BVPS: MODOS DE USAR. Maria Isaura Pereira de Queiroz

maria isaura

 

Nota Bibliográfica: Maria Isaura Pereira de Queiroz (1918- )

Por Lucas Carvalho (UFRJ)

Maria Isaura Pereira de Queiroz nasceu na cidade de São Paulo em 1918. Filha de uma família tradicional, seus pais eram descendentes de fazendeiros de café (os Queiroz Telles e os Pereira de Queiroz) do Vale do Paraíba e do Oeste Paulista. Em 1946, ingressou na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP, formando-se em 1949.

Em 1951, tornou-se assistente da Cadeira de Sociologia I da FFCL da mesma universidade, mesmo ano em que ingressou na École Pratique de Hautes Études, onde obteve seu doutorado, em 1955, com a tese “La ‘Guerre Sainte’ au Brésil: le mouvement messianique du ‘Contestado’”, defendida perante um júri formado por Roger Bastide, que a dirigiu, Claude Lévi-Strauss e Gabriel Le Bras. Em 1958, transferiu-se para a Cadeira de Sociologia II. Em 1963, submeteu-se ao concurso de Livre Docente, com uma tese sobre “O Messianismo no Brasil e no Mundo”, tornando-se professora Livre-Docente. Só em 1973, passou ao cargo de Professora Adjunta da FFCL da USP. Lecionou em universidades da França, Canadá, Senegal, Suíça, Itália e Bélgica. Foi agraciada, entre outros, pelo Prêmio Jabuti em 1966, e desde 1990 é Professora Emérita da Universidade de São Paulo.

Dois pontos fundamentais fundam a vasta obra de Queiroz e sua trajetória institucional: sua proposta para a consolidação da área de sociologia política no Brasil e a análise detida do “mundo rústico”. Com o sugestivo título “Contribuição para o estudo da sociologia política no Brasil”, a socióloga apresentou no I Congresso Brasileiro de Sociologia em 1954, as linhas gerais de uma agenda de pesquisas para o desenvolvimento da área, assentada em estudos sociológicos de nosso passado político que serviriam de pano de fundo para pesquisas empíricas efetuadas a partir do município. Expressivos dessa proposta foram os ensaios “O mandonismo local na vida política brasileira” (1956) e “O coronelismo numa interpretação sociológica” (1975), nos quais a investigação das relações de mando estabelecidas entre grupos sociais no âmbito do poder local serviram de apoio para a investigação da autora de uma estrutura hierárquica mais ampla que conformou em diversos momentos históricos a formação da sociedade brasileira. Nesses e outros estudos, Queiroz não deixava de atentar para as respostas criativas dos agentes – individuais e coletivos – às estruturas de dominação social nas quais se inseriam, destacando a multiplicidade e complexidade da vida social “rústica”. Essas configurações de poder de níveis microssociológicas poderiam ser entrevistas, por exemplo, no papel político de lideranças religiosas messiânicas e em grupos sociais como os cangaceiros. Tendo em vista essa ampla agenda de pesquisas, Queiroz ao lado de outros colegas do Departamento de Ciências Sociais da FFCL/USP criaram, em 1964, o Centro de Estudos Rurais e Urbanos (CERU), até hoje referência na formação de alunos e pesquisadores.

Uma complexa perspectiva de análise pode ser entrevista em cada trabalho e, de forma geral, na vasta obra de Maria Isaura Pereira de Queiroz: de certos aspectos do mundo rústico se estendem considerações mais gerais, sugerindo um movimento à análise que a própria autora imputa ao social, formado por diferentes níveis – micro, meso e macro – que se ligam e se chocam uns com outros. Premissa metodológica que elege a análise do mundo rural como um “ponto de vista” privilegiado para o entendimento da formação de uma sociedade de raízes agrárias como a nossa.

Sugestões de leitura:

BOTELHO, André.  “Sequências de uma sociologia política brasileira”. Dados, v. 50, n. 1, pp. 49-82, 2007.

CARVALHO, Lucas C. Tradição e transição: mundo rústico e mudança social na sociologia de Maria Isaura Pereira de Queiroz. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia – PPGSA/IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, 2010.

LOPES, Aline M. Vida rural e mudança social no Brasil: tradição e modernidade na sociologia de Maria Isaura Pereira de Queiroz. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012.

VILLAS BÔAS, Glaucia. “Para ler a sociologia política de Maria Isaura Pereira de Queiroz”. Estudos Políticos, n. 1, pp. 37-44, 2010.

 

Informações bibliométricas

A bibliografia secundária da obra de Maria Isaura ainda é pequena, mas não menos importante para diversas áreas das ciências sociais. Em breve ela estará disponível no site da BVPS (http://bvps.fiocruz.br/). Os trabalhos de Glaucia Villas Bôas e André Botelho continuam seminais para aqueles que desejam fazer incursões na obra da socióloga, servindo como esteio para outros que vieram posteriormente e que certamente ainda virão. No entanto, há muito trabalho a ser feito e novos ângulos de interpretação a serem explorados. Um dos objetivos da BVPS é justamente tornar mais clarividente os avanços e lacunas na produção sobre diversos intérpretes e, dessa forma, contribuir para o seu avanço e sistematização. Esperamos que assim seja com a vasta e complexa obra de Maria Isaura Pereira de Queiroz.

Excertos

Os excertos abaixo destacam dois pontos fundamentais na obra de Maria Isaura Pereira de Queiroz: de um lado, a sua proposta metodológica associada, por outro lado, às suas análises substantivas da sociedade brasileira. A base das pesquisas da socióloga paulista reside numa concepção do social inerentemente dinâmica e móvel, em constante transformação. Essa lógica traz para o bojo da explicação sociológica o tema da mudança social, já que se trata não somente de compreender como a sociedade se transforma, mas principalmente como as estruturas são mantidas e perpetuadas. Na sociedade brasileira essa concepção do social se revelava na forma ora conflituosa, ora acomodatícia, mas nunca, no entanto, disjuntiva da relação entre tradicional e moderno. A percepção das configurações particulares dessa relação só foi possível porque Queiroz tomava a sociedade global brasileira estratificada em níveis ou patamares sociais. Os níveis micro – formado pelas relações pessoais e de troca de favores, bem como pela racionalidade específica dos grupos rústicos em torno dos canais possíveis de ascensão social -, o nível meso – integrado pelos estudos das formas de ação coletiva do mundo rústico, como movimentos messiânicos e o cangaço – e o nível macro – constituído pela estrutura social da parentela, ou seja, a reunião de grupos de famílias em torno de formas de dominação pessoal – poderiam, segundo Queiroz, chocarem-se ou criarem mesclas entre si, definindo os limites e as potencialidades de agência dos grupos rústicos. Dessa perspectiva, o panorama traçado da sociedade brasileira pela autora se revela nas acomodações sucessivas das formas expansivas e fluidas da parentela aos novos processos de mudança social.

Excertos 1

“Advertência”. In: Pereira de Queiroz, Maria Isaura. Cultura, sociedade rural, sociedade urbana no Brasil. São Paulo: EDUSP, 1978.

“Se quisermos sintetizar estes pontos de vista, diremos que nossa contribuição nesta obra se orienta segundo os postulados fundamentais que têm dirigido nossos trabalhos desde que nos lançamos à pesquisa. São os dados empíricos que atraem sem exceção nossa observação e reflexão; e ao mesmo quando o raciocínio aborda considerações teóricas, é sempre a partir de dados empíricos, e visando sua compreensão. Este social que vem aguçando há mais de vinte anos a nossa curiosidade, não o vemos nem imóvel, nem homogêneo; está partilhado em segmentos variados, que ora se apresentam como grupos, ora como coletividades, ora como parentelas, ora como classes sociais, – segumentos que compõem uma dada estrutura na qual se distribuiem segundo determinados critérios de estratificação. Sem analisar a composição das estruturas e das estratificações, não alcançamos uma compreensão nítida da sociedade global” (p. X)

“A transformação se opera de determinada maneira, conforme as posições recíprocas de grupos e de camadas sócio-econômicas e políticas; ela não se dá ao acaso nem segundo a vontade individual, por maior papel que desempenhem as lideranças. Desta forma, é indispensável o conhecimento das estruturas para podermos captar com maior acuidade o rumo das transformações” (p. X)

“(…) Mas este níveis não podem ser inteiramente entendidos per se, e só adquirem pleno sentido quando abarcada a totalidade que formam. Entre eles, como entre eles e a totalidade, imperam as contradições, motores das modificações que constantemente os impelem em sentidos variados” (p.XI)

Excertos 2

“Dialética do rural e do urbano: exemplos brasileiros”. In: Pereira de Queiroz, Maria Isaura. Cultura, sociedade rural, sociedade urbana no Brasil. São Paulo: EDUSP, 1978.

 

“Finalmente, para Georges Gurvitch a dialética se apresenta como um excelente instrumento de análise para a realidade socioeconômica, cultural e política, uma vez que corresponde à própria natureza desta realidade; nada poderia, pois, haver de mais próprio para captá-la. Todavia, se a dialética é o instrumento sonhado para tal, cumpre não confundir análise e explicação. A dialética, enquanto instrumento, analisa, não explica. A explicação estaria, sempre, na história, pois é na história que se inserem os fenômenos sociais globais; as explicações se encontram sempre nas configurações da totalidade, diversas conforme o momento histórico, e não em seus aspectos parciais. A dialética como técnica de análise, e portanto de fragmentação, correspondente à essência dialética da realidade social, e leva o pesquisador até o limiar da explicação, mas não o transpõe; a explicação se encontra nas configurações móveis dos fenômenos sociais globais em curso, em seus fluxos e refluxos. Cada fenômeno, cada camada social, cada estrutura, cada conjuntura, encontra sua explicação num encadeamento global que jamais se repete tal e qual e que é histórico. E há também toda uma dialética entre o conhecimento obtido através das análises sociológicas, de um lado, e a história, de outro, que vem contribuir para o encaminhamento das coisas e dos conhecimentos seja sem fim…” (p. 276)

 

Excertos 3

“O coronelismo numa interpretação sociológica”. In: O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São Paulo: Ed. Alfa-Omega, 1976.

 

“Entendemos por ‘parentela’ brasileira um núcleo bastante extenso de indivíduos unidos por parentesco de sangue, formado por várias famílias nucleares, regra geral, economicamente independentes, vivendo cada qual em sua morada; as famílias podem-se dispersar a grandes distâncias, o afastamento geográfico não quebrando a vitalidade dos laços ou das obrigações reunindo os  indivíduos uns aos outros no interior do grupo. A característica principal do grupo é sua estrutura interna, bastante complexa, e variando de uma configuração mais igualitária, até uma estratificação em vários níveis. A configuração igualitária é encontrada principalmente entre os sitiantes; no interior do grupo de parentela, as famílias tendem a estar todas no mesmo nível, sem grandes distâncias socioeconômicas. Nas regiões de ricas monoculturas de exportação, ao contrário, e também nas de grandes fazendas de criar, as parentelas estão estratificadas em seu interior; as famílias que as formam se distribuem então em posições mais ou menos elevadas, de acordo com os bens de fortuna, por um lado, e por outro lado de acordo com o parentesco mais ou menos chegado com a família considerada tronco. As parentelas se apresentam, pois, estruturadas em camadas, nestas regiões, o fator econômico desempenhando um papel importante na diferenciação das mesmas” (p. 181-182).

“A existência do sentimento de ‘igualdade’ deixa as relações de dominação-subordinação à mercê de quaisquer suscetibilidades e de melindres. Um pequeno chefe pode perfeitamente abandonar o grande coronel que sempre acompanhara e passar-se para outro, com toda a sua clientela, desde que se julgue ofendido em seu brio. Esta dependência do maior para com os de nível imediatamente inferior, e destes para com os de nível seguinte, e assim por diante até o sitiante, permitia ao voto se tornar realmente um ‘bem de troca’, e levava os grandes e médios coronéis a todo um comportamento de paternalismo diplomático e de etiquetas refinadas, com relação a seus imediatos” (p.177-178).

“A pirâmide da parentela não era, pois, internamente estática e imóvel; muito pelo contrário, havia em seu interior camadas socioeconômicas e uma dinâmica de ascensões-descidas, que tanto podiam agir como elemento de reforço de sua continuidade, como podiam constituir fatores de fragmentação interna, formando-se então dois blocos inimigos de parentes. Assim, constituindo embora centros de vigorosa solidariedade interna, contraditoriamente estavam também as parentelas sujeitas à fragmentação por razões as mais variadas, isto é, a solidariedade interna efetiva era uma espécie de contrapartida, de uma fragilidade também efetiva, ambas indissoluvelmente ligadas por uma dialética de verso e reverso” (p. 187).

“No entanto, se a dominação clara e visível das parentelas foi sendo comprometida devido à evolução socioeconômica, não se processou sem acomodações defensivas tentando a permanência. Uma verdadeira dialética dos contrários: de um lado a estrutura existente em sua cristalização, e de outro uma evolução que se operava pelo aumento populacional e pelas transformações econômicas (…)” (p.206)

“As acomodações a que nos referimos se tornaram possíveis porque não haviam, as parentelas, se restringido a exercer apenas atividades agrárias, no que diz respeito à economia; suas posses estavam apoiadas em investimentos de variado tipo, de que a fazenda de cana ou de crias, de café ou de cacau não constituía senão uma parte (…). Dominando em parte a grande indústria, o grande comércio, as grandes organizações de serviços públicos ou privados; com membros seus exercendo as profissões liberais, possuidores de grandes estabelecimentos rurais, os coronéis e seus parentes se mantiveram nas camadas superiores da nova estrutura socioeconômica do país, numa continuidade de mando que persiste até os nossos dias” (p. 207-208).

 

Principais trabalhos de Maria Isaura Pereira de Queiroz:

La Guerre Sainte au Brésil: le Mouvement Messianique du Contestado. Tese de doutorado, École Pratique Des Hautes Études VI Section, ÉLÈVE, França, 1956.

Uma Categoria Rural Esquecida. São Paulo: Revista Brasiliense, n.45, p. 93, jan/fev. 1963.

Pesquisas sociológicas sobre o subdesenvolvimento: reflexões metodológicas. In: Cadernos CERU, nº. 5, 1972.

O campesinato brasileiro. Ensaios sobre civilização e grupos rústicos no Brasil. Petrópolis: Editora Vozes, 1973.

Bairros rurais paulistas. São Paulo: Duas Cidades, 1973.

O Messianismo no Brasil e no Mundo. São Paulo: Alfa Omega, 1976.

O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São Paulo: Ed. Alfa-Ômega, 1976.

Cultura, sociedade rural, sociedade urbana no Brasil. São Paulo: EDUSP, 1978.

Carnaval brasileiro – o vivido e o mito. 1 ª edição, São Paulo, Editora Brasiliense, 1992.

* Post publicado em parceria com os blogs sociofilo e NEPS


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