Simpósio 12 | Mundo Social e Pandemia

Piet Mondrian. Tableau n. 2, Composition no. V, 1914. The Sidney and Harriet Janis Collection, Australia.

O Blog da BVPS publica hoje o décimo segundo post do simpósio internacional Mundo Social e Pandemia, uma parceria com a revista Sociologia & Antropologia e a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS). A organização é de Andre Bittencourt (UFRJ e editor do Blog da BVPS) e Maurício Hoelz (UFRRJ e editor de S&A).

No simpósio, sociólogas e sociólogos do Brasil e do exterior responderam a um questionário com 4 perguntas, elaborado com a expectativa de indagar as diferentes dimensões sociais da pandemia e os desafios que ela representa para a sociologia. Mundo Social e Pandemia sai às terças e quintas no Blog da BVPS, sempre com as respostas de 5 colegas. Para ver os outros posts da série, basta clicar aqui. As versões originais das contribuições enviadas em inglês e francês são disponibilizadas nesta página, que será sempre atualizada. Para acompanhar as atualizações do Blog, siga nossa página no Facebook.

Hoje teremos como convidados/as:

David Le Breton, professor de sociologia na Universidade de Estrasburgo, França. Membro do Instituto Universitário da França e do Instituto de Estudos Avançados de Estrasburgo (USIAS). Autor, entre outros, de Rostos. Ensaios de antropologia e Desaparecer de si: Uma tentação contemporânea.

Elisa Reis, professora titular do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ). Autora, entre outros, de Worlds of Difference (Org.) e Processos e Escolhas. Estudos de Sociologia Política.

Kathya Araujo, pesquisadora do Instituto de Estudios Avanzados (IDEA) da Universidad de Santiago de Chile. É diretora do Centro Milenio Autoridad y Asimetrías de Poder. Autora, entre outros, de El medio a los subordinados: Una teoría de la autoridad e Desafíos comunes. Retrato de la sociedad chilena y sus individuos.

Marcelo Carneiro, professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Autor, entre outros, de Ações coletivas em complexos mínero-metalúrgicos: experiências na Amazônia e no Sudeste brasileiro (Org.) e Terra, trabalho e poder: conflitos e lutas sociais no Maranhão contemporâneo.

Sávio Cavalcante, professor do Departamento de Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Autor, entre outros, de Últimos escritos econômicos: anotações de 1879-1882 de Karl Marx (Org.) e Sindicalismo e privatização das telecomunicações no Brasil.

Boa leitura!

1. Sociólogos/as e cientistas sociais, em geral, estão se mostrando mobilizados/as para produzir e compartilhar interpretações sobre os efeitos sociais e políticos da pandemia. A teoria sociológica está equipada para enfrentar o desafio de compreender/explicar o fenômeno?

David Le Breton: Nenhuma teoria sociológica é capaz de compreender ou explicar sozinha a pandemia e suas consequências sociais e culturais. Múltiplas abordagens são possíveis para tratar de dimensões específicas do fenômeno de forma não excludente. Elas podem ser políticas, orientadas em termos de classe social ou de grupos de influência, por exemplo. A abordagem em geral é mais explicativa quando pertence a uma filiação predominantemente durkheimiana. Outras, por contraste, têm uma perspectiva compreensiva e centrada sobretudo nos atores em cena, nos significados e valores que eles atribuem ao evento. Da minha parte, pertenço claramente à linha compreensiva herdada de Max Weber ou de Simmel que se cristalizou na Escola de Chicago e no interacionismo simbólico. Mas nenhuma abordagem pode ter a arrogância de ser a única a dizer o que está acontecendo.

Elisa Reis: A perplexidade e a própria urgência experimentada no momento magnificam as dúvidas e incertezas com que nos deparamos. Certamente muitas das especializações da sociologia são chaves adequadas para pensar aspectos variados da crise e isso tem sido feito com sucesso em diversas áreas. Admiro e aprendo com as reflexões dos colegas sobre o acervo de nosso conhecimento sociológico e sobre como esse contribui para analisar e interpretar o impacto da pandemia.

Acredito que a sociologia política pode aportar conhecimentos valiosos nos planos local, nacional e global. As dúvidas sobre o presente e as controvérsias que envolvem as previsões sobre o mundo pós Covid-19 já começam a frequentar, por exemplo, a literatura produzida pela sociologia política de cunho histórico-comparativo. Sabemos também que as macro interpretações de crises cumprem elas próprias funções sociais, fornecendo não só aos especialistas mas também aos leigos interpretações que provém lentes para o entendimento do mundo em que vivemos.

Kathya Araujo: Sí y no. Sí: tenemos una tradición de pensamiento, un saber acumulado sobre procesos sociales de más de un siglo, una caja de herramientas que hemos ido perfeccionando, y un conjunto de problemas y límites que hemos ido haciendo visibles como primer paso para ir enfrentándolos. Nadie empieza de cero. El mundo social tampoco. La creación exnihilo está fuera de las atribuciones de la modesta y muy humana sociología. No: hay momentos en los que la exigencia de revisión de los presupuestos es una obligación a la que debe responderse, y eso debe acontecer renovando saberes, tradiciones, herramientas y generando un nuevo acervo de problemas. Es el caso hoy pues la pandemia no solo toca y enferma y amenaza los cuerpos de los individuos, lo hace con el cuerpo social… ha trastocado la vida social y lo menos que puede decirse es que ha tenido un efecto traumático en ella. Pero la urgencia no puede obliterar el futuro. Debemos evitar el riesgo de hacer de la tarea sociológica una mera respuesta a la contingencia. En este contexto, una cuestión que me parece esencial es reconocer que el desafío fundamental no es solo la pandemia, sino el proceso en marcha del cual ella es el síntoma. Estamos en un momento de profunda transición (cuyo desenlace está aún abierto), pero las transiciones son lentas, tienen ritmos diferentes en diferentes momentos, no son lineales, y hay que poder acompañarlas analíticamente.

Marcelo Carneiro: Acredito que um ramo específico da sociologia, a sociologia da sociedade do risco, desenvolvida a partir da obra de Ulrich Beck, forneça instrumentos teóricos importantes para a compreensão do surgimento da pandemia do Coronavírus. Na introdução ao livro “A sociedade do risco”, Ulrich Beck dizia, de forma premonitória: “Diante das ameaças da segunda natureza, absorvida no sistema industrial, vemo-nos praticamente indefesos. Perigos que veem a reboque do consumo cotidiano. Eles viajam com o vento e a água, escondem-se por toda a parte e, junto com o que há de mais indispensável à vida – o ar, a comida, a roupa, os objetos domésticos -, atravessam todas as barreiras controladas de proteção da modernidade”. Contudo, para analisar os efeitos sociais da pandemia, julgo que as abordagens inspiradas na análise de Karl Polanyi sobre a dinâmica de mercantilização da terra (natureza), do trabalho e da moeda oferecem uma perspectiva mais apropriada.

Sávio Cavalcante: Sim. Embora contenha limites – o que se espera, na verdade, de qualquer projeto científico – já existe um acúmulo de conhecimento suficientemente vasto na teoria sociológica para lidar com fenômenos sociais como a pandemia, o qual se apoia, por certo, na produção de diversas outras áreas das ciências humanas. Seria até desnecessário nomear dimensões, esferas, determinações ou temas. Como nada passará incólume ao Coronavírus, temos muito com o que contribuir. Penso que, nesse esforço, é urgente a sinalização para um saber acumulado que pode ser tomado, pelo menos nesse contexto, como uma unidade possível da sociologia. Não se trata de ignorar sua pluralidade e diversidade, algo que deve ficar mais do que explicitado nas diferentes respostas dadas por outros/as colegas. Porém, a ameaça neofascista no poder federal (com base social não desprezível) não se expressa apenas em “ataques”, mas na destruição da ciência que historicamente tem na autonomia universitária e de institutos de pesquisa seu princípio de realização, o que permitiu, entre outras coisas, a própria diversidade teórica. Mesmo as críticas ao projeto científico moderno internas a esse campo não estão imunes ao irracionalismo dessas forças.

Se o que precede faz sentido, penso que, além de compreender e explicar, é preciso que a comunidade de sociólogos/as também encontre maneiras adequadas de intervenção prática, uma efetiva sociologia pública. O momento por que passamos exige ação – condicionada, como sempre estará, pelas nossas possibilidades e arranjos pessoais e familiares. Pessoalmente, tenho tentado colaborar com os esforços que minha universidade – a Unicamp – tem realizado nesse sentido. As experiências que tenho tido nos últimos meses, ao colaborar com diversas frentes da força-tarefa criada na universidade, colocaram a mim e a outros/as cientistas sociais em contato direto com colegas da, entre outras áreas, biologia, química, estatística, medicina, engenharia e ciência da computação – além de diálogos com Ministério Público, empresas, associações de bairro e movimentos sociais. Na relação com essas outras áreas da ciência, instituições e agentes sociais, percebo que existem dimensões dos processos que, sem dúvida, exigem os conhecimentos e as experiências que sociólogos/as nos legaram.

2. Como a sua área de pesquisa especializada pode contribuir para a reflexão sobre diferentes dimensões desse fenômeno?

David Le Breton: Minhas pesquisas foram projetadas ao centro da crise sanitária e do confinamento, e eu fui muito solicitado por conta disso. Meu trabalho se dedica à antropologia do corpo, ao rosto, ao silêncio, às emoções, ao sentido, ao riso e mesmo ao desaparecimento de si! A crise sanitária perturba profundamente nossos ritos de interação. Os gestos de barreira impõem distância em relação ao corpo do outro ao considerar suspeita uma presença muito próxima e mais ainda em relação ao aperto de mão ou os beijos que impõe o contato. Além disso, a máscara introduz um embaraço imenso. Ao desfigurar o rosto, ela desfigura o laço social. Em nossas sociedades contemporâneas, o rosto é o lugar do reconhecimento mútuo. Por meio de sua nudez somos reconhecidos, nomeados, julgados, associados a um sexo, uma idade, uma cor de pele, somos amados, desprezados, ou anônimos, dissolvidos na indiferença da multidão. Conhecer o outro implica em lhe dar a ver e compreender um rosto cheio de sentido e valor, e fazer no eco de seu próprio rosto um lugar igual de significação e interesse. A reciprocidade das trocas no seio do laço social implica identificação e reconhecimento mútuo dos rostos, suporte essencial da comunicação. As mímicas indicam a ressonância de nossas palavras, elas são as reguladoras da troca. Essa dissimulação necessária do rosto se junta à interferência social e à fragmentação de nossas sociedades. Por trás das máscaras perdemos nossas singularidades, mas também uma parte da nossa licença existencial de olhar os outros ao nosso redor. Cada um de nós está isolado no meio do espaço público. Nos movemos por trás dos nossos muros que são a máscara e os gestos de barreira. O laço social se torna um arquipélago de indivíduos distanciados uns dos outros.

Elisa Reis: Alguns dos temas de pesquisa que me são caros podem se prestar a diálogos estimulantes envolvendo questões específicas sobre a crise atual. Pessoalmente, porém, tendo em conta as grandes incertezas do momento, tenho refletido sobretudo sobre como podemos contribuir na busca de respostas para os problemas sociais urgentes e os emergentes no futuro próximo. Pergunto-me como as ciências sociais podem compartilhar o conhecimento especializado sobre tais problemas com colegas de outras ciências. Nesse sentido, uma questão que tem me mobilizado é: como podemos compartilhar conhecimentos para identificar problemas inerentes à vulnerabilidade social e possíveis respostas a eles?

Já sabemos que com a atual crise sanitária e humanitária os problemas pré-existentes serão agravados. Mas, também sabemos que novos grupos vulneráveis e novas formas de vulnerabilidade estão sendo produzidas pela pandemia. Identificar, analisar e pensar soluções para velhas e novas vulnerabilidades demanda estreita colaboração entre colegas das ciências sociais e naturais. Se é verdade que a especialização permitiu avanços notáveis em todas as áreas do conhecimento científico, o grande desafio que os problemas contemporâneos têm nos colocado é como integrar de forma efetiva contribuições de diversas disciplinas. Nesse front, o que salta aos olhos é o caráter tentativo com que todas as ciências abordam os problemas hora em pauta.

Kathya Araujo: Investigo desde hace mucho tiempo cuestiones relativas a los individuos y el lazo social, esto es, las modalidades históricas específicas en las que se ordenan las relaciones entre los miembros de una sociedad y que le dan una relativa organicidad y sustentabilidad a ésta. En ese contexto me intereso por las formas de individuación, los tipos de sujeto posibles y encarnados en la sociedad, pero todo ello principalmente en el contexto de su relación con el colectivo, por eso he investigado también sobre relaciones con las normas, autoridad, el funcionamiento de los principios normativos en la vida ordinaria de las personas, entre otros ámbitos. Desde esta perspectiva, respondo afirmativamente su pregunta. Me parece que una dimensión principal a comprender es, precisamente, la manera en que el mundo que viene exigirá de nosotros transformaciones en las modalidades en que se han ordenado estas relaciones entre individuos. Un ejemplo relevante es la pregunta por cómo resolveremos la tensión entre libertad y control en circunstancias en las que previsiblemente, como lo es hoy con la pandemia, la coordinación simultánea de grandes masas poblacionales sea un requerimiento permanente. De qué manera y con qué consecuencias esta nueva configuración exigirá (o no) releer la atribución de libertad a los individuos, la que ha fundado al menos normativamente nuestras sociedades; qué destino tendráen este mundo que avistamosla idea la vida como valor fundamental e indiscutible; cómo imaginar la solidaridad en un mundo vertebrado por el problema de la sobrevivencia; de qué forma se resignifica la relación al colectivo en este contexto. La lista de interrogantes es muy larga y el tiempo que nos tomará responderlas también porque en tiempos de cambio lo que requerimos es ir acompañando los procesos y estos son de larga duración, como he señalado, pero en este contexto el estudio de las formas de recomposición del lazo social y también de las modalidades de individuación podrían contribuir de manera muy importante al esfuerzo de ir desentrañando lentamente la morfología que irá tomando el mundo que se avecina.

Marcelo Carneiro: Os estudos que realizo se situam na interface entre ambiente, trabalho e mercado, procurando compreender como diferentes formas de coordenação de atividades sociais (reciprocidade, mercado e redistribuição) se manifestam em campos de pesquisa como a produção de alimentos, o desenvolvimento de sistemas de certificação e de governança ambiental. Como falei antes, julgo que a crise da Covid-19 confere muita atualidade à abordagem polanyiana da relação entre mercado, sociedade e Estado. Ela nos ajuda a pensar os efeitos deletérios dos processos de mercantilização da natureza, do trabalho e da moeda, as famosas mercadorias fictícias. A terra (natureza) talvez seja a mercadoria cujo caráter fictício mais sobressai nesse contexto. O tratamento da natureza como mercadoria, objeto de forte contestação nas últimas décadas, ganhou intensidade com o evento da pandemia. Temas como o desmatamento, a apropriação de recursos comuns e o aquecimento global, após a disseminação da Covid-19, foram associados, por diversos especialistas, como fatores de produção de zoonoses. Contudo, como destacou Jane Goodall (2020), essas zoonoses não provêm unicamente do comércio de animais selvagens, como no caso da transmissão inicial do vírus em Wuhan. As péssimas condições da criação de animais em grandes fazendas também proporcionam um ambiente favorável para a produção desse tipo vírus. Nesse sentido, a crise atual indica também a necessidade de medidas que transformem o sistema agroalimentar vigente, que leve em consideração o bem-estar animal, a redução no uso de insumos agroquímicos e que aponte para o fortalecimento de circuitos curtos de comercialização alimentar.

Se a mercantilização da natureza está na origem da pandemia, o tratamento do trabalho como mercadoria fictícia aparece como umas das facetas mais dramáticas, por seus efeitos destrutivos, provocados pela dispersão da Covid-19. O número elevado de mortes entre trabalhadores(as) da saúde e dos cuidados (care), linha de frente do combate à pandemia em hospitais e asilos, além da alta taxa de contágio entre assalariados que foram obrigados a trabalhar para manter a economia funcionando, revelam as consequências  da desproteção a que foi submetido um mundo do trabalho, sob o domínio de políticas neoliberais das últimas décadas. Por fim, mas, não menos importante, a pandemia interpela também a natureza da moeda, como produto da relação entre o Estado e o mercado na gestão da economia. De acordo com a interpretação de W. Streeck, a atuação dos Estados nacionais, diante da dinâmica recente do capitalismo global, tem sido a de postergar o conflito distributivo através de estímulos ao endividamento privado e público.

Sávio Cavalcante: Entendo que períodos de interrupção forçada do que se entende por normalidade, como o da pandemia, provocam um efeito devastador para a sociedade, mas singular para a sociologia: pactos sociais são estremecidos, camadas de mediações que viabilizam a dominação, exploração e opressão são refeitas em registros menos opacos, contradições tornam-se mais explícitas, dilemas morais ficam mais sensíveis à experiência. Contudo, isso não significa, como indicarei adiante, que as coisas irão mudar “para melhor” no futuro. Mas o momento, em termos analíticos, é único. Destaco aqui dois problemas de pesquisa cujas configurações, na excepcionalidade da pandemia, denotam de forma crua os problemas da normalidade.

Meu objeto de pesquisa principal nos últimos anos tem sido a reprodução social da classe média e como isso repercute em seu posicionamento político e ideológico. Partindo das análises marxistas sobre trabalho produtivo e reprodução social, revela-se o nexo necessário entre as atividades diretamente produtivas para o capital, realizadas por contratos estabelecidos na esfera pública, e a reprodução social da vida organizada nas unidades domésticas. Parte da classe média pode até comprar certos serviços domésticos apenas para liberar um tempo de sua vida para o lazer. Porém, para a maioria, especialmente com filhos, a possibilidade de serem produtivos em seus trabalhos depende necessariamente do arranjo familiar específico que obtêm para se liberar dessas tarefas, o que se consegue comprando o tempo de trabalho de trabalhadores/as ou submetendo membros de suas famílias a relações assimétricas no espaço doméstico. Em termos práticos, isso significa que parte fundamental da discussão sobre classe, gênero e raça precisa lidar com o modo capitalista de se organizar a economia ou, em termos de reformas estruturais, é preciso vislumbrar formas de reprodução social garantidas pelo Estado que sejam alternativas públicas às unidades domésticas ou que pautem a diminuição geral da jornada de trabalho.

Um objeto de pesquisa correlato diz respeito à regulamentação do emprego. Em artigo recente, Vitor Filgueiras (UFBA) e eu defendemos que a mais importante “inovação” de empresas que contratam trabalhadores por aplicativos, como a Uber ou Ifood, não diz respeito à tecnologia ou a seu algoritmo. A maior inovação foi produzida por seus advogados e pelo lobby político, que corromperam legislações no intuito de impedir a tipificação do vínculo material empregatício entre empresa e motorista. Assim, parte majoritária do que se considera “trabalho autônomo” é, na verdade, trabalho assalariado dissimulado. O atual governo, que ampliou a reforma trabalhista, e as vozes que defendiam o “novo mundo do trabalho” agora se dizem preocupados com informais e autônomos. Ora, milhões de trabalhadores são informais ou autônomos por uma decisão política vista como justa e racional na normalidade.

3. A pandemia estaria provocando mudanças sociais, políticas e/ou culturais profundas? Ou acelerando tendências já em curso? Se sim, é possível vislumbrar os contornos das sociedades pós-Pandemia?

David Le Breton: O mundo inteiro entrou numa fase de liminaridade na qual faltam as instruções de uso. Um período de transição ainda a ser domado a fim de que possamos preparar novas ritualidades da vida cotidiana ou da interação com os outros, já que os gestos de acolhida foram destruídos pelos imperativos higiênicos. Os códigos antigos não funcionam mais, e ainda não temos certeza daqueles que virão. Os códigos nos faltam e será necessário os reinventar. A economia foi varrida, e não voltará tão cedo ao seu patamar anterior. Às ameaças à saúde seguem as ameaças ao emprego, além daquelas à paisagem de lojas e empresas nas mesmas vizinhanças onde vivemos. De maneira geral, os mundos contemporâneos avançam resoluta e cegamente em direção a um futuro que escapa a todas as previsões, mas a respeito do qual se fazem avaliações dos riscos que ele guarda em termos do choque das tecnologias sobre a qualidade de vida, a desregulação do clima, a poluição, as ameaças de riscos tecnológicos ainda maiores etc. Metade do planeta esteve confinada. A crise sanitária nos lembra da estreita interdependência de nossas sociedades, da impossibilidade de fechar nossas fronteiras. E tampouco as fronteiras biológicas entre os componentes dos inúmeros mundos vivos, entre o animal e o humano, ou com o ambiente em seu conjunto. Tudo está ligado. Estamos imersos na matéria viva do mundo, substância entre substâncias sem que fronteiras delimitem verdadeiramente a humanidade dos reinos animal e vegetal, por exemplo. O cosmos está em nós como nós estamos no cosmos. Tudo está em tudo, como dizia Anaxagoras. O surgimento do coronavírus é uma nova volta no parafuso no emaranhado dos mundos num mesmo mundo cada vez mais estreitamente tecido e cuja arquitetura não cessa de se fragilizar. Um paradoxo, além do mais, é que ao reduzir a circulação automóvel e aérea, ao paralisar incontáveis atividades poluentes, o vírus conseguiu uma espécie de respiração ecológica para o planeta, notadamente para o reino animal. Um estudo finlandês mostra que, apenas na Europa, 12.000 vidas foram salvas pelo confinamento e consequentemente pelo desaparecimento da poluição ambiental, dezenas de milhares de crianças escaparam da asma. Além disso, a diminuição do tráfego de automóveis salvou dezenas de milhares de pessoas que seriam vítimas de acidentes mortais. Esse é o paradoxo inacreditável das nossas sociedades pós-modernas. A crise sanitária é um exemplo de coincidência de opostos. O pior nos chama a ter lucidez a respeito do mundo por vir, nos dá um ensinamento infalível. É um teste trágico que produz soluções para um mundo mais solidário e feliz. Após anos de indiferença extrema em relação às reivindicações sociais do mais desfavorecidos, essa pandemia nos lembra da necessidade antropológica da partilha. Somos interdependentes para o melhor e o pior.

Elisa Reis: O grau de incerteza com que todos nos deparamos é algo que por um lado coloca em questão o próprio modo como pensamos e lidamos com cada um de nossos nichos disciplinares. Por outro lado, a própria incerteza e o caráter de urgência dos problemas em curso devem nos motivar a renovar o compromisso com o esforço metódico e sistemático de avançar o conhecimento.  Da mesma forma que no âmbito das ciências experimentais convivem debates e disputas, no contexto das ciências sociais as discordâncias devem ser tratadas de forma explícita e o diálogo levado à frente de forma sistemática. Como em todas as áreas da ciência, existem entre nós disputas, controvérsias, diálogos. A credibilidade da ciência reside, em grande parte, precisamente no fato de que o que produzimos é alvo de constante discussão e crítica. Sabemos que o alcance de nossas interpretações e explicações é sempre parcial, limitado e destinado a ser superado, mas faltar com esse compromisso seria negar tanto a ciência como vocação como a vocação da ciência.

Kathya Araujo: La pandemia pone contornos más definidos al momento de transición en el que nos encontramos. Más que un hecho puntual es quizás el primer acontecimiento visible y reconocibledada su magnitud de una serie que vendrán y que van a terminar por darle contorno al mundo en el que deberemos vivir. Un mundo, como decía Beck, de amenazas globales, pero del que no sabemos a ciencia cierta en qué derivará. La historia, como ha sido reiterado, no es sino el resultado de disputas para darle significado y dirección a los acontecimientos, y me parece que eso es exactamente lo que enfrentamos. Ahora, yo creo que para encarar este desafío noayudará la estrategiade usar la oportunidad para probar las teorías propias. La arena de la disputa requiere humildad y como decía Mills, ese salto que es la imaginación sociológica. Por ahora, mucho de lo que leo que producen los intelectuales va en la primera dirección… Creo que el mundo que viene es impredecible, porque nos guste o no, hoy más que nunca deberemos entender que estamos si no en el ojo del huracán sí en el de la historia.Todo parecería indicar, por supuesto, que deberemos recrear al mundo para hacerlo posible, y si eso es así, eso significa que se deberán poner en cuestión formas de producción, de distribución de las riquezas, los signos de status social, las formas de regulación, los principios normativos que nos acomunan… Ahora, si lo que viene serán ajustes que nos dejen en un paisaje similar (de injusticia o desigualdad, por ejemplo) o transformaciones que nos lleven a cambios profundos, es difícil saberlo. Si todo ello tendrá como resultado un mundo mejor, no hay nada que pueda garantizarlo. Dependerá del destino de las disputas que deberemos enfrentar. Solo una certeza: ellas serán de fondo.

Marcelo Carneiro: De maneira geral, a crise provocada pela Covid-19 explicitou claramente as fragilidades de Estados nacionais e da cooperação internacional para lidar com seus efeitos. Muitas vozes, de diferentes partes do espectro político, vêm se manifestando pela necessidade de fortalecimento dos sistemas de proteção social.  Isso pode indicar que o pêndulo da história esteja se movendo no sentido de uma limitação da mercantilização de importantes esferas da vida social, como sugere a tese polanyiana acerca do movimento da sociedade se defendendo dos excessos do liberalismo.Todavia, como lembrado por Boltanski e Chiapello, o capitalismo pode também recuperar os elementos das críticas que lhe são endereçadas, colocando a crítica artística contra a crítica social ou, como argumentou Fraser, no mesmo diapasão, movimentos emancipatórios podem se unir com forças de mercado, ao invés de se aliarem aos atores que postulam uma maior proteção social, fragilizando, por conseguinte, a luta contra o neoliberalismo.

Sávio Cavalcante: Como afirmei acima, o contexto da pandemia permite analisar sem algumas mediações os princípios que justificavam os critérios de existência sob a normalidade, especialmente aqueles que definem o valor do tempo e da vida das pessoas sob as lentes da amoralidade dos laços mercantis. Na excepcionalidade provocada pela pandemia, é possível sentir uma verdade da normalidade: a sociedade é um ente maior que a simples soma das partes que a compõem e certos princípios não são redutíveis ao cálculo de sobrevivência, mais ou menos correto, que fazem os indivíduos isoladamente. Para as ciências sociais, isso pode trazer consequências duradouras. Haverá fatos empíricos novos, a partir de agora incontornáveis, sobre como as desigualdades, apresentadas como justas e racionais, modificam não apenas as oportunidades de vida, como o próprio direito de preservá-la. Novamente, de forma alguma imagino que isso seja uma novidade. O que é diferente é a perda de verniz moral para se defender publicamente que há vidas descartáveis e ponto final.

Embora a indignação social tenha aumentado no início desse processo, a normalização das desigualdades injustas tende a permanecer e, sendo realista, a perspectiva é de piorar o que já estava ruim. Porém, algumas frestas e janelas de oportunidade podem ser abertas, a começar pela possibilidade de reconquistar recursos públicos para, de fato, serem direcionados para o SUS, com algum aumento de apoio na classe média. Há uma oportunidade de reversão da barbárie neoliberal. Ademais, inúmeras experiências de ação coletiva e auto-organização são formadas ou repensadas, por exemplo, nas periferias dos grandes centros urbanos, o que pode trazer um legado de organização política de base importante em termos da urgência do presente e da construção de alternativas para o futuro.

4. Que obra(s) da sociologia e das demais ciências sociais podem nos ajudar a compreender e a conversar sobre os desafios em curso?

David Le Breton: O coronavírus levou ao fracasso provisório do neoliberalismo, paradoxalmente fazendo necessário o apoio do Estado às populações mais afetadas pela crise sanitária. Os serviços públicos se revelaram um suporte da maior importância à manutenção das atividades fundamentais da vida cotidiana. Estamos em um período de suspensão, e é difícil saber qual lição os Estados e a economia tirarão dele. Restaurar o humanismo social violentamente atacado no mundo todo por um capitalismo triunfante e cínico é um imperativo, para revitalizar o gosto pela vida, proteger a diversidade ecológica do planeta e dar apoio aos mais vulneráveis. Nesse sentido, estamos na encruzilhada para romper com uma economia obcecada pelo lucro que multiplica a miséria social e a destruição a curto prazo do planeta. Essa crise sanitária é uma travessia provisória da noite, do luto, da angústia, mas do outro lado nos espera uma forma de renascimento. Estamos num cruzamento de caminhos, a atitude dos políticos será determinante: a crise sanitária pode engendrar um salto humanista, uma atenção ecológica maior com o planeta, uma preocupação social para a luta contra as desigualdades e injustiças. Me parece que a antropologia dos mundos contemporâneos é a abordagem mais sensível, aquela que leva em conta a dimensão do sentido e dos valores que impregnam nossas existências individuais e coletivas. Ao tratar da condição humana enquanto algo que está sempre inscrito num contexto social e cultural preciso, ela fornece orientações essenciais à elaboração de um laço social mais fértil. Ela nos informa aquilo que dá coesão ao laço social, que o faz propício e que alimenta nos atores o gosto de viver com os outros.

Elisa Reis: Destacar obras específicas de especial relevância para o momento atual é extremamente difícil dado o amplo escopo da crise atual. Cito, apenas a título de exemplo, três das muitas contribuições que me inspiram nesse momento: A Grande Transformação, de Karl Polanyi; In Care of the State: Health Care, Education and Welfare in Europe and the USA in the Modern Era, de Abram de Swaan, e Why Trust Science?, de Noami Oreskes.

Kathya Araujo: Pienso que un libro que nos puede ayudar a situar los desafíos que enfrentamos es el de Danilo Martuccelli, Les societés et l’impossible. Les limites imaginaires de la realité. Por mi cercanía con el autor, pensé que quizás no correspondería seleccionarlo, pero luego de darle muchas vueltas he decidido que, en tributo a la sinceridad, debo hacerlo. Estoy convencida que es el libro que con más claridad, erudición e imaginación nos permite entender la transición que vivimos. Nos permite leer el momento actual a la luz de diferentes momentos históricos, caracterizados de manera muy interesante como específicos régimenes de realidad. Analiza con claridad cada régimen y muestra cómo se vincula con una determinada formulación de los límites de la realidad lo que en última instancia le da forma al mundo que habitamos. Además es muy interesante su aporte para entender los procesos de abandono de unos régimenes en beneficio de la regencia de otros. Su recorrido conduce a afirmar que lo que nos acontece hoy es que estamos entrando a un nuevo régimen de realidad: pasando de un mundo estructurado por los límites imaginarios de la economía a uno que empieza a estructurarse a partir de los límites de la ecología. Una tesis que es defendida de manera elaborada, cautivadora y convincente. Adicionalmente, el libro es una propuesta que junto con esta interpretación de la condición histórica actual a partir de una mirada diacrónica, entrega una propuesta de renovación teórica de la sociología. Es un libro publicado el 2014, que adelanta, me parece, mucho de lo que hoy enfrentamos y seguiremos enfrentando. Indispensable.

Marcelo Carneiro: Duas obras publicadas recentemente lançam luzes sobre o processo de mercantilização acima exposto. L’emprise dês marchés, de Michel Callon, ajuda a compreender o papel crescente dos dispositivos mercantis em nossa vida cotidiana, ao passo que Capital e ideologia, de Thomas Piketty, num registro mais normativo, disseca de forma profunda os efeitos da ideologia neo-proprietarista no mundo atual e apresenta o que seria uma agenda política capaz de enfrentar o desafio da redução das diferentes formas de desigualdade – social, ambiental e fiscal – vigentes. Nesse sentido, o livro representa, a meu ver, a contribuição mais promissora das ciências sociais para pensar as consequências da pandemia sobre o mundo contemporâneo.

Sávio Cavalcante: Fazendo apenas um recorte que auxilia o que respondi acima: Os 4 volumes de Riqueza e miséria do trabalho no Brasil, organizados por Ricardo Antunes, fornecem um panorama importante de uma agenda de pesquisa que se colocou como alternativa crítica às posições que tomavam a “modernização do trabalho” pelo seu valor de face. A teoria da reprodução social, formulada por autoras como Cinzia Arruzza, oferece uma proposta materialista de como relacionar as determinações da produção e reprodução de mercadorias em geral e da força de trabalho, em particular. Assim como a pesquisa de Bárbara Castro sobre gênero e trabalho flexível é muito importante nesse aspecto. Como argumentou em artigo recente: “para atuar com contratos flexíveis é preciso dispor de um corpo que não adoeça, não engravide e não colapse”. Sobre a dinâmica da desigualdade brasileira, o livro organizado por Martha Arretche, Trajetórias da desigualdade: como o Brasil mudou nos últimos 50 anos, é fundamental para compreender mudanças e permanências. Um projeto teórico e metodológico interessante da problemática materialista para um dia ser pensado à luz da formação social brasileira é American Society: how it really works de Erik Olin Wright e Joel Rogers. Sobre a aplicação do conceito de fascismo na atualidade, os textos recentes de Armando Boito Jr. são contribuições teóricas e analíticas fundamentais.

***Uma versão revisada do simpósio se encontra publicada em Sociologia & Antropologia, n. especial, v. 11/2021, no link: http://www.sociologiaeantropologia.com.br/v-11-n-especial/

A imagem que acompanha este post é:

Piet Mondrian. Tableau n. 2: Composition no. V, 1914. The Sidney and Harriet Janis Collection, MoMA, Nova York, EUA.

* Os textos publicados pelos colaboradores não refletem as posições da BVPS.

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