Lembranças de Antonio Arnoni Prado

No post de hoje, o Blog da BVPS publica dois textos em memória de Antonio Arnoni Prado, que nos deixou no último dia 11 de setembro. O primeiro, de Elen de Medeiros (UFMG) começa com citação de uma carta do jovem Arnoni a seu professor Fábio Lucas, refletindo sobre o legado do crítico desde sua obra, em especial Trincheira, palco e letras (2004), até suas relações de orientação e preocupações cotidianas relacionadas ao trabalho universitário. O segundo, de Ricardo Gaiotto de Moraes (UFSC), relembra sessões de orientação, conversas e aulas do professor a partir de seu hábito – transmitido aos alunos – de fazer anotações à margem dos textos na composição da perspectiva crítica.

No coração dessa trincheira

por Elen de Medeiros [1]

“É duro, rapaz, pra explicar. Pra começar, somente agora é que começo a pôr a minha vida ‘em ordem’, correndo daqui e dali em busca de trabalho (a coisa não está brinquedo… uma concorrência espantosa!)”, dizia um Arnoni de apenas 33 anos para o mestre Fábio Lucas, cujo acervo foi recentemente doado para o Centro de Estudos Literários e Culturais (CELC/AEM) da Faculdade de Letras da UFMG. A carta data de 1976, e coloca em evidência um jovem Arnoni, que anos depois se tornaria um dos principais críticos literários do país e que ficou registrado na memória de quem o conheceu ao longo de sua trajetória acadêmica. Em 1977, em outra carta ao ex-professor, de Clacton-on-sea, Inglaterra, Arnoni fala de suas pesquisas e, mais uma vez, de suas buscas por meios de sobrevivência financeira: “Gostaria de me ver livre da burocracia toda, e começar a trabalhar logo, por várias razões, econômicas inclusive”. É em contraponto a essa imagem sólida, de crítico consagrado, que as cartas ao ex-professor e amigo (comandante, como ele chama Fábio Lucas em várias de suas missivas, ou compadre) chamam atenção, pois falam de suas dificuldades financeiras e de sua luta para se inserir na universidade. Em 1979, a convite de Antonio Candido, ele seria chamado para ser professor no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, onde se aposentou em 2012. Antonio Arnoni Prado foi meu orientador de mestrado, na Unicamp, entre 2003 e 2005, mas antes disso ele foi alguém que me deu um enorme apoio, entre 2001 e 2002. E lá se vão 20 anos, mas a memória não é ingrata.

O Arnoni com o qual eu convivi por cerca de 4 anos, no início da minha vida acadêmica, no princípio dos anos 2000, nem de longe lembra este das cartas com as quais eu acabei de lidar. Por isso, pela lembrança que tenho do meu ex-orientador, que fiquei envolvida com essa correspondência. Reencontrei-o anos depois, sob outro prisma. Eu, agora docente da UFMG, entendi um tanto do Arnoni e daqueles tempos de orientação. Cogitei enviar-lhe a correspondência, mas não o fiz – e dias depois veio a notícia de seu falecimento, no dia 11 de setembro de 2022.

Antes mesmo de me tornar sua orientanda de mestrado e aluna de pós-graduação, eu viajava nove horas de ônibus para Campinas para conversar brevemente com ele e para poder usar a biblioteca do IEL. Arnoni não precisava me receber ao longo desse período, mas o fez, o que foi determinante para a minha trajetória. Foi assim, nesse ritmo de bate-volta nos idos de 2001, que assisti a uma aula impressionante na graduação do IEL sobre Mário de Andrade. Depois, já discente da Unicamp, fiz dois cursos na pós: o primeiro, sobre crítica literária do final do XIX e início do XX; o segundo, sobre o romance de 1930. Nessa época (e ainda hoje), espantei-me com o grau de erudição e complexidade de seu pensamento: para as aulas da pós, ele chegava com uma pastinha de plástico, que continha uma folha de papel, a lista de presença dos alunos e uma caneta. E seguia sua aula, irremediavelmente articulada em torno de uma questão central, elaborada por meio de perguntas que sempre direcionava aos alunos: uma aula dialógica, pautada em perguntas e respostas. Com as respostas e reflexões dos alunos, mordendo levemente a haste dos óculos, dizia: “Interessante”. À medida que os desdobramentos reflexivos iam avançando, vinham suas explanações, ponderações e, não raro, discordâncias dos outros críticos. Eram aulas intensas, às quais ninguém ousava aparecer sem ter lido toda a indicação de leitura. Guardo comigo esse formato de aula como um modelo ideal – mas apenas alguém muito sofisticado para alcançá-lo.

Essa sofisticação não se limitava às aulas. Depois que soube da partida do Arnoni, retomei seu livro Trincheira, palco e letras, publicado pela Cosac & Naify em 2004. Há nele a seção dedicada a um tema bastante caro ao pesquisador e professor: a cena libertária, em que estabelece um trânsito fluido e elegante entre literatura anarquista, movimento libertário e teatro. Certa vez, em uma reunião de orientação em seu gabinete, ele apontou para uma pilha de pastas na estante que continham muitos documentos obtidos em sua pesquisa na Fundazione Feltrinelli, um dos mais importantes centros italianos de documentação, um dos primeiros na Europa voltados ao estudo das ideias sociais e do movimento operário socialista. Eram documentos sobre e do teatro anarquista – me falou isso porque sempre me enveredei pelos estudos do teatro dentro das Letras.

Ao reler alguns de seus ensaios deste livro – calhou que eu iria justamente falar do teatro do início do século XX na aula da semana e queria, como uma homenagem, tocar também na presença do teatro anarquista em São Paulo –, deparei-me com um texto que ainda não tinha lido: uma homenagem a João Luiz Lafetá, amigo de Arnoni e crítico literário que faleceu em 1996. Que ironia! “Ao lembrá-lo gostaria de retomar em breves palavras três lembranças de sua presença, na verdade três lições que transcendem a pura reminiscência pessoal, para recompor no repertório da vida essa espécie de instância recôndita onde depositamos as nossas mais caras admirações”, são palavras de um amigo cujas rememorações destacam o perfil singular de Lafetá. Para isso, evoca, logo no início, o poema de Bandeira sobre a morte de Mário de Andrade: “Por isso agora não sinto sua falta./ Sei bem que ela virá (Pela força persuasiva do tempo)”.

Segundo Arnoni faz questão de ressaltar nesse texto, além de um “pensamento crítico que já vem pronto” (palavras de Candido sobre Lafetá), fazia parte do pensamento do amigo sempre a busca por uma autenticidade e andamento próprio, que dispensava “modernismos terminológicos”. Essas breves notas sobre Lafetá trouxeram à baila as sempre contundentes sessões de orientação com o Arnoni. Ele não se cansava de dizer que o trabalho deveria ter a sua singularidade, era a palavra usada por ele. Arnoni foi rigoroso no que tinha que ser: como professor e orientador. Em seu curso sobre o romance de 1930, ao citar uma crítica do Lafetá em que eu estava me baseando, Arnoni me devolveu: Lafetá te seduziu. Eu ri, entendi que ele queria que nosso pensamento fosse sempre tensionado, intenso e que tivesse seu andamento próprio. Decerto eram lições de Lafetá que Arnoni evocava.

As lições do Arnoni permanecem muito vivas, assim como seu pensamento sólido, sempre preocupado em tecer um estreito liame entre a literatura e a sociedade. As atitudes dele também ficam na memória. E hoje, remexendo nesse baú de rememorações, depois de ler algumas cartas dele endereçadas a Fábio Lucas e de reler alguns de seus ensaios, compreendo de forma mais clara alguns de seus gestos – no início dos anos 2000, a juventude me impedia de olhar com mais profundidade tanto os apoios quanto as exigências. Em 2003, quando ingressei no mestrado em Teoria e História Literária, sem emprego, quase sem dinheiro nenhum, eu estava tentando uma bolsa da Fapesp. Como o resultado demorava a sair, e minhas economias evaporavam, ele não pestanejou e ligou para a agência pedindo atenção ao meu processo. Em um mês saiu o resultado da bolsa, que me permitiu dar prosseguimento àquilo que me levou a escrever timidamente a ele, dois anos antes, solicitando uma conversa. Compreendi, somente agora, que para ele as questões financeiras eram particularmente sensíveis.

Para finalizar, volto ao livro Trincheira, palco e letras. Na dedicatória, de 2004, ele me escreveu: “Para Elen, que tanto se interessa pelo teatro e as letras, do coração dessa trincheira, oferece o Arnoni”. Talvez ele notasse ali, naquela ainda muito jovem entusiasta de dramaturgia, que eu estaria sempre inserida exatamente no coração dessa trincheira, de onde nunca saí, mas por onde aprendi a caminhar com a curta, mas decisiva, ajuda do Arnoni. Uma trincheira em que ele mesmo, muitas vezes, esteve à frente.

Em 2005, meses antes da minha defesa de mestrado, ele descobriu um tumor no cérebro e, por isso, teria de se afastar para cirurgia e tratamento. Por conta disso, esteve ausente na banca, presidida pela Vilma Arêas, que já assumia naquele momento a orientação do meu doutorado. Esse mesmo tumor que, 17 anos depois, tirou Arnoni de cena. Que fiquem suas bravas e sempre vivas reminiscências.


 Anotações a lápis às margens da lição do professor Antonio Arnoni Prado

por Ricardo Gaiotto de Moraes [2]

Conheci Antonio Arnoni Prado quando comecei a frequentar uma das disciplinas que ele ensinava sobre a Poesia de Mário de Andrade, no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), na Unicamp. Era meu segundo ano no curso de Letras, em 2000.

As aulas do Arnoni, como o chamávamos, sempre muito bem preparadas e organizadas, começavam com uma palestra: tenho a alegria de ter ainda o caderno desta disciplina. Relendo minhas anotações, lembrei que Arnoni não se cansava de mencionar “A meditação sobre o Tietê”, dizia que este poema só muito tempo depois poderia ser compreendido, e me espantei ao ver muitas referências anotadas, testemunhas da teia de relações que o intelectual estabelecia entre textos e autores. Na última meia hora de aula, Arnoni então se dirigia a nós, queria saber quais eram nossas contribuições para a discussão. O momento era tenso, cada um preparava algumas questão em casa – e sempre o receio de algum colega fazer antes justamente a observação pensada. Mas o professor escutava atento à pergunta, não raramente tirava os óculos como que para nos enxergar melhor, respondia às vezes muito bem-humorado, às vezes com uma pergunta, de vez em quando irônico, mas o fato é que escutava, dialogava e sempre lembrava do que tínhamos falado na aula anterior.

Neste mesmo ano, o Centro Acadêmico de Letras e Linguística, o CALL, organizou uma Semana de Letras. Desejávamos fazer uma homenagem a Antonio Candido no final do evento. Arnoni, que fora orientando de Candido, apoiou a iniciativa, sugerindo que a homenagem fosse uma mesa em que apresentássemos comentários sobre a obra de Candido – “A maior homenagem que se pode fazer a um intelectual é comentar criticamente a sua a obra”, dizia Arnoni.

Lamento não seguir o conselho do meu orientador, estou contando caso e ainda não falei nada do que estudou e escreveu Arnoni – comentar criticamente uma obra leva tempo. Diante do orientador que se foi, me dou conta que a obra dele é muito mais vasta do que eu poderia comentar com propriedade num texto curto. Mas lembro que passei a madrugada preparando e treinando a minha fala sobre Literatura e Sociedade, do Antonio Candido. O orientador do orientador foi muito simpático conosco e também conversava.

Depois, segui outras disciplinas do Arnoni, uma delas fundamental em minha formação e imagino que também na de muitos colegas que pelo IEL passaram, era um curso sobre a Crítica Literária Brasileira. Líamos textos sobre a natureza da própria crítica literária e sobre Machado de Assis, de autores como Sílvio Romero, Mário de Andrade, Sérgio Buarque de Holanda, Lúcia Miguel Pereira, Roberto Schwarz, Silviano Santiago, a lista era vasta. Arnoni construía metacrítica e passava em revisão método e forma. Quando penso hoje no que me levou a escolher o tema de minha pesquisa de mestrado e doutorado, acho que muito do incentivo veio dessas conversas com meu orientador. Ele ensinava e conversava a poesia de Mário de Andrade e nunca se cansou de continuar a prosa, e, assim, além do autor de Meditações sobre o Tietê, também passei a pesquisar a crítica literária de Sérgio Buarque de Holanda.

O Espírito e a Letra, em dois volumes, publicado em 1996, livro que reúne quase todo o conjunto de crítica literária de Sérgio Buarque de Holanda – quase 200 artigos, de “Originalidade Literária”, publicado em 1920, a “Onzenas e Lágrimas”, em 1959, foi uma das grandes contribuições de Arnoni para a crítica, pois dos dois volumes emergiu a figura, outrora pouco conhecida, do Sérgio Buarque crítico literário.

O estabelecimento cuidadoso dos textos, descobertos em arquivos no Brasil e no exterior, num momento em que não havia ainda grandes acervos brasileiros digitalizados (como hoje é o caso da Hemeroteca Digital), e a profusão de notas de rodapé, que muitas vezes elucidam referências não explicitadas pelo autor de Raízes do Brasil, são traços de uma pesquisa extensa, cujo desenvolvimento se desdobraria posteriormente em vários estudos. Dentre os ensaios sobre Sérgio Buarque, escritos por Arnoni, destacam-se os artigos publicados em Trincheira, palco e letras (2004), Cenário com retratos (2015) e Dois letrados e o Brasil nação (2015), vencedor do Prêmio Rio de Literatura, em que estudou em paralelo Oliveira Lima e Sérgio Buarque de Holanda.

A alta qualidade ensaística e literária desses livros bem como o rigor da pesquisa do intelectual e erudito não nos espantava, a nós que víamos o Arnoni diariamente trabalhando na biblioteca do IEL, na seção onde ficavam as obras de referência e onde o ar-condicionado sempre estava numa temperatura baixa, refresco para as quentes tardes do verão campineiro.

Reparávamos que ele carregava, além dos livros, cadernos com capa dura e um lápis, daqueles que têm uma borracha na ponta superior. Foi mostrando um desses cadernos com anotações feitas no acervo de Oliveira Lima, na Universidade Católica da América, em Washington, que Arnoni me sugeriu um método para estudar a crítica de Mário de Andrade: “crie categorias críticas, transcreva trechos e faça fichamento de todos os textos que você ler” – “depois de pesquisar literatura, nunca mais leremos um texto sem anotar algo às margens”, eram mais ou menos essas palavras que dizia. Além de ensinar sobre método, nas reuniões de orientação, quando eu tinha dúvidas e perguntava ao Arnoni – ali se via o professor intelectual e uma resposta virava perguntas, um caso contado, às vezes uma aula sobre questões da maior complexidade nas quais eu nem havia pensado, uma conversa franca sobre o cotidiano, um grande aprendizado sempre.

Para aprontar este texto, folheei os livros do Arnoni que tenho em casa e reli alguns ensaios. Encontrei muitas anotações minhas. Às margens de “Uma visita à casa de Balzac”, do Trincheira, palco e letras, eu sublinhara o trecho onde se lê que o foco da crítica de Sérgio Buarque de Holanda seria “uma espécie de olho móvel a flutuar sobre o que chamou de paisagem transcendente da obra, aquele plano virtual que não pertence efetivamente ao mundo histórico nem ao mundo da ficção, a dimensão em que nasce e se expande o núcleo da composição, a inteligência central e a moldura de verdade ficcional legitimada como símbolo à parte, mas interferindo vivamente nas instâncias da realidade do mundo em que se insere” (p. 275). Para Sérgio crítico, não bastaria explicar um texto literário como objeto estético, como produto de uma contingência histórica, ou como artefato de uma genialidade singular, mas captar com este olho móvel o plano virtual em que essas dimensões estão em interseção e se afetam irremediavelmente.

Acompanhando minhas anotações, vejo uma cruz de Santo André na margem esquerda do trecho em que o ensaísta elabora a hipótese de que a consequência da projeção encontrada por esse olho móvel, na crítica de Sérgio Buarque, seria encontrar no mesmo plano um ensaio erudito sobre Proust e as impressões de uma crônica de circunstâncias. A visita do Arnoni à crônica de Sérgio Buarque de Holanda sobre a visita à casa de Balzac, por um momento, me lembrou das conversas com o Arnoni, das perguntas que ele, anotador à margem – para retomar um título que ele deu a um ensaio sobre Antonio Candido, fazia aos textos, fazia aos estudantes. O compromisso do professor e crítico estava através das margens.

Quando anunciaram a notícia da morte do Arnoni, e imaginei escrever algumas linhas, me lembrei que ele gostava daquele poema “A Mário de Andrade Ausente”, de Manuel Bandeira. Vieram essas linhas pra falar da tristeza que sinto, das saudades já vindas e homenagear esse grande orientador, amigo e intelectual que está presente, mas que não podemos mais abraçar.

Imagino mostrar essas linhas para Arnoni. Ele começaria lendo com curiosidade, óculos abaixados, mas nunca gostou muito de homenagens. Seus olhos procurariam outro ponto longe, talvez ele começasse a pensar em uma questão sobre de crítica literária, um caso sobre escritores, ou de algo que aconteceu ali no IEL. Sorriria, olharia de novo o texto e continuaria a conversa falando de outra coisa.


[1] Professora de Literatura e Teatro na Faculdade de Letras da UFMG. Mestre e Doutora em Teoria e História Literária pela Unicamp. Atualmente é diretora do Centro de Estudos Literários e Culturais – Acervo de Escritores Mineiros da UFMG.

[2] Professor Adjunto de Literatura Brasileira no Departamento de Língua e Literatura Vernáculas e no Programa de Pós-Graduação em Literatura, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Durante o Mestrado (2006) e Doutorado (2014), no Departamento de Teoria e História Literária, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), foi orientado pelo professor Antonio Arnoni Prado.


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