos quais há uma inflexão no modo pelo qual Fernandes vê as possibilidades de participação do sociólogo na sociedade). Diz Florestan:

Pensava que o dilema social brasileiro estaria em ajustar as esferas da sociedade brasileira, que não se transformaram ou que se transformaram com menor intensidade, às esferas que se alteraram com maior rapidez e profundidade. Com isso, encarava a situação sociocultural do Brasil como uma alternativa da teoria da demora cultural, como ela é formulada por Ogburn, em vista do padrão de desenvolvimento da comunidade urbana na era industrial. Essa é uma ilusão que poderia afetar o agente social que visse a “realidade brasileira” através do conhecimento de senso comum e pelo prisma das potencialidades econômicas, culturais e sociais típicas da cidade de São Paulo. Que tal ilusão tenha interferido nas ideias de alguém que compreendia essa mesma realidade através de categorias sociológicas e não tinha dúvidas em apontar a inadequação estrutural e dinâmica do horizonte cultural dominante constitui algo digno de ponderação. Isso quer dizer que estamos de tal maneira impregnados daquelas manifestações de teor compensatório, que o próprio cientista social precisa percorrer um caminho difícil para libertar-se de prenoções e chegar a assumir uma posição favorável à descrição objetiva das coisas (Fernandes, 1976: 210-211)

    Reencenando o drama, muitos de nós, talvez acreditássemos que a legitimidade dos valores e das práticas democráticas havia, enfim, se enraizado em nossa sociedade. O presente que então pensávamos viver parecia para alguns começar a contrariar toda a nossa história, na qual incríveis desigualdades sociais convivem tanto com aceleradas modernizações quanto com avanços políticos-institucionais relevantes – de que a nossa primeira constituição, de 1824, não nos deixa esquecer, afinal era avançada e liberal e normatizava uma sociedade escravocrata. Mas o presente que acabamos por estar de fato vivendo, parece, não é aquele imaginado. Não apenas do ponto de vista político, mas mais ainda, talvez, do ponto de vista social, a legitimidade da democracia não parece estar assegurada no nosso cotidiano, não ao menos no sentido de um consenso normativo compartilhado nas orientações das condutas e nas práticas dos indivíduos e grupos sociais.

    Daí o espanto com relação ao sentido assumido pelos acontecimentos em curso desde pelo menos 2013. Espanto mesmo para os céticos com relação à capacidade das inovações institucionais modelarem, por si só, a sociedade; ou, ao contrário, para aqueles que sentiam a sociedade em movimento e em direção a novas formas de sociabilidades primárias. Ou mesmo para aqueles habituados a lidar com a lógica muitas vezes contraditória com que a história dos direitos e da cidadania no Brasil (e alhures) se processa, uma história não linear, onde, se o exercício de um direito (por exemplo, político) é condição para novas conquistas (direitos sociais, por exemplo), nenhuma conquista está assegurada para sempre, uma história de avanços e recuos, portanto.

    Como Antonio Brasil e eu escrevemos num texto recente em que voltamos à teses de Florestan Fernandes para dimensionar a força do presente, que, aliás, Elide vai dedicado a você, não se trata de negar, por óbvio, que houve mudanças sociais e uma ampliação inaudita das formas de participação nas últimas décadas. A análise das formas de participação social não pode limitar-se, porém, a correlacionar variáveis estruturais e mudanças institucionais, como se a democratização político-institucional levasse necessariamente a um círculo virtuoso de incremento associativo e maior controle democrático. Antes, na medida em que as próprias instituições políticas interagem – de maneira tensa ou acomodatícia, a depender das forças sociais em disputa – com o legado de uma sociedade fragmentada, excludente e autocrática, uma perspectiva histórica é fundamental para se entenderem as reviravoltas na espiral de democratização do Brasil contemporâneo.

    Pesquisadores da área de pesquisa do pensamento social brasileiro, estamos sempre desafiados a repensar nosso repertório intelectual e analítico ante os desafios do presente. Não se trata, porém, de uma idiossincrasia, já que os mesmos problemas são reiteradamente colocados à pesquisa dos clássicos das ciências sociais, sobretudo, quando orientações empíricas ou historicistas pretendem sugerir que a relevância de uma interpretação se extingue em seu próprio contexto. Compreendidas como espaço reflexivo de comunicação entre presente, passado e futuro da sociedade, as interpretações do Brasil nos ajudam justamente, então, a ganhar perspectiva para entender o processo social reflexivo que o nosso presente ainda oculta e, desse modo, quem sabe consigamos realizar uma crítica consistente do presente. Devemos à sua coragem e à sua sociologia essa perspectiva. Muito obrigado querida!

Referências Bibliográficas:

BASTOS, Elide R. Florestan Fernandes e a construção das ciências sociais. In: Martinez, Paulo Henrique (org.). Florestan ou o sentido das coisas. São Paulo: Boitempo, p. 143-156, 1998.

BASTOS, Elide R. “Comentários a Roberto Motta”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.24, n.69, São Paulo, fev. 2009.

BRASIL JR, Antonio. “As ideias como forças sociais: sobre uma agenda de pesquisa”. Sociologia & Antropologia, 2015, vol.5, n.2, pp.553-574.

FERNANDES, F. A sociologia numa era de revolução social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1976 [1963].

GIDDENS, Anthony. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. México: Herder, 2007.

MAIA, João Marcelo E. “Os sentidos da tradição: um estudo de caso no pensamento social brasileiro”. Sociologia & Antropologia, 2015, vol.5, n.2,, pp.535-551.



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