Preliminares | O corpo desvelado: contos eróticos brasileiros (1922-2022)

O blog da BVPS publica hoje o primeiro post da série Preliminares, ação coordenada por Rodrigo Jorge Ribeiro Neves (UFRJ) para a divulgação do livro O corpo desvelado: contos eróticos brasileiros (1922-2022), organizado por Eliane Robert de Moraes (USP) e editado pela Companhia Editora de Pernambuco (CEPE). Durante três dias (6, 8 e 12 de dezembro), publicaremos excertos das narrativas curtas que compõem a obra, oferecendo, assim, uma pequena amostra desse excitante trabalho, como quem deixa tocar por debaixo do tecido, usando somente os dedos para sentir a pele das palavras.

A seleção dos excertos e dos dados biobibliográficos dos autores foi realizada pela organizadora do livro, Eliane Robert de Moraes. As imagens são fragmentos das fotografias de Matheus Melo, que integram a capa e o projeto gráfico da edição, de Hana Luzia e Matheus Melo.

Na postagem de hoje, nos demoramos sobre as partes dos contos “As bocetinhas de Picasso”, de Vilma Arêas, “Contramão”, de Reinaldo Moraes, e “A chuva”, de Verônica Stigger, apresentados, respectivamente, a seguir.

1

“Por exemplo, A tocadora de bandolim está de frente, soprada por um vento improvável, mas imóvel — ficamos pensando em como será isso possível e esquecemos os detalhes do corpo, pois falo das bocetinhas que inspiram o pintor. Aqui, o braço fletido flutua sobre a testa, enquanto seios, ventres e nádegas mergulham nas tintas. Além disso há peitos vesgos vizinhos ao enxame daquelas que piscam para nós como faroletes, respirando ou puramente se mexendo na planta clara das caras, ou nos lados dos peitos.

Um breve resumo de paisagem: o corpo é a cara, a poltrona estampada de Ingres colore a cara, e a boceta ocupa o lugar da boca. Na mulher, que surpresa!, a cara se resolve em três buracos, o corpo, em duas bolas, mais uma corda com uma bocetinha pendurada.”

2

“Seguiu-se uma discussão a respeito da minha intransigente objeção a ser enrabado por qualquer tipo de caralho, mesmo de sex shop, e envergado por uma linda garota ruiva, nua e crua, de uma branquitude que realça ainda mais o pau de silicone preto. Aleguei complicações circulatórias na região anal, que estavam, inclusive, afetando meu trato intestinal, o que vinha provocando o endurecimento das fezes e o consequente bloqueio do reto, a exemplo daquele mega navio-cargueiro que ficou atravessado no canal de Suez impedindo o tráfego de navios mercantes. Eu disse isso pra elas, com esse exemplo esdrúxulo, pra ver se ressaltava o absurdo daquela situação. Porras, guria, disse eu. Aliás, porra, gurias, tornei a dizer. Elas riram dessa besteira. Ótimo. Fui adelante, argumentando que a gente já podia tá na funça do sexo, mas tamo aqui discutindo se vocês vão enfiar ou não essa trolha de borracha que espirra ketchup no meu rabo. Ketchup! Tenham a puta da santa paciência, caralho. De boa.

Audra retrucou, de cinta-caralha em riste:

Você pode botar o que quiser no reservatório da cinta-caralha.

Maionese. Geleia real. Até porra, se quiser.”

3

“Imagina se um dia começasse a chover caralhos. Um monte de caralhos de todos os tamanhos e formas caindo do céu. Uns maiores, outros menores. Uns fininhos, outros bem grossos, parecendo toras. Caralhos grandes. Caralhos volumosos. Caralhos roxinhos. Caralhos pequenos, mas engraçadinhos, daqueles que dá vontade de chupar feito pirulito. Caralhos com berruga. Caralhos lisos. Caralhos brancos. Caralhos rosas. Caralhos pretos. Caralhos retos, apontando para frente. Caralhos mais que eretos, apontando para cima. Caralhos tortos, apontando para o lado. Dois caralhos em um só, tipo os que se veem em filme pornô de aberração. Caralhos circuncidados. Caralhos carnudos. Caralho a quatro. Todos duros e, como se diz, prontos para o combate. Um paraíso. Mas não só caralhos. O aparelho teria que chover inteiro: com as duas bolas. Bolinhas rosadas, bolinhas peludas, duas bolinhas bem definidas, bolinhas durinhas, bolinhas caidaças. Tudo vindo do céu, em queda livre. Não uma chuva oblíqua. Reta. Não uma tempestade. Garoa fina e constante. Uma variedade de caralhos povoando o chão. As calçadas e os paralelepípedos se colorindo de rosa, ocre, roxo e preto. Como um chão depois da nevasca.”


Sobre os autores:

Vilma Arêas nasceu em 1936, em Campos dos Goytacazes (RJ). É escritora, ensaísta e professora titular de literatura brasileira na Unicamp. Estreou na ficção com Partidas (1976). Aos trancos e relâmpagos (1988) e A terceira perna (1992) foram vencedoras do prêmio Jabuti. Em 2005 seu livro de ensaios Clarice Lispector com a ponta dos dedos recebeu o prêmio APCA.

Reinaldo Moraes nasceu em São Paulo (SP), em 1950. Em 1981, lançou seu primeiro romance, Tanto faz, e em 1985, Abacaxi. Após dezessete anos sem publicar ficção, lançou a coletânea de contos Umidade (2005), a história infantil Barata! (2007), o romance Pornopopéia (2009) – finalista dos prêmios Portugal Telecom e São Paulo de Literatura. Em 2018, publicou o romance Maior que o mundo.

Verônica Stigger nasceu em Porto Alegre (RS), em 1973. Escritora, crítica de arte, curadora e professora. Seus escritos se concentram na arte moderna e contemporânea, especialmente nas tramas estabelecidas entre texto e imagem, literatura e arte e experiências que expandem os horizontes metodológicos para pensar a produção artística. É autora, entre outros, de Os anões (2010) e de Sombrio ermo turvo (2019). Em 2017, recebeu o prêmio Jabuti por Sul.

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