Desassossegos | Coluna de Alcida Rita Ramos

Publicamos hoje o terceiro texto de Alcida Rita Ramos (UnB) na coluna Desassossegos. A autora compartilha com os leitores e as leitoras da BVPS seu discurso proferido na cerimônia de outorga do título de professora emérita da Universidade de Brasília, em novembro de 2009. Entre as emoções e informações que se esperam de um discurso de emerência, temos ainda, parafraseando Roland Barthes, “fragmentos de um discurso amoroso” da autora com a UnB, seus alunos, colegas e ofício.

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Boa leitura!


Cerimônia | Professora Emérita – Auditório da Reitoria, Universidade de Brasília

Por Alcida Rita Ramos (UnB)

Magnífico Reitor, Diretor do Instituto de Ciências Sociais, Chefe de Departamento de Antropologia – meus sempre amigos –, meus colegas, ex-alunos, alunos, meus pares e amigos aqui presentes.

Para merecer esta honra, o que foi que eu fiz além daquilo que se espera de uma antropóloga brasileira “normal”? Alguém que vive a sua profissão não apenas como uma carreira universitária, um emprego remunerado, mas como um estilo de vida, um estado de espírito permanente, um caminho existencial sem volta? É evidente que aprecio o reconhecimento que o diploma de professora emérita significa, mas ele também traz no seu bojo uma declaração de excepcionalidade da qual não partilho totalmente. No mundo acadêmico a timidez intelectual muitas vezes esconde uma sabedoria insuspeitada e não é pela minha falta dessa timidez que chego a ser mais sábia que qualquer de meus colegas. Prefiro ver nesta homenagem uma oportunidade para expressarmos – eu e a UnB – nosso caso de amor de mais de três décadas. É claro que nenhum amor com essa idade é tão cego que só veja um mar de rosas, mas o fato de durar todo esse tempo já mostra que é genuinamente duradouro.

Se a antropologia me definiu como pessoa (naquele sentido filosófico do Bildung), a UnB me deu o espaço para que essa pessoa desenvolvesse a sua capacidade até o seu limite. Na UnB sempre me senti em casa, à vontade para experimentar novas maneiras de escrever, de ensinar e de encarar a academia aqui e lá fora. Nunca me senti cerceada nas minhas atividades acadêmicas e militantes em prol dos povos indígenas. Pelo contrário, sempre tive o privilégio de contar com a solidariedade dos colegas para tomar o tempo necessário de pôr em prática não só projetos de pesquisa como de ação, às vezes fazendo pesar sobre eles o ônus de suprir a minha ausência. Acreditavam e continuam acreditando em mim, o que só agora me vem plenamente à consciência e me dá o conforto de confirmar que tenho vivido numa verdadeira comunidade de pares.

Não é complacência, é tolerância e generosidade. Generosidade para continuar acolhendo quem se aposenta, na convicção de que a experiência acumulada não se exaure com um ato burocrático e que nada muda na convivência. E quando falo em pares não me restrinjo aos colegas de profissão. Incluo aí o nosso suporte de cada dia, os funcionários do DAN que nos encurtam os caminhos institucionais nem sempre suaves e, por fortuna, integram plenamente o tecido social da nossa mini comunidade, dando a melhor parte de suas vidas para manter a excelência das nossas relações profissionais e do nosso departamento. A qualidade da interação de que em geral usufruímos se deve em boa medida à sensatez e tranquilidade dos nossos funcionários.

Quando estamos no centro do redemoinho de prazos fatais, de pressões de toda a ordem, tudo à volta fica fora de foco; só quando desaceleramos é que percebemos em alta definição o carinho e a solidariedade de quem nos nutre de ideias e apoia as nossas aventuras intelectuais. A aposentadoria foi um momento de desaceleração para mim. A princípio isso me incomodava: é a preguiça que, finalmente, está livre para me devorar, é a idade que começa a me travar, é a praga da acomodação… Mas, cinco anos depois, me dou conta do quanto é benéfico fugir do redemoinho e ver a vida num ritmo mais condizente com a capacidade humana de degustar o presente e os que estão presentes.

O pano de fundo de tudo isso é a UnB, que cria as condições para construirmos um cotidiano de convivência que não vejo em outros sítios de produção antropológica, por mais excelentes que sejam. É claro que há pelo mundo universidades magníficas, ricas, eficientes. Estive em algumas delas, mas faltou algo que eu vou chamar, por falta de palavra melhor, de compatibilidade. Como num casamento, sem compatibilidade não serve muito ser magnífico, rico e eficiente.

Essa sensação de estar no lugar certo me veio com o impacto de um relâmpago num momento fugaz durante as comemorações dos 25 anos da nossa pós-graduação. Eu conversava com alguns colegas ali, na entrada norte; ao esticar o olho para o longo corredor do térreo em direção ao centro do Minhocão, uma constatação fulminante me veio à consciência: isto é parte de mim. E foi aí que me dei conta, de uma vez por todas, que pertencer à UnB, viver no cerrado e morar numa maquete de arquiteto são experiências muito nossas e, de minha parte, extraio um grande prazer de todas elas.

E que dizer dos alunos?

Quando dei meus primeiros passos na antropologia, ainda no Museu Nacional do Rio de Janeiro, sempre repeli a possibilidade de vir a dar aula. Meu sonho era ser única e exclusivamente pesquisadora, dividindo meu tempo entre estadas no campo e recolhimento em estúdio. É claro, como todo sonho que se preza, aquilo se desvaneceu quando acordei para a realidade da vida acadêmica. Tive que enfrentar os meus temores, inseguranças, o medo do palco, aquele stage fright que assola a maioria das pessoas que se veem no centro das atenções. Enquanto os seminários da pós-graduação disfarçavam essa síndrome do stage fright pelo formato de discussões partilhadas em volta de uma mesa, as aulas da graduação foram o verdadeiro teste da minha capacidade de repassar conhecimento. Ainda hoje sinto um frio no estômago a cada primeira aula.

Quando, aos poucos, os alunos deixaram de ser o bicho-papão da professora neófita e se tornaram esponjas prontas para se embeber das novidades que eu transmitia, então passei a olhar a docência como mais um plano de crescimento profissional.

Embora eu tenha projetado numa boa parte dos alunos a imagem de durona, intransigente e implacável numa versão do que o nosso saudoso professor, Roberto Cardoso de Oliveira, chamava de meu gênio de cão, eu sempre os levei a sério, sempre acreditei que sim, eles podiam! Mas também nunca fui complacente com displicência ou desinteresse, porque vejo na universidade pública e gratuita um bem valioso demais para ser tratado com descaso tanto por estudantes como por professores.

Muito provavelmente, os estudantes que cursaram minhas disciplinas, na graduação e na pós, nunca se deram conta de como contribuíram para o meu amadurecimento profissional. Com eles aprendi a esmiuçar ideias que antes eram apenas noções impressionistas, por causa deles cobri quilômetros de bibliografia que não teria palmilhado sozinha, com eles e por causa deles tive ideias novas, testei umas tantas outras e, pouco a pouco, passei a ver as aulas como um grande laboratório onde germinava a matéria imponderável da razão antropológica. Sou grata por esta oportunidade de dizer isto aqui, publicamente, já que no calor da docência nunca achamos o contexto certo para revelações deste tipo. É desnecessário dizer que aquele sonho de me enclausurar numa cela de pesquisadora solitária há muito tempo foi exorcizado, dissolvido por aí ao longo dos anos de perda de inocência, inocência essa que acabou em boa hora, já que é responsável por uma cegueira juvenil que, felizmente, tem tempo de validade.

Por tudo isto, meus caros amigos, não é exagero dizer que felizes são aqueles que encontraram a sua vocação e um espaço propício para torná-la realidade. Tenho o privilégio de me reconhecer entre esses felizardos e declarar minha gratidão por este evento cuja lembrança já faz parte da minha história.

Obrigada.

Brasília, 20 de novembro de 2009

A imagem que abre o post é de Joana Lavôr e a foto de Alcida Rita Ramos é de autoria de André Aquere


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