Penetrável esquecimento. Estudo para retrato inacabado de Silviano Santiago, por André Botelho

Na atualização de hoje, o Blog da BVPS publica uma resenha da obra recém-lançada de Silviano Santiago, Menino sem passado (1936-1948), escrita por André Botelho. No texto, o autor lê o livro de memórias a partir da metáfora do “penetrável”, um “espaço-instalação” que exige do leitor disposições intelectuais e sensoriais em um labirinto de lembranças, estranhamentos e esquecimentos. Além disso, somos convidados a pensar Menino sem passado em relação a outros trabalhos de Silviano, especialmente Fisiologia da composição (2020) e Crescendo durante a guerra numa província ultramarina (1978). André Botelho é professor de Sociologia da UFRJ e um dos coordenadores do projeto MinasMundo: o cosmopolitismo na cultura brasileira. No momento escreve, junto com Maurício Hoelz (UFRRJ), o livro O modernismo como movimento cultural.

Este post é a segunda publicação da coluna minas mundo, um espaço dedicado à colaboração desse projeto com a BVPS. Para ler o primeiro texto da coluna basta clicar aqui. Para saber mais sobre a iniciativa, visite o site do projeto e leia o post de apresentação da parceria no blog.

Boa leitura!

Penetrável esquecimento. Estudo para retrato inacabado de Silviano Santiago

por André Botelho

O homem de boa memória nunca se lembra de nada, porque nunca esquece de nada. Sua memória é uniforme, uma criatura de rotina

Samuel Beckett, Proust

 Minha solidão alegra-se com essa elegante esperança

J. L. Borges, “A Biblioteca de Babel”

A economia interna – política, conceitual, estética – de uma das obras mais originais do nosso tempo acaba de ganhar dois aportes fundamentais: Fisiologia da composição e Menino sem passado de Silviano Santiago.  O primeiro publicado pela CEPE Editora em 2020, o segundo pela Companhia das Letras nesse início de 2021. Faço questão de referir-me à “economia interna” não para sugerir uma desconexão entre texto e contexto, como se fosse possível interpretar a obra de Silviano sem levar em conta o mundo sobre e contra o qual ela pensa. Antes, quero enfatizar que, mais do que dois novos livros, eles são realizações conceituais e estéticas que acrescentam, adensam e mais ainda afetam uma a outra e o conjunto de que fazem parte. Ao menos tal como até aqui realizado. Sua obra está em permanente movimento.

O primeiro livro foi resenhado com muita competência por Diana Klinger (2021) aqui neste Blog da BVPS. Naturalmente, só agora temos os dois livros disponíveis no mercado. Então, imagino que, como eu, outros estarão pensando-os em relação. Embora Menino sem passado seja o tema dos comentários que compartilho, é muito difícil para mim, neste momento, qualquer apreciação que dissocie os dois livros. Eles formam uma espécie de matéria-prima privilegiada do estudo para um retrato de Silviano Santiago nos dias nada fáceis que correm. Embora ambos tenham sido publicados durante a pandemia em que estamos vivendo e morrendo, Fisiologia da composição, salvo engano, foi inteiramente “pensado” dentro da situação de isolamento e confinamento por ela imposta – na qual “pensar”, seguindo Agamben (2018), “significa lembrar-se da página em branco enquanto se escreve ou se lê”. Talvez, por isso, o autor mesmo tenha feito questão de apresentar a sua leitura do seu livro, afirmando: “Gosto de pensar que Fisiologia da composição pode alimentar a discussão sobre o isolamento e o confinamento pandêmicos, como também a reflexão sobre o retorno do autoritarismo sob sua forma mais nefasta e insidiosa, a da supremacia branca”. Menino sem passado foi escrito antes da pandemia, embora tenha vindo a público depois de Fisiologia da composição. Daí certa sensação de “fechamento” que, confesso, Fisiologia da composição me causa quando lido em relação a Menino sem passado.

Fisiologia da composição é uma reflexão densa sobre a importância do corpo na relação homológica entre “grafia-de-vida” e “composição literária”. Sigo Diana Klinger. O verbo hospedar, tomado por Silviano de textos variados – da ficção machadiana de Esaú e Jacó a Da hospitalidade, de Jacques Derrida, ou de João Cabral de Mello Neto ao ensaio homônimo de Edgar Allan Poe –, por certo ganha sentido urgente no contexto de escritura e de nossa leitura (ainda vivemos na Tebas da peste e da tirania). Seu alcance, porém, não resta dúvida, é amplíssimo, vai muito além do contexto imediato. Hospedando-se naqueles e noutros textos, Silviano acaba por realizar uma espécie de autopoiese em relação ao percurso da sua obra realizada até o momento, projetando-a contra novos limites e ampliando o seu campo próprio. Afinal, é pela perspectiva do corpo que vai rever o processo de composição das Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, mas também do seu próprio romance Em liberdade – textos “gêmeos não univitelinos”; das Memórias póstumas de Brás Cubas e de Esaú e Jacó, mas também do seu próprio romance Machado. Compreendo, assim, que Fisiologia da composição acrescenta uma peça conceitual à obra de Silviano Santiago como um todo que, portanto, é importante também para o entendimento do livro de memórias mais recente: a ideia de “hospedagem”.

Dou-me conta de que pareço estar falando de um livro de memórias, afinal. Coincidências? Mas ainda estou comentando o primeiro livro, Fisiologia da composição. Valho-me da metáfora do próprio Silviano sobre o “parentesco” do seu trabalho com o de Graciliano, e insisto na tópica dos “gêmeos não univitelinos”, que é tão importante na economia interna geral de sua obra. A contemporaneidade entre Fisiologia da composição e Menino sem passado não é da ordem cronológica, simplesmente. A meu ver, são livros gêmeos. Guardam em comum a urgência da comunicação, a necessidade da reescrita e o trabalho de automonitoramento reflexivo sobre a questão central da repetição com diferença – à qual voltarei adiante. Mais do que “gêmeos não univitelinos”, porém, seria possível pensá-los como gêmeos inimigos? Os Esaús e Jacós de Silviano Santiago? Gosto da ideia, sobretudo, para marcar uma relação que me parece distinta no movimento “autopoiético” em ambos os livros e em seu sentido.

Recusando pensar a diferença entre os dois livros em termos de “gênero literário”, apostaria antes numa diferença que é de ordem interna à reescritura, relativa aos princípios narrativos. Colocando o problema de modo direto, e algo brutal, diria que em Fisiologia da composição, a reescritura parece agregar os diferentes textos escritos ao longo do tempo conforme um critério de inclusão ou exclusão voltado para “dentro” – um acerto de contas. O movimento autopoiético do livro como que se fecha para o exterior. Em contraste com isso, Menino sem passado se apresenta como se estivesse e se oferecesse em campo aberto, abre-se para “fora” num registro que pode até assumir um sentido conflituoso, ao incluir e fomentar improváveis comunicações com o leitor.

Voltemos ainda por um momento a Fisiologia da composição. Nele, homologias são traçadas impondo deslocamentos sucessivos entre “grafia-de-vida” (e não mais “autobiografia”) do autor e “composição do texto” (e não mais o texto como “objeto”). E essa hospedagem, nos sugere Klinger, é da ordem da “generosidade”. De uma espécie algo paradoxal de generosidade, eu ponderaria lembrando que é ainda dos regimes de si que se trata, pois, como na ficção de Silviano, também neste ensaio a construção do “eu” está sempre implicada na “outridade”. Diz a crítica: “O eu que narra está sempre a ser desafiado pela outridade que ao mesmo tempo acolhe e é acolhida por ele […] Acolhendo o outro-estrangeiro em sua narrativa, o autor Silviano Santiago abre mão da sua ’propriedade’ (de seu estilo, por exemplo) se engajando numa relação de generosidade mútua com o texto que o hospeda”.

A obra de Silviano Santiago está inteira na questão da repetição com diferença. Nela, teoria e ação só existem em referência a uma ontologia da diferença e da relação, que se contrapõe a outras de caráter sintético e substancialista. “Hospedagem” vem modificar esse espaço complexo, entre a assimilação a um modelo original e a necessidade constante e incansável (e quem sabe inalcançável) de reescritura. Acrescenta, adensa e afeta o que sabíamos até aqui da obra de Silviano a partir das categorias “entre-lugar” (como contraposição às diferentes sínteses entre “original” e “cópia”), “inserção” (em contraposição à “formação”) e “cosmopolitismo”(em contraposição ao autocentramento eurocêntrico). Repetição com diferença ela mesma, “hospedagem” permitirá a irritação mútua entre essas categorias ao mesmo tempo que exigirá repensar a autodiferenciação da obra de Silviano em relação ao seu “ambiente” (a estética – ação/reflexão) e a modificação que acarreta aos ambientes como um todo, já que poderá gerar ressonâncias (em particular sobre a questão da diferença cultural na sociedade brasileira). Mas também poderá alterar nossa compreensão da sua ficção, e mais especificamente da sua autoficção. O que poderemos apreender de Menino sem passado situando-o na relação homológica entre grafia-de-vida e composição do texto?

Nesse ponto as diferenças finas entre os dois livros recém-publicados talvez se deixem entrever melhor. Para isso, penso, é preciso apenas insistir um pouco mais no que chamei noutro texto de “temperamento socrático” de Silviano Santiago. Já não importa se “temperamento” aqui tem ou não a ver com “personalidade”, no sentido biográfico convencional. Já sabemos que o “autor” está morto. Trata-se antes, talvez, de um método. A escrita de si é trabalho árduo. Em mais de um aspecto no sentido de “chamado”/“vocação”, segundo a acepção calvinista de trabalho universalizada na modernidade tal como destrinchada por Max Weber. Trabalho metódico, cotidiano, repetitivo, portanto. No caso de Silviano, trabalho estético consciente da contingência e refratário a essencialismos, já se disse. Assim, o ponto é antes relacionar as mediações – sociais – que todo trabalho de arte também pressupõe, sem as quais, na verdade, a abertura da obra para o outro – da literatura para o leitor – não constituiria uma ampliação significativa do campo da experiência.

Assumo minha condição ativa de leitor exigida na dialética socrática aberta e inacabada de Silviano Santiago, e insisto em (me) hospedar também o leitor na relação de homologias – isto é, de deslocamentos – entre “grafia-de-vida” do autor e “composição do texto”. Uma espécie de dobra na fisiologia da composição que substitui a estética da “recepção” por uma “estética da hospedagem”. Elemento intrinsecamente desestabilizador, é ela que garante a “abertura” mais contundente da economia interna da obra de Silviano Santiago, pois envolve a desorganização e a reorganização dos elementos constituintes da prática narrativa e das relações entre eles. A escrita de si é política. Implica a direção do conjunto sob novas formas e de acordo com novos interesses que devem ser repactuados com o leitor.

Onde se hospeda Menino sem passado (1936-1948)? Em muitos textos. Em muitas imagens. Em muitas experiências. Em toda a memória do mundo, como na Biblioteca borgeana da qual Silviano é íntimo conhecedor. A começar pela poesia de Murilo Mendes que dá título ao livro. Mas por que não no vitral da catedral de Chartes, cuja reprodução abre o volume? Em Le livre blanc de Jean Cocteau? Certo. No diálogo deste com Marcel Proust? Ou deste, por sua vez, com Flaubert? Sem dúvida, também. No cinema, nos gibis e noutros produtos da então nascente e já potente indústria cultural a ponto de alcançar e afetar o menino em seu cotidiano nos confins de Minas Gerais? Sim, claro. No memorialismo mineiro, de Pedro Nava especialmente Baú de ossos (1972) e Balão cativo (1973); de Boitempo (1968) e Menino Antigo (1973), de Carlos Drummond de Andrade; e novamente de Murilo Mendes, agora de A idade do serrote (1968)? Sem dúvida. E na obra do próprio Silviano como um todo? Em O falso mentiroso. Memórias, de 2004; Uma história de família, de 1992?   

O que podemos esperar afinal de um artista-pensador também da memória e das memórias, dos modos de subjetivação e das práticas de si que, paradoxalmente “pós-moderno”, vem se dedicando, poder-se-ia dizer, de modo sistemático e vocacional (aqui o aparente paradoxo) a cruzar, experimentar, problematizar e também a diluir fronteiras da literatura, recusando a ideia de gêneros, ampliando a prática e o alcance estético e político da autoficção etc. e que retoma a escritura de suas memórias? Que dá a essas memórias um sentido de “projeto”: estamos diante apenas de um primeiro volume? É isso, ao menos, que parece sugerir a delimitação temporal da narrativa indicada no título – “(1936-1948)”. Isso apesar de todo o fluxo da memória que, obviamente, não se deixa domesticar inteiramente pela cronologia; e também apesar de o narrador de Menino sem passado ser um homem idoso e muito, muito experiente no presente – como são, no livro, a dupla de anciãos de outros tempos Vovô Amarante e Nhô Campeiro que tanto fascinam o menino Vaninho.

E quantas memórias Menino sem passado “hospeda”? Toda a memória do mundo, borgeanamente falando, novamente. Qual o projeto possível de memórias para um pensador tão crítico dos, segundo ele, algo “ingênuos” narradores contemporâneos, que insistem em “começar sempre pelo começo”?  Que escrita de si é possível após seu romance Machado, de 2016, no qual a contraposição a esse tipo de narrador já ganhara um preciso sentido estético de distância do histórico e do biográfico para “penetrar” junto com o leitor no acontecimento rememorado do qual participa? Como satisfaz ou contraria o horizonte de expectativas do leitor? Como, afinal, formaliza a tópica fundamental do memorialismo (em especial, mas não apenas, no memorialismo modernista mineiro), que permite ler a infância transversalmente na figuração de subjetividades em constante processo de descobrimento e aprendizado – de si, do outro, do tempo, do espaço, do mundo? Como afeta o repertório de formas de subjetivação figuradas no memorialismo brasileiro em geral?

São muitas as perguntas, e tantas outras ficaram de fora. Menino sem passado nos convida a novos pactos de leitura. Com a reescrita do esquecido e do lembrado repete a diferença em tensão, submissão e subversão de práticas associadas à narração de si. Estamos num campo aberto e vertiginoso. Mas tudo isso é de uma alegria sem fim. Um campo de possibilidades à nossa espera. Todas as pistas são importantes. Numa próxima oportunidade eu mesmo gostaria de percorrer essas questões com mais vagar, seguindo a pista de que Menino sem passado hospeda-se de modo muito especial em Crescendo durante a guerra numa província ultramarina, livro de poesias de 1978 do próprio Silviano. Gostaria de estudar a codificação do conflito entre indivíduo e sociedade e a afirmação da liberdade em cada um dos textos e nos usos que neles se fazem dos dispositivos para essas escritas de si em seus diferentes gêneros – o poema, a prosa.

Dentre tantas outras possibilidades, elejo Crescendo durante a guerra por três motivos principais, além do plano meramente temático, por certo. Primeiro por ser o livro de Silviano em que mais (e melhor?) vejo o trabalho sobre a questão do aprimoramento da subjetividade individual nos quadros da discussão da crise do ideal de Bildung, que justamente a Segunda Guerra Mundial terminou por evidenciar tragicamente. Segundo, porque, e justamente por isso, a precariedade e a incompletude que restam ganham nos poemas do livro um sentido dialógico muito próprio com o leitor. Ambos os aspectos passarão por incessante reescritura na obra de Silviano desde Crescendo durante a guerra, e até antes dele. É essa fratura no ideal de Bildung que ressignifica o próprio horizonte do cuidado de si que como que se “desencanta” (no sentido weberiano), tornando-se cada vez mais e apenas uma “prática”. Last but not least, numa das peças textuais finais do livro, intitulada “Como ler os poemas. Reflexão sobre o que foi lido”, já se enuncia a dinâmica de diferenciação autoreferencial na obra de Silviano Santiago e abertura para incluir e fomentar improváveis comunicações com o leitor que estou perseguindo em Menino sem passado. Diz:

“O texto primeiro existe

só, como ponto.

Se transforma depois em linha

com sua própria força

de deslocação, sua velocidade própria.

Depois

o leitor institui

outra linha, lendo.

O leitor constitui

um feixe de linhas cruzadas

organizando os textos.

No percurso do texto

e no trânsito da leitura

as linhas se chocam,

se repudiam, se perdem,

correm paralelas

e podem se amar.

Depois, saber fazer

Retorná-las a ponto.”

Estamos convidados a (con-)viver a arte dos esquecimentos e lembranças de Silviano Santiago por muito tempo ainda. Ela abre possibilidades de um envolvimento inesgotável. Valho-me da metáfora do “penetrável” – espaço-instalação em forma de labirinto no qual espectador/leitor deve entrar para passar por experiências sensoriais para além da experiência visual. É exatamente isso, parece-me, que a narrativa de Menino sem passado exige do e permite ao leitor: disposições não apenas intelectuais, mas sensoriais. Memórias sensoriais – olhos, ouvidos, olfato, tato – percorrendo por dentro as histórias que o narrador quer nos dar a conhecer e a esquecer. Menino sem passado é uma espécie de “penetrável”, é isso, para lembrar Hélio Oiticica, amigo de Silviano a quem, a propósito, é dedicado Crescendo durante a guerra numa província ultramarina, o livro hospedeiro de Menino sem passado. Livro-penetrável, num frequente e fascinante jogo de estranhamentos e reconhecimentos, o narrador pode então nos surpreender em pleno ato de leitura recuperando involuntariamente nossas próprias lembranças, pasmos diante dos esquecimentos que já não sabíamos nossos. Remeto à proposição sobre “texto-instalação” de Wander Mello Miranda, interlocutor privilegiado de Silviano Santiago. Aliás, recomendo a leitura de todos os ensaios de Os olhos de Diadorim, publicado em 2019 pela CEPE Editora, pois também são relatos reflexivos de uma amizade entre o crítico e o artista-pensador, cujo esboço de um retrato atual traço.

No livro-penetrável, temporalidades se baralham. O que desconcerta a história é a memória que sobrevive a e ultrapassa o seu/nosso tempo, sempre possibilitando combinações variadas. Lendo Menino sem passado (a versão impressa) na Tebas da peste e da tirania em que se converteu o Brasil de hoje (quero repetir), pude hospedar minha infância, inteiramente transcorrida durante a Ditadura Civil-Militar (1964-1985), na do narrador, vivida por sua vez sob a ditadura anterior, a do Estado Novo (1937-1945). Na tragédia autoritária e autocrática de um país, a memória como solidariedade, reconhecimento e integridade do “eu”. Uma aliança no tempo. As cenas da ponte em Formiga (MG), com a incrível coreografia dos meninos, mostrando que o tipo de curiosidade de cada um deles encontra unidade com seus corpos em seus movimentos ao mesmo tempo próprios e relacionais, e as do campo de futebol trazem a força da passagem, no fundo, tão dramaticamente difícil para o Menino Sonâmbulo: da descoberta da cidade que existe para além da família, da parentela, da vizinhança. Descoberta do outro e do eu que encontra duplo paradoxal – e estruturante do livro – no fascínio exercido pelos “viajados” e especialmente pelo primo Donaldo, feito combatente na Segunda Guerra Mundial. Um self entre-lugar, cosmopolita e hóspede está se forjando.

Hospedado em Crescendo durante a guerra numa província ultramarina, Menino sem passado é um dispositivo penetrável de lembranças e, sobretudo, de esquecimentos. Diz o seu narrador: “Desde o desaparecimento prematuro da mãe, camuflamos em cores e com mentiras o nosso desastre. Generalizo por mim. Sempre faltou aos meus sensores informação concreta sobre a morte de dona Noêmia Farnese”. Menino sem passado como vestígio da mãe perdida. Toda memória performatiza de alguma forma o regressus ad uterum, para me valer das palavras de um crítico sobre Murilo Mendes – não por acaso, aqui também uma hermenêutica do sujeito pela ausência da mãe (Furtado, 2003). Não sei, porém, se o trabalho árduo da memória permite mesmo curar-se do tempo. Com o Michel Foucault de A hermenêutica do sujeito desconfio que na reminiscência, que é uma prática de si, não se encontra uma verdade escondida. Não estamos mais, portanto, no horizonte utópico em que se permitiria equacionar reminiscência do passado e busca da felicidade. Niestzscheanamente, o narrador deve assumir os riscos envolvidos no confronto direto do seu infortúnio, deve se convencer de que os desafios e a alteridade aí implicados é que permitirão o seu autoaperfeiçoamento subjetivo.

O sujeito da memória está sempre no fluxo lançado ao jogo entre lembranças e esquecimentos como forças contrapostas. O que me lembra da visão do social de Georg Simmel (1988) e mais ainda do grande tema da sua sociologia. Na modernidade, o descompasso entre tudo aquilo que os indivíduos produzem fora de sua subjetividade, a “cultura objetiva”, e o cultivo pessoal, interior, da individualidade, acaba por alcançar um nível extremamente assimétrico, gerando uma separação radical entre o indivíduo e seu potencial criativo, a “cultura subjetiva”, por conta da própria intensificação da divisão social do trabalho. E essa cisão adquire sentido trágico justamente porque, em Simmel, a ação humana está sempre relacionada à ideia de criatividade originada da subjetividade.

O tema amplo do cultivo individual de uma autoconsciência social e existencial é notavelmente enriquecido em Menino sem passado pelos muitos recursos estéticos e amplos repertórios intelectuais manejados finamente tanto pelo autor quanto pelo narrador. Menino sem passado é desses livros raros entre memórias, autobiografias ou mesmo autoficções, pois nele “grafia-de-vida” e “composição literária” – para voltar às ideias de Fisiologia da composição – e também a “estética da hospedagem” não reificam categorias, relações, processos. Ao contrário, a narrativa explora com maestria e nos convida com clareza às possibilidades de ressubjetivação, apontando também os limites e os riscos impostos a cada um de nós pelo domínio da “cultura objetiva” no mundo em que o ideal de Bildung já desapareceu. A memória é uma apropriação, processo em permanente transformação. Por isso, paradoxalmente, talvez, não seja pequena a sensação de liberdade que a percepção do esquecimento experimentada na leitura de Menino sem passado acaba por nos trazer. Menino sem passado é um livro de grande e rara beleza melancólica, sem dúvida. Mas é uma afirmação potente da liberdade. E por isso também uma elegante esperança.

Referências

Agamben, Giorgio. O fogo e o relato. Ensaios sobre criação, escrita, artes e livros. São Paulo: Boitemo, 2018.

Botelho, André. “Cosmopolitismos e interpretações do Brasil. Puxando conversa com Silviano Santiago e Mário de Andrade”. Em Melo Miranda, Wander (Org). Suplemento Literário Especial Silviano Santiago. Belo Horizonte, maio /2017.

Foucault, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2019.

Furtado, Fernando. Murilo na cidade: os horizontes portáteis do mito. Blumenau: Edifurb, 2003.

Klinger, Diana. “Uma genealogia da generosidade”. Blog da BVPS. 2021.

Miranda, Wander Mello. Os olhos de Diadorim e outros ensaios. Recife: CEPE Editora, 2019.

Santiago, Silviano. Crescendo durante a guerra numa província ultramarina. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978.

______. “Toda a memória do mundo (Digressão sobre o narrador ficcional)”. Ao Largo, 2018, volume 7, pp. 61-78.

______. Fisiologia da Composição. Recife: CEPE Editora, 2020.

______. “Anotações sobre ‘Fisiologia da Composição’”. Suplemento Pernambuco. Sábado, 12 de Dezembro de 2020.

______. Menino sem passado (1936-1948). São Paulo: Companhia das Letras, 2021. Simmel, Georg. La tragédie de la culture. Paris: Petite Bibliotèque Rivages, 1988.

Crédito da imagem que abre o post: Maurício Hoelz. Hospedagem Pains Paris. Colagem, 2021


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