
No post de hoje da coluna MinasMundo, o Blog da BVPS publica uma resenha de Bruno Viveiros Martins sobre o último show de Milton Nascimento no Mineirão, em Belo Horizonte. O texto refaz a emocionante trajetória composta pelo artista nas duas horas e meia de apresentação, ao mesmo tempo em que interpreta os sentidos da viagem pela qual Milton guia seu público – e na qual é igualmente afetado por ele.
O debate sobre esta e outras experiências de um cosmopolitismo mineiro vão integrar a programação do primeiro evento presencial do MinasMundo. Será o seminário MinasMundo: Cosmopolíticas, que acontece nos dias 15 e 16 de dezembro na UFMG, em formato aberto ao público.
Acompanhe as redes do MinasMundo e aguarde as próximas postagens da coluna para ter acesso à programação completa! Nos vemos lá!
“A última sessão de música” de Milton Nascimento.
por Bruno Viveiros Martins
No dia 13 de novembro de 2022, Milton Nascimento pisou no palco pela última vez. O Mineirão, em Belo Horizonte, foi o lugar escolhido para a despedida. Aproximadamente sessenta mil espectadores que estiveram presentes no estádio, e um número incontável de pessoas pela TV e Internet, assistiram “A última sessão de música”, turnê internacional que viajou por cidades do Brasil, Estados Unidos, Inglaterra, Portugal, Itália. O artista encerrou sua viagem da mesma maneira que começou: com o pé na estrada.
A última parada do percurso musical de Milton Nascimento não poderia ser em outra cidade. Foi na capital mineira que o artista descobriu o rumo certo que deveria seguir para alçar voos ainda maiores desde que saiu de Três Pontas para ganhar o mundo. A partir do dia em que a data foi anunciada, a cidade se preparou para o show mais esperado de seus cento e vinte poucos anos de história. Os ingressos colocados à venda foram esgotados em questão de minutos. Belo Horizonte aguardou ansiosa para reencontrar Milton Nascimento. Não mais aquele jovem de vinte e cinco anos – que em uma das noites do distante ano de 1967 cantou, pela primeira vez, a clássica “Travessia”, composição que iria lhe abrir os caminhos do sucesso – mas um senhor de oitenta anos de idade e sessenta de carreira.
Como todo bom viajante, ele sabe muito bem que a viagem somente termina despois que as experiências vividas durante o seu trajeto, independente dos espaços e tempos percorridos, são narradas para alguém interessado a ouvir, conhecer e compartilhar seus riscos, medos, receios, sonhos, surpresas e alegrias. Dessa forma, as experiências adquiridas em meio aos desafios e aventuras enfrentados não ficarão perdidas pelo caminho. O artista sempre esteve de olhos bem abertos. Nada parece ter escapado de suas retinas. Aliás, o viajante deve estar sempre atento para não esquecer, sobretudo, o objetivo fundamental de sua jornada: o “retorno”. Ou seja, reencontrar o trajeto que o traz de volta ao lugar de origem. Nesse sentido, o dia do retorno nada mais é do que o encontro com nós mesmos, ocasião em que temos a oportunidade de nos reconciliarmos com nosso próprio tempo de vida, nossa existência.
As canções escolhidas para o repertório de “A última sessão de música” (o nome da turnê é o título de um antigo tema instrumental gravado no disco Milagre dos Peixes, de 1973) cumprem esse papel de guiar nossas memórias em busca de um eu partido, esquecido ou emudecido. Além de emocionar os fãs, espalhados em todos os cantos do mundo, Milton Nascimento retribui o carinho e atenção como se cada ouvinte fosse seu companheiro de viagem disposto a escutar, mais do que nunca, o que ele tem a cantar. À cada nota musical, acorde, palavra, verso, refrão, o artista e o público se reencontram, de modo próprio e particular, com seu passado.
O primeiro som a ecoar no Mineirão ainda às escuras, dando início ao show, foi o barulho do trem de ferro. Nada mais simbólico para um cantor acostumado a carregar no peito as antigas locomotivas que passavam por Três Pontas na época de infância. Neste instante, os apitos e o ranger dos trilhos transformam o estádio à beira da Lagoa da Pampulha na última estação em que Milton Nascimento desembarcaria. Essa é uma referência direta ao universo simbólico de Minas Gerais alimentado por suas canções “estradeiras” cujo narrador viajante se põe a falar de idas e vindas, chegadas e partidas, encontros e despedidas. Quando finalmente abrem-se as cortinas, ele já está sentado no centro do palco como uma esfinge a observar o público e propor enigmas a serem desvendados. Ao seu redor, parte da banda toca a canção “Tambores de Minas” no ritmo do congado mineiro com seus tambores e fitas ancestrais. Milton carrega nas mãos a pequena sanfona da infância, presente de sua mãe Lilia, vestindo o manto criado por Ronaldo Fraga (o figurino reinventa vários temas musicais do cantor e merece uma análise a parte, bem como o cenário d’Os Gêmeos).
Um tambor não é somente um instrumento musical. Ele possui uma gramática própria que reúne por meio de seu ritmo a comunidade diaspórica e seus laços estilhaçados pelos séculos de escravidão. A batida dos tambores, caixas e atabaques revela hábitos cotidianos de uma determinada localidade, mas também congrega e louva os lugares de origem de seus antepassados: as diversas Áfricas. Filho dos tumbeiros, os tambores criam uma imaginação percussiva que presentifica ancestralidades e sabedorias compartilhadas em diferentes regiões do ocidente. Milton Nascimento conhece como poucos o idioma dos tambores mineiros e o intercruzamento de tempos abertos por um som capaz de expressar o sentido que as palavras não alcançam, recordando vivências e experiências espalhadas pela diáspora africana durante a travessia do Atlântico negro, também conhecido com a Calunga Grande.
Com sua sanfona em punho, ele faz a introdução de “Ponta de Areia” para em seguida soltar a voz pela primeira vez, acompanhado pelos músicos todos em ação. Dois grandes telões, instalados nas extremidades do palco, projetam a fisionomia de cantor com detalhes dos traços e reações de seu semblante em expressões relevadoras dos sentimentos em efusão que fluem ao longo do show. Este é dedicado à Gal Costa, amiga e intérprete de várias composições de sua autoria como “Paula e Bebeto”, “Solar” e “Um gosto de sol”, entre outras.
O espetáculo prossegue com Milton Nascimento esbanjando um rosário de canções monumentais a representar momentos marcantes de sua carreira. Após interpretar “Canção do Sal” e “Morro Velho”, Milton recorda Elis Regina, cidadã honorária do Clube da Esquina e com quem dialogava de igual para igual, primeira cantora de renome nacional a gravá-lo em disco. Segundo ele próprio, “o grande amor de sua vida”. Neste mesmo instante, o cantor retira o manto que lhe cobria até os pés, passando a usar uma de suas marcas registradas: o boné de maquinista que o acompanhou durante grande parte de suas andanças pelo mundo. Todo o set list apresentado durante o show é aplaudido por uma plateia em êxtase que explode em uma catarse de emoções ao som de “Outubro”, “Amor de índio”, “Vera Cruz”, “Pai Grande”, “Peixinhos do mar”, “Cuitelinho”, “Caçador de mim”, entre outras. O público canta, dança, pula, grita, soluça, chora, agradece e, sobretudo, declara seu amor mais que correspondido ao artista em uma comunhão de energias em movimento de mão dupla.
O Mineirão vem abaixo quando o solo de piano introduz a canção “Que bom amigo” fazendo um convite especial. Durante sua execução, sobem simultaneamente ao palco: Wagner Tiso, Toninho Horta, Beto Guedes e Lô Borges. A canção foi gravada em 1978, no disco Clube da Esquina Nº2, em homenagem a este último que, na época, retomava, após um longo período de ausência, a carreira musical. Não é preciso dizer que o espetáculo acabara de entrar na sintonia da amizade. Os parceiros de longa data são recepcionados pelos fãs aos gritos de “Clube da Esquina”. Milton Nascimento aproveita a presença ilustre para lembrar que, em 2022, o LP lançado por ele e Lô Borges com a participação de seus parceiros, há cinquenta anos, foi condecorado com o título de melhor disco da história da música brasileira em uma pesquisa promovida por especialistas e estudiosos da produção fonográfica no país. Para provar e comprovar a façanha, Wagner Tiso senta-se ao piano, Beto Guedes e Toninho Horta assumem as guitarras, Lô Borges divide o microfone em dueto com Milton para cantar as antológicas “Para Lennon e McCartney” e “Um girassol da cor de seu cabelo”.
Do melhor disco de todos os tempos da música brasileira, foram apresentadas as faixas “Cais”, “Tudo que você podia ser”, “San Vicente”, “Nada será como antes”, “Lília” e “O trem azul”. Para interpretar essa última foi anunciado o nome de Samuel Rosa. O cantor e compositor do grupo Skank foi recebido pelo público como uma torcida em comemoração ao gol de seu time do coração. Aquele dia ficaria marcado como o grande espetáculo da história do estádio inaugurado em 1965. Com todo respeito aos gênios da bola que desfilaram pelo gramado do “Gigante da Pampulha”, apelido carinhoso utilizado por torcedores de Atlético, Cruzeiro e América. Outro detalhe: a partir de “A última sessão de música”, até mesmo o famigerado 7X1 da Alemanha sobre o Brasil na copa do mundo de 2014 estava oficialmente exorcizado da memória dos belorizontinos. Aliás, o “Tema de Tostão” música instrumental da trilha sonora do filme A fera de ouro, dirigido por Paulo Laender e Ricardo Gomes Leite sobre o craque mineiro da Copa de 1970, não poderia ficar de fora do show no templo maior do futebol em Minas Gerais.
Assim como “Coração de estudante”, composta em 1983 durante o movimento das Diretas Já, que saiu às ruas do país para exigir o retorno da democracia no Brasil. Essa canção, por sua vez, ganhou a letra de Milton Nascimento após fazer parte da trilha sonora do documentário Jango, do cineasta Silvio Tendler, que lembrava o presidente deposto pelo golpe militar de 1964. Cantá-la em 2022 é um ato político carregado de significação histórica. Seus versos cantam a luta de um povo por liberdade, amizade, solidariedade, justiça, bem comum. Valores, princípios e ideias mais que necessários para fazer do Brasil um grande país. Ao final da interpretação, Milton Nascimento faz uma saudação especial à democracia brasileira. De certo modo, o público teve a oportunidade, em um ano de grandes desafios e sérias ameaças contra a democracia, de reavivar (durante quase duas horas e meia de espetáculo) as esperanças diante de um Brasil que precisa ser construído, de fato e de direito, pelas mãos de seus cidadãos e cidadãs.
Entre lembranças e memórias tateadas pelas canções, Mercedes Sosa – a eterna “voz da América” – é presentificada pela execução sublime de “Volver a los 17”, composição de Violeta Parra, gravada no disco Geraes de 1976. Deste mesmo LP, também foram interpretadas “Calix Bento”, tema popular das folias de reis do norte de Minas Gerais adaptado pelo mestre da viola caipira Tavinho Moura, além de “Fazenda”, autoria de Nelson Angelo, convidado para subir ao palco e cantar ao lado do velho amigo dos tempos das “batidas de limão” nos bares do Edifício Malleta, espaço síntese da boemia libertária de Belo Horizonte dos 1960, localizado na esquina da avenida Augusto de Lima com a Rua da Bahia. Em memória dos cantores e músicos da noite, Milton Nascimento cantou “Nos bailes da vida”, lembrando também o início de sua carreira, quando “com a roupa encharcada de chão”, assim como muitos outros amigos, pôs “o pé na profissão”.
Se “todo artista tem de ir aonde o povo está”, um não existe sem o outro. Por essa razão, o cantor homenageou seu público fiel com a interpretação de “Canção da América (Unencounter)”, um dos hinos compostos por Milton Nascimento e Fenando Brant à amizade. Nunca é demais lembrar que essa mistura de convivência, afeto e enriquecimento mútuo que combate a solidão, visando colocar fim à incompletude humana, é um dos grandes segredos da obra de faces múltiplas e rara riqueza musical compartilhada entre Milton Nascimento e seus parceiros. Como esquecer de Fernando Brant – o poeta do coração civil; o menino Dindilin bom de “bola de meia, bola de gude”; o homem da sucursal da revista “O Cruzeiro” diante das ruínas da estrada Bahia-Minas; o letrista de tantas “Marias, Marias” e “Travessia”? Com essa última e “Encontros e Despedidas”, Milton Nascimento declara seu amor ao amigo ausente, onde quer que ele esteja.
Milton Nascimento nunca caminhou sozinho. Nem nunca vai andar só. Ele já não é feito apenas de carne e osso. Sua existência transcende a mera matéria corpórea. Para seus fãs, ele transformou-se em uma entidade musical ainda em vida. Um ser encantado como nas antigas tradições afro-ameríndias. Se, por acaso, você não esteve presente no Mineirão para assistir ao vivo “A última sessão de música” não fique triste. Lembre-se que Milton Nascimento é um cidadão do mundo. A “Ânima” de suas canções ultrapassa as fronteiras que nosso “mundo ousa perceber”. Com certeza, você a sentiu em alguma esquina da cidade, encruzilhada dos gerais, noite do sertão, curva do rio, mesa do bar, bica no quintal, estação de trem, beco perdido no tempo, em uma fila de cinema, nas portas da arquidiocese, na missa dos quilombos, no beijo partido, na praça vazia, no sobe e desce ladeira, brindando à morte em tom de brincadeira, na barca dos amantes, em meio aos gases lacrimogênios, em um saveiro pronto pra partir, à beira mar, no meio do mato, no carro de boi, no circo marimbondo, na janela lateral, no cio da terra, no ventre da noite, no sol da manhã, no pó da estrada.
P.S. Obrigado, Bituca!

Referência Bibliográfica:
MARTINS, Bruno Viveiros. Som Imaginário: a reinvenção da cidade nas canções do Clube da Esquina. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
Bruno Viveiros é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor do Curso de História da Estácio-BH. Autor dos livros “Som Imaginário: a reinvenção da cidade nas canções do Clube da Esquina (2009) e Venda Nova (2021). Pesquisador do Projeto República: núcleo de pesquisa, documentação e memória/UFMG e do Projeto Minas Mundo. Produtor e apresentador do programa Decantando a República da Rádio UFMG Educativa.
Imagens: fotografia de Anderson Carvalho e material de divulgação da turnê “A última sessão de música”