
O blog da BVPS publica hoje o segundo post da série Preliminares, ação coordenada por Rodrigo Jorge Ribeiro Neves (UFRJ) para a divulgação do livro O corpo desvelado: contos eróticos brasileiros (1922-2022), organizado por Eliane Robert de Moraes (USP) e editado pela Companhia Editora de Pernambuco (CEPE). Durante três dias (6, 8 e 12 de dezembro), publicaremos excertos das narrativas curtas que compõem a obra, oferecendo, assim, uma pequena amostra desse excitante trabalho, como quem deixa tocar por debaixo do tecido, usando somente os dedos para sentir a pele das palavras.
A seleção dos excertos e dos dados biobibliográficos dos autores foi realizada pela organizadora do livro, Eliane Robert de Moraes. As imagens são fragmentos das fotografias de Matheus Melo, que integram a capa e o projeto gráfico da edição, de Hana Luzia e Matheus Melo.
Na postagem de hoje, ficamos com “Obscenidades de uma dona de casa”, de Ignácio de Loyola Brandão, “Fome”, de Ana Paula Maia, “Futebol americano”, de Silviano Santiago, e “Novos antropofágicos”, de Hilda Hilst, apresentados, respectivamente, a seguir.
1
“Apanho a carta, como quem não quer nada, olho distraidamente o destinatário, agora mudou o envelope, enfio no bolso, com naturalidade, e caminho até a rua, me dirijo para os lados do supermercado, trêmula, sem poder andar direito, perna toda molhada. Fico tão ansiosa, deve ser uma doença que me molho toda, o suco desce pelas pernas, tenho medo que escorra pelas canelas e vejam. Preciso voltar, desesperada para ler a carta. O que estará dizendo hoje? Comprei puropurê, tenho dezenas de latas de puropurê. Cada vez que desço para apanhar a carta, vou ao supermercado e apanho uma lata de puropurê. O gesto é automático, nem tenho imaginação de ir para outro lado. Por que não compro ervilhas? Todo mundo adora ervilhas em casa. Se meu marido entrar na despensa e enxergar esse carregamento de puropurê vai querer saber o que significa. E quem é que sabe?
É dele mesmo, o meu querido correspondente. Confesso, o meu pavor é me sentir apaixonada por este homem que escreve cruamente. Querer sumir, fugir com ele. Se aparecer não vou aguentar, basta ele tocar este telefone e dizer: “Venha, te espero no supermercado, perto da gôndola do puropurê”. Desço correndo, nem faço as malas, nem deixo bilhete. Vamos embora, levando uma garrafa de champanhe, vamos para as festas que ele conhece. Fico louca, nem sei o que digo, tudo delírio, por favor não prestem atenção, nem liguem, não quero trepar com ninguém, adoro meu marido e o que ele faz é bom, gostoso, vou usar meias pretas e ligas para ele, vai gostar, penso que vai ficar louco, o pau endurecido querendo me penetrar. Corto o envelope com a tesoura, cuidadosamente. Amo estas cartas, necessito, se elas pararem vou morrer. Não consigo ler direito na primeira vez, perco tudo, as letras embaralham, somem, vejo o papel em branco. Ouça só o que ele me diz: Te virar de costas, abrir sua bundinha dura, o buraquinho rosa, cuspir no meu pau e te enfiar de uma vez só para ouvir você gritar. Não é coisa para mulher ler, não é coisa decente que se possa falar a uma mulher como eu.”

2
“A primeira mordida na costeleta, os dentes enterrando-se na carne macia, suculenta e dourada, a faz apertar as coxas e contrair o ânus e a vagina. Mais duas mordidas sequenciais e ela quase goza.
O suor desce por sua nuca até as nádegas. Está ofegante. Fecha os olhos e uma garfada na carne lambuzada de risoto é o necessário para ter seu primeiro orgasmo, discreto e em público. Toma um gole de vinho para recobrar a consciência.
Uma fatia de torta de mascarpone com amoras num prato branco e quadrado decorado com respingos de calda de amora e folhinhas de hortelã foi trazido minutos depois de terminadas as costeletas. A fatia firme parecia cimentada no prato. Elvira apanha a colher e demora um instante para tocar a torta. Observa-a por instantes, como quem olha para uma obra de arte, e, ao levar à boca a primeira colherada, suspira. Depois de três orgasmos com o prato principal, sente-se saciada. A torta lhe proporciona o momento da tranquilidade e a deixa levemente sonolenta.”

3
“O carro seguia em direção de El Paso. A estrada, ladeada até o azul puro pela terra seca de vegetação parca e rasteira, se abre em retas pela planície, monótona ainda mais nas suas cores apagadas. Pele enrugada e ressequida de laranja madura, tons de chocolate ralo ao fundo onde se pressentem elevações na paisagem sem nuvens e sem sombras. Os arbustos contra a terra são ambíguos na tonalidade — nunca se sabe o limite, pois há interpenetração mesma na cor.
Quando me lanço contra um jogador e me choco contra ele para cortar a sua corrida, tenho certeza de que o estou machucando. Mas gosto de sentir a mesma dor de volta. O mesmo prazer que tenho em machucar, tenho também em ser machucado: não sei se você me compreende.”

4.
“No meio da escada virei-me para vê-la quem sabe pela última vez. Antônia estava sentada de pernas abertas, a saia azul-turquesa enrolada na cintura. Estupefato quase não acreditei no que vi, mas logo me refiz e fui descendo lentamente as escadas e abrindo a braguilha. Sentei-me nas suas coxas, eu igualzinho a uma tesoura aberta, mas antes de penetrá-la, esporrei. Sorriu mostrando os dentes pequeninos e fez com que eu me ajoelhasse diante dela. A coisa estava ali. Não havia calcinhas. Cobriu-nos com um dos magníficos lençóis de mamãe. Ela sentada. Eu ajoelhado. Antes de começar a chupá-la fiz o sinal da cruz, pedindo a Deus para ser aprovado naquela minha primeira prova. Fui. Gozou muitas vezes, e no gozo repetia ai Jesus, ai Jesus. Éramos decididamente católicos. Durante duas semanas vivi as mais feéricas quintas-feiras, porque mamãe decidiu ser quinta-feira um bom dia para fazer compras e aproveitar assim a presença de Antônia zelando pela casa até às seis. Mamãe não gostava que eu ficasse sozinho no velho casarão. Antes era um bairro grã-fino, depois infestado de puteiros e ladrões.”
Sobre os autores:
Ignácio de Loyola Brandão nasceu em Araraquara (SP), em 1936. É jornalista, contista e romancista. Começou sua carreira literária em 1965, e hoje é autor de mais de trinta livros, entre eles Não verás país nenhum (1981). Já foi traduzido para várias já conquistou vários prêmios literários com sua obra, entre eles o prêmio Pedro Nava (da Academia Brasileira de Letras), o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e o Jabuti.
Ana Paula Maia nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1977. É autora de diversos romances, entre eles De gados e homens (2013), Assim na terra como embaixo da terra (2017) e Enterre seus mortos (2018). Tem contos publicados em diversas antologias e foi duas vezes vencedora do prêmio São Paulo de Literatura. Como roteirista da TV Globo, foi responsável pela série Desalma.
Silviano Santiago nasceu em Formiga (MG), em 1936. Sua vasta obra inclui romances, contos e ensaios. É professor emérito da UFF. É autor, entre outros, de Em liberdade (1981) e Stella Manhattan (1985). Em 2015, venceu o prêmio Oceanos de melhor obra do ano com o romance Mil rosas roubadas (2014). Seu romance Machado (2017) foi vencedor do prêmio Jabuti. Recebeu o Prêmio Camões 2022.
Hilda Hilst nasceu em Jaú (SP), em 1930, e faleceu em 2004. Formou-se em Direito pela USP e, aos 37 anos de idade, mudou-se para a chácara Casa do Sol, próxima a Campinas. Lá, na companhia de dezenas de cachorros, ela se dedicou integralmente à criação literária, entre livros de poesia, ficção e peças de teatro. Nos anos 1990, inaugurou a fase pornográfica, com os títulos que integrariam a polêmica “tetralogia obscena”. Foi homenageada pela Flip em 2018.