Teatro e entropia, por Gabriel Martins da Silva

Publicamos hoje crítica de teatro assinada por Gabriel Martins da Silva (PPGLCC/PUC-Rio) sobre a peça Um filme argentino, que estava em cartaz recentemente no Teatro Adolpho Bloch, no Rio de Janeiro.

Encenada pelos atores Letícia Colin e Michel Melamed, que interpretam o casal principal e uma variedade de personagens, a peça narra o fim de um casamento utilizando, segundo Silva, um recurso pouco comum em obras com essa temática: o humor nonsense. O autor argumenta que é na comicidade exagerada que se revela a estrutura e a força de Um filme argentino.

Boa leitura!


Teatro e entropia

Por Gabriel Martins da Silva (PPGLCC/PUC-Rio)

Sobre a peça Um filme argentino

Assisti Um filme argentino sem saber do que se tratava, peça escrita e dirigida por Michel Melamed, com as atuações tanto do diretor como de Letícia Colin. A indicação veio de colegas que ou haviam assistido à peça, ou propriamente trabalhado nela. Fui, num sábado, uma semana antes da peça sair de cartaz, assistir e descobrir de onde vinha o fuzuê que ela causava na minha pequena bolha.

A primeira impressão foi ruim, confesso. Na cena de abertura, vemos Letícia e Michel sentados em cadeiras, quando a temática parece se apresentar no diálogo entre os atores: o fim de um casamento. Na hora já podia supor o que estava por vir: mais uma peça sobre fim de relacionamentos, a falência da instituição do matrimônio e outros dilemas corriqueiros da vida ordinária. Eu não poderia estar mais errado. Logo somos catapultados para a última grande briga do casal antes do término, seguida então da mudança de Cláudia (Letícia Colin) para o saguão do prédio. Nesse movimento, o discurso da desilusão amorosa, revestido de melancolia e desesperança, deságua na comicidade da sequência de apresentação dos personagens residentes no prédio do casal, a horda de vizinhos tresloucados – todos interpretados também pelos dois atores, o que dá certo ar de exagero cômico. A performance é impecável, como naturalmente deveria ser no caso dos dois atores. É valendo-se da simplicidade constitutiva da peça – dosada e controlada pelo trabalho incrível de direção de arte, cenário e figurino –, quer dizer, a proliferação dos personagens, as indumentárias triviais e a presença de apenas dois atores para compor com a gama de personalidades, que a performance é explorada ao limite, numa incursão divertida dos diferentes mecanismos cênicos que combinam improviso e corporalidade. É exemplo disso que, em mais de um momento, os personagens cantam em espanhol, dançam tango, pulam, se jogam, preenchendo os “vazios” numa utilização inventiva do corpo.

Num primeiro momento, do ponto de vista humorístico, as piadas soam fora de lugar, sem o timing exato. A comédia de erros que vemos tomar corpo parece passar do ponto. Mas é aí que eu me enganava novamente. A própria forma da peça solicitava, retrospectivamente, certo exagero, certas encenações forçadas, que garantem a própria estrutura na qual a história da personagem interpretada por Letícia Colin se desenrolava.

Em termos básicos, a separação do casal desemboca numa ocupação da portaria do prédio, que, pouco a pouco, por sua vez, é ocupada pelos vizinhos. Uma voz em off narra, paulatinamente, as etapas da peça, numa espécie de seriação em capítulos, que também garante certa comicidade. A peça é entremeada pela narração capitular, chegando ao limite, retorcendo a história e colocando-a na chave do delírio. Como as únicas atuações são dos dois atores, os personagens são revezados, ganhando, a cada ato, uma formulação nova, numa invenção cênica de humor deliberadamente escrachado. É nesse sentido que o caráter eminentemente humorístico se intensifica, indo das piadas explicitamente políticas, num mainstream de comédia engajada, digamos assim, ao nonsense. Chegamos no limite delirante quando Claudia engravida de Clóvis, o vizinho-corredor, cujo filho nasce na portaria do prédio e logo discute com a polícia por meio de um megafone. Assim, os esquemas cênicos e os recursos dramatúrgicos, ambos combinados com a comicidade-limite da peça, dão o andamento e a estrutura entrópica que parece ser o princípio constituidor do enredo. Nesse ponto em que gostaria de salientar a virada crítica de Um filme argentino, quer dizer, seu rendimento do ponto de vista formal que justifica, por outro lado, os exageros da atuação, do humor e do próprio cenário.

As intenções, do ponto de vista da direção, são metateatrais, com falas que tocam o público, na comunicação em improviso ou ainda nos enquadramentos que remetem sempre ao que está fora da “cena” – em muitos momentos reduzida ao platô no centro do palco. E é aqui que chegamos na culminância dos elementos essenciais da peça. Como é contado, o vizinho-corredor junta-se a Cláudia, quando começam a morar juntos na portaria do prédio, ao passo que outros vizinhos se juntam à ocupação. Assim, num ritmo delirante, a portaria vira bar, restaurante, stand up comedy e, conforme a história se desenrola, os objetos se acumulam no hall do prédio, transformando o cenário num reduto caótico. A pequena portaria converte-se no mundo, ou vice-versa, o mundo converte-se na pequena portaria. É a junção do próprio cenário com a acumulação infinita dos objetos domésticos de Claudia, junto ao humor nonsense que se intensifica, que dá à peça tal estrutura entrópica.

O delírio, conforme assistimos numa mistura de estonteamento, deslumbre e risada, parece difícil de se resolver num final convincente, já que a lógica interna das cenas deixa de fazer sentido. Porém, quando menos se espera, o amor, como tematizado na abertura, retorna numa nova conversa entre o casal em vias de separação, agora cercados pela polícia, com miras laser apontadas para as cabeças. E é novamente, num gesto metanarrativo, que o casal redefine o amor, anunciado, no início, como afeto eminentemente negativo, que tendia ao caos, à infelicidade, num movimento também entrópico: os relacionamentos tendem sempre ao desgaste interno, o casamento sempre resulta em briga e desamor, juízo que chega ao máximo quando Claudio (Michel Melamed) compara a separação à morte, ou seja, aquilo que é inescapável para todos. Nesse sentido, o amor, o cenário, o humor da peça tendem a essa entropia, a essa destruição interna gerada pela energia acumulada, num gesto teatral que pretende, sabiamente, unir essas pontas soltas e aparentemente aleatórias ao elemento formal constituidor de sua dramaturgia.

Dessa maneira, Um filme argentino é brilhante e corajoso. Primeiramente, por tematizar novamente aquilo que talvez seja um dos tópicos mais conhecidos e trabalhados, e por fazê-lo usando recurso pouco comum – pelo menos no teatro carioca dos últimos anos –, o humor nonsense, que beira o mau gosto – proposital, evidentemente –, e, além disso, por fazer um teatro simples e perspicaz, que tenha na forma a sua maior força, princípio esse que parece aglutinar todas as outras dimensões.


A imagem que abre o post é uma foto de divulgação de Rael Barja


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