Entrevista | Marcelo Ridenti fala sobre Arrigo, seu romance de estreia

O Blog da BVPS publica hoje uma entrevista com Marcelo Ridenti sobre seu romance de estreia, Arrigo, que acaba de ser lançado pela editora Boitempo. A conversa, conduzida pelo professor André Botelho (UFRJ) e pelo doutorando Lucas van Hombeeck (PPGSA/UFRJ), apresenta não apenas o romance e o personagem que dá nome ao livro, como também explora as relações entre o ser escritor e o ser sociólogo.

Aproveitamos para convidar a todas e todos para o lançamento do livro no Rio de Janeiro, que ocorrerá no dia 22 de março, às 19h, na livraria da Travessa de Botafogo. O evento contará com a presença de Marcelo Ridenti, Helena Celestino e Daniel Aarão Reis.

Boa leitura!


1. Marcelo, não há como não começar essa conversa sem perguntar por que um sociólogo, especialista na história da esquerda e da intelectualidade de esquerda brasileira, decidiu escrever um romance sobre seu tema próprio de pesquisa. Você poderia nos contar um pouco sobre isso?

Desde bem jovem, construí para mim mesmo a fantasia de ser escritor. Mas as exigências da carreira como sociólogo deixaram para trás o sonho literário estrito senso, no sentido da ficção. Tratei de canalizar o gosto pela leitura e pela escrita para produzir obras de ciências sociais que não deixam de ter um lado literário, pois tento construir textos com alguma beleza e técnica narrativa, buscando cativar os leitores, sem abrir mão do rigor acadêmico.

Entretanto, nunca abandonei totalmente a velha utopia de escrever ficção literária. Dois fatores simultâneos levaram-me a finalmente realizar o romance Arrigo. Primeiro, ao completar 60 anos, veio o choque de realidade: 60 é um número cabalístico, apontando que chegara o momento de concluir projetos pendentes, como escrever o romance acalentado desde a juventude, ainda mais que a data coincidiu com o segundo e mais decisivo fator: a vitória da extrema direita nas eleições de 2018.

Parecia inacreditável que, pelo voto, chegasse ao governo aquilo que a história do Brasil gerou de pior, e sem a necessidade de disfarçar a própria estupidez. Era preciso dar minha resposta à situação, tanto do ponto de vista pessoal – para mostrar a mim mesmo que estava vivo e seria capaz de realizar projetos na contracorrente da barbárie triunfante que continua por aí –, como ainda no aspecto coletivo, não só participando politicamente de atos públicos, mas também escrevendo para ajudar na recusa à maré montante reacionária, remetendo com minha escrita a experiências de situações similares no passado. Um jeito de fazer isso, ultrapassando fronteiras acadêmicas, foi realizar o romance. Busquei, pela vida das personagens, sintetizar um modo de ver, sentir, pensar e agir no mundo ao longo de cem anos, com perspectivas críticas da organização social capitalista. Algo que vai além dos limites da sociologia, embora incorporando literariamente décadas de pesquisa. Não se trata de explicar um fato social, mas de inserir-se dentro dele pela ficção literária.

2. Como as experiências de sociólogo e ficcionista se comunicam? Quais são as principais diferenças notadas na sua experiência e, afinal, é possível dizer algo com a ficção que não se pode dizer com a sociologia? Ou vice-versa?

Senti necessidade de expressar aspectos existenciais que transbordam o universo da pesquisa acadêmica e seus rígidos procedimentos de investigação. O modo que encontrei foi fazer um romance histórico com base em meus conhecimentos acumulados sobre as lutas sociais, particularmente os dramas humanos nos momentos de resistência e embate contra autoritarismos, como na presidência de Arthur Bernardes que governou sob Estado de sítio, a ditadura de Vargas, a resistência ao nazifascismo na Espanha e na França, depois à ditadura militar no Brasil. Tudo isso vivido na trajetória do personagem Arrigo.

Não se trata de fazer da literatura um meio de demonstrar teses acadêmicas, muito menos um veículo de propaganda política. Mas sim de usar seus recursos para refletir sobre nossa história, dando vida a personagens e situações que por vezes escapam do controle do autor, construindo uma narrativa que provoque a reflexão, e ao mesmo tempo proporcione prazer na leitura, ao entrelaçar a vida cotidiana das personagens com a vida social e política mais abrangente em que estão inseridas.

No ano passado publiquei meu livro sobre a Guerra Fria cultural nos anos 1950 e 1960, intitulado O segredo das senhoras americanas (Ridenti, Ed. Unesp, 2022). Talvez seja minha melhor obra acadêmica, escrita com base em extensa pesquisa no Brasil e no exterior ao longo de mais de uma década. Foi redigida no mesmo contexto que gerou o romance Arrigo, como um outro tipo de resposta autoral à situação que vivemos. Mas aquele trabalho está voltado à explicação racional e metódica para ajudar a compreender o lugar de intelectuais e artistas na sociedade, tentando demonstrar que eles podem dar diferentes respostas individuais e de grupo a constrições sociais que exercem pressão e impõem limites à sua ação, mas não a determinam completamente. Demonstrando em cada caso estudado como os sujeitos foram constituídos pelas tramas das grandes potências durante a chamada Guerra Fria, e ao mesmo tempo eram constituintes dessas tramas. O romance, por sua vez, embora também trate da ação de pessoas, indissociável de seus condicionantes sociais, não busca demonstrar teses ou chegar a conclusões lógicas. Mas sim expressar de modo aberto dramas e impasses da sociedade contemporânea na pele de Arrigo e seus companheiros.

Num caso, trata-se de dar asas à imaginação sociológica para reconstituir e explicar objetivamente fatos históricos a partir de procedimentos de pesquisa, no outro de voar com a imaginação literária, que também está ancorada nesses fatos, mas explorando a fantasia, lançando mão de recursos vedados ao sociólogo, como inventar episódios, criar diálogos e entrar na mente das personagens.

3. Conte-nos mais sobre Arrigo, romance e personagem.

O romance tem por título o nome italiano forte e raro do personagem principal: Arrigo, variante de Enrico, Henrique. Foi escolhido por sua mãe, militante anarquista e imigrante. Também pode ser a primeira pessoa do verbo arrigar, que significa tirar o linho da terra. Ou seja, arrigar tem um sentido próximo de arrancar do solo. A obra revisita pela ficção cem anos de história da esquerda brasileira, tramada na trajetória dele e de seus camaradas no país e no exílio, numa mescla de realismo e fantasia, a partir da greve geral de 1917 em São Paulo, quando era menino.

O livro é apresentado na forma dos antigos folhetins: capítulos curtos encadeados, um puxando o outro, com diversas personagens e muita ação, aventura, humor e tragédia também, como nos relatos de prisões e torturas. A obra é predominantemente realista, mas construída a partir de uma situação surreal: o narrador – que não deixa de ser personagem – encontra Arrigo inerte em seu apartamento num prédio decadente e com poucos moradores. Sem saber se o velho está desmaiado ou morto, decide sair em busca de ajuda, mas não consegue, pois a porta emperrou. Desprovido de meio de comunicação, ele fica preso no local enquanto conta a história de Arrigo, à espera de alguém para tirá-los dali. Fantasmas do passado do personagem principal também habitam o apartamento e entram em cena de quando em quando.

Arrigo trata de um tema que me fascina: a passagem do tempo na vida das pessoas, em suas individualidades e relações sociais. Tanto que alguns dos títulos provisórios do romance tinham a palavra tempo, como Um tiro no tempo, que virou nome de um capítulo decisivo no romance. Como se sabe, a passagem do tempo na vida das pessoas pode ser tratada de modos distintos na produção intelectual. Por exemplo, como memória das vivências subjetivas em circunstâncias objetivamente dadas, circunstâncias essas que são analisadas pela história e pelas ciências sociais com métodos e técnicas de pesquisa apropriados, particularmente a sociologia, a que tenho me dedicado ao longo da vida profissional.

Mas além da memória e da história, a representação da passagem do tempo também pode ganhar contornos de criação artística, por exemplo na canção popular e especialmente na poesia como forma condensada de expressão formal de sentimentos. Pode ser ainda tratada pela ficção no teatro, no cinema ou, como é o caso aqui, no romance. A seu modo, a ficção pode sintetizar a subjetividade da memória, a busca de objetividade da história e das ciências sociais, além da expressão poética de sentimentos.

Esta é a aventura a que me lanço agora, recriando pela fantasia a experiência social e pessoal vivida por Arrigo e seus companheiros ao longo de um século, sem as amarraras da comprovação empírica para demonstrar teses, buscando uma forma de expressão literária da “comédia humana”, termo usado por Balzac em contraste com a divina comédia de Dante, como é sabido.

4. Quais são os seus planos futuros no campo da ficção?

Fui picado pela mosca azul do imenso prazer de fabular. De modo que, paralelamente à produção acadêmica, continuarei produzindo ficção literária. Arrigo é o primeiro romance de uma trilogia projetada, cada livro diferente do outro, ainda que os três tentando amarrar os destinos biográficos com o processo histórico. A redação do segundo romance já está bem avançada, e o terceiro tem apenas o argumento, mas também virá, espero. Adianto apenas um breve resumo do segundo: “O tempo de Celeste é lembrado por Vicente, que conta a história da jovem empregada doméstica de sua família nos anos 1960, quando era menino. A moça tinha um rádio de pilha que foi testemunha dos acontecimentos extraordinários que atravessaram seu cotidiano e das pessoas ao redor em cenas de amor e sangue no coração de São Paulo”. Mas o que importa neste momento é propor a vocês a leitura do romance concluído depois de muito trabalho, lançado pela Boitempo e objeto de nossa conversa: Arrigo.    


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