A atualização de hoje da série Pandemia, Cultura e Sociedade completa o díptico sobre o tema da doença em Mário de Andrade, aberto na segunda-feira (04/05). Abaixo, o sociólogo André Botelho, professor da UFRJ, recupera os escritos de Mário sobre a Amazônia, especialmente a “filosofia da maleita”, propondo uma leitura a partir das noções de empatia e reconhecimento que aponta para como o gesto cosmopolita ali contido pode nos interpelar, inclusive na presente crise. Convidamos também para a leitura do outro texto do díptico, de autoria de Robert Wegner (Fiocruz e PUC-Rio), que pode ser acessado aqui.
Pandemia, Cultura e Sociedade é uma parceria do Blog da BVPS com a revista Sociologia & Antropologia (PPGSA/UFRJ). Assine o blog e curta nossa página no Facebook para receber as atualizações. Boa leitura!
Empatia, reconhecimento, solidariedade. Puxando conversa com Mário de Andrade
Por André Botelho[i]
Para Aparecida Moraes e os/as amigos/as que a quarentena trouxe para ainda mais perto
Nesses tempos difíceis da pandemia da Covid-19 tenho me lembrado da “filosofia da maleita” de Mário Andrade. O tema aparece no relato da viagem que ele fez à Amazônia em 1927, entre os dias 8 de maio e 15 de agosto, publicado somente em 1976 em O turista aprendiz – embora tenha sido revisto e prefaciado pelo autor ainda em 1943. E reaparece em textos diversos, como em crônicas publicadas no Diário Nacional em 1931. Ao lado de Macunaíma (1928), talvez a principal realização em prosa do modernismo brasileiro, esses textos formam um conjunto muito especial. Uma “utopia amazônica”, na feliz expressão da professora Telê Ancona Lopez, que, a meu ver, constitui dos mais notáveis esforços de “desrecalque cultural” de que ainda dispomos no Brasil.
Curioso como Mário de Andrade não foi muito de viajar. Percorrendo minhas estantes reencontro o excelente O Brasil não é longe daqui (1990), no qual Flora Süssekind analisa os papéis cruciais do narrador de viagens na formação da ficção brasileira, e me dou conta de que Mário está em ótima companhia: também Machado de Assis foi, a seu modo, um notável viajante anti-viajante. Mas, o que é fascinante em Mário de Andrade – e talvez em Machado também – é como nos ensina que os deslocamentos espaciais são apenas uma das formas possíveis de viagem. Mário foi um viajante intrépido, e não apenas em torno de estantes de livros e escrivaninhas, mas também, e eu quero enfatizar, na hierarquia social, entre grupos, sociedades e culturas.
Profundo conhecedor da literatura de viagem e suas tradicionais implicações etnocêntricas e também eurocêntricas, em seu relato Mário de Andrade procura desestabilizar por dentro os lugares comuns do gênero, seus tropos. Mário performatiza um gesto cosmopolita de desrecalque cultural com relação aos estigmas que há muito marcavam negativamente a Amazônia (e as sociedades tropicais), como se pode ler em relatos de viajantes estrangeiros ou brasileiros, mas também nos testemunhos das elites locais. É o caso mais conhecido da “preguiça”, mas também o das altas temperaturas amazônicas e o da malária. No seu relato, esses “estigmas” são como que transfigurados de modo provocativo em seu avesso, em algo exageradamente positivo, um exercício bem planejado de relativização cultural e de produção de uma polêmica dialógica.
O tema da doença em Mário de Andrade mal começa a ser explorado. Robert Wegner tem trabalhado de modo delicado sobre ele. E compartilhou sua reflexão aqui no Blog da BVPS. Eu gostaria, por minha vez, de trazer de volta algumas questões sobre a reflexão provocativa de Mário sobre a malária, justamente o que ele chama de “filosofia da maleita”. Eu já escrevi sobre o tema antes, inclusive em coautoria comparando a malária nos relatos de Mário de Andrade e de Carlos Chagas. E também sobre a sua viagem à Amazônia. O que gostaria de enfatizar, nesse momento, é que a reflexão de Mário é, a seu modo, uma discussão sobre “a doença como metáfora” – para lembrar o título do conhecido ensaio de Susan Sontag, de 1978.
A filosofia da maleita performatiza uma espécie de desejo de “emigração real para o reino dos doentes e o que seja lá viver”, evocando livremente palavras de Sontag. Trata-se de um gesto polêmico que, observo, vai na contramão do realizado por essa ensaísta norte-americana, ainda que ela também pretenda expor estereótipos, no seu caso, sobre a tuberculose e o câncer. Diz Sontag: “Não pretendo abordar a doença física em si, mas o uso da doença como um símbolo ou metáfora […] Por ora, é muito difícil fixar residência no país dos doentes e permanecer imune aos preconceitos decorrentes das sinistras metáforas com que é descrita a sua paisagem” (Sontag, 1984). Com Mário se dá o oposto: para desnudar preconceitos e estereótipos correntes em sua época com relação à malária busca justamente, de modo performático, transpor o umbral entre os dois reinos. A empatia será o fio de Ariadne dessa sua jornada.
“E desejei a maleita, mas a maleita assim, de acabar com as curiosidades do corpo e do espírito” (Idem, 1976: 107), provoca Mário na entrada de 18 de junho de seu relato de viagem. Suas companheiras de viagem vieram-no chamar para ver no bar a bordo “um moço maravilhoso de lindo […] Mas inteiramente devorado pela maleita, a pele dele, duma lisura absurda, era de um pardo terroso sem prazer”. E prossegue dizendo que as moças, “assanhadíssimas e, como deixavam todo mundo olhando e desejando elas”, fizeram de tudo para chamar a atenção do rapaz. Vãs tentativas: “Pois ele não olhou. Todo o barulho que fazíamos nada o interessava sequer pra uma olhadela, não olhou. Pagou a bebida e saiu sem olhar […] Então desejei ser maleiteiro, assim, nada mais me interessar neste mundo em que tudo me interessa por demais…” (Ibidem).
O trecho tem muitas ideias importantes. A mais evidente delas, talvez, seja a valorização da “indiferença” que, segundo Mário diz acreditar, a “doença” produziria, e que ele logo associa à possibilidade de uma espécie de meditação reflexiva e crítica sobre a sua própria condição de “origem” – de paulistano e supostamente saudável. Na prostração posterior aos acessos da malária, como desenvolve também em crônicas publicadas no Diário Nacional em 1931, Mário imaginava poder ver certos estados “fisiológicos” e “psíquicos” capazes de suspender a “curiosidade”, que ele associa negativamente ao progresso como princípio básico da civilização industrial então em expansão.
Por certo, essa sua “atração pela maleita” também se liga ao tema da criação artística, e não deixa de convergir com a busca de ascensão a um estado propício à percepção sensorial do mundo almejada por artistas modernistas, e com os diferentes meios de que se valeram ao longo do tempo para isso, entre a embriaguez dos sentidos via entorpecentes variados e êxtases místico-religiosos.
Mas tem ainda outras camadas de significado. Estamos diante de uma espécie de empatia transfiguradora dos signos do estigma social da doença, cujo sentido último é restituir dignidade aos seus portadores, como o homem belo e indiferente do seu relato.
Há indícios na intertextualidade da utopia amazônica de Mário de Andrade que sugerem persuasivamente que essa valorização da malária é acima de tudo performativa com sentido crítico. Assim, por exemplo, na crônica “Maleita – I”, de 8 de novembro de 1931, Mário faz questão de admitir logo de saída que conhece muito bem o lugar social específico de sua enunciação e dos seus pontos de vista (dele Mário e supostamente também do leitor visado) que chama de “litorâneo-europeu” (e que nós podemos chamar hoje de eurocêntrico). Diz Mário:
Eu sei que, sob o nosso ponto-de-vista litorâneo-europeu, é horroroso isso que estou falando. Sei também que qualquer sujeito que já tremeu um dia na cama, obrigando a casa a tremer, vai me chamar de “futurista” ou de maluco (Andrade, 1976a: 453-4).
Aparentemente irmanado com o leitor por meio dos preconceitos da sua época (e ainda em parte nossos), Mário passa em seguida a expor esse mesmo leitor ao seu próprio preconceito, esse oposto da empatia.
Sei que com nossa idiotíssima civilização importada, um individuo não se envergonha de arrebentar o fígado à custa de “whisky” e cocteils, não se envergonha de perder uma perna num desastre de automóvel ou quebrar o nariz numa virada de patinação, mas abomina os prazeres sensualíssimos, tão convidativos ao misticismo, do delicioso bicho-de-pé. Que por nós é considerado uma falta de educação. Não se amola de dormir num quarto de hotel, num trem noturno, onde a tuberculose dorme; sorrindo passa a língua num selo de carta, até sendo essa coisa esteticamente nojenta que é o selo amarelo e vermelho da Segunda República! Pois passa a língua num selo desses e considerará uma depravação, a gente desejar a maleita! (Idem, 1976a: 454).
Leitores de Mário de Andrade de ontem e de hoje vamos tomando parte, assim, num hábil exercício de relativização cultural. E por meio de uma série pedagógica de paralelos cuidadosamente traçados, temos a oportunidade de estranhar hábitos arraigados ou não em nossa sociedade – tão ávida pela experiência de emulação das últimas novidades europeias ou norte-americanas. Assim, no contraste entre, de um lado, a valorização da maleita e, de outro, a condenação dessa visão em nome da “civilização”, podemos nos dar conta do etnocentrismo dominante em sua e em parte ainda nossa sociedade.
Recurso retórico, a propósito, bastante característico da ética dialógica do escritor modernista, cujo princípio socrático foi estudado por Silviano Santiago (2006). Em que medida o modo dialógico de Mário, permanentemente aberto à participação do outro, não ajuda a entender justamente a potência utópica de construção de uma sociedade baseada no exercício da solidariedade e do reconhecimento?
“Empatia”. Esta me parece ser a categoria chave para compreender a perspectiva não apenas do viajante amazônico, mas do intelectual e homem Mário de Andrade. Empatia forjada num jogo complexo de distanciamentos e aproximações, e não meramente deslocamentos; de estranhamentos e reconhecimentos, e não meramente de identificações. Não se trata, assim, de uma relativização cultural da realidade da doença em si, mas de se forjar uma relação empática com a realidade do “outro”, a partir da cultura dele.
É isso, me parece, que faz da sua reflexão sobre a malária propriamente uma “filosofia”, cujo sentido provocativo, desestabilizador e crítico somente se mostram plenamente quando considerado na relação empática com um “outro” e no impacto que ela tem sobre um “eu”. Na filosofia da maleita a empatia desloca a discussão do “eu” ou do “outro”, que deixam de ser vistos enquanto categorias substantivas e isoladas, para uma dimensão eminentemente relacional; é na relação que ambos ganham existência, que é então coexistência.
Como poderemos lidar de modo empático e também cosmopolita, é dizer, um tipo de relação descentrada de convivência com o universal a partir das diferenças, que implica movimento e abertura em várias direções, com a realidade criada pela pandemia que atravessamos? Empatia parece ser ainda a categoria chave para construirmos formas de reconhecimento e de solidariedade social. O reconhecimento não meramente de um “eu”, mas de um “nós” no “outro”, para falar com a teoria do reconhecimento e Axel Honneth (2003), crucial para a redefinição de valores e práticas sociais e políticas. Certamente um aprendizado coletivo que se impõe com urgência ao nosso presente e nos recoloca diante do desafio de nos reinventarmos como indivíduos, mas também como sociedade.
Como pesquisador da sociologia da cultura eu não tenho como minimizar a intersubjetividade como componente das ações, das relações e dos processos sociais que constituem tanto o indivíduo quanto a sociedade. Ambos, por isso mesmo, “realidades” tão instáveis ontologicamente, quanto, na verdade, sempre muito mais improváveis do que em geral se acredita. E como praticante de uma sociologia histórica eu tampouco tenho como minimizar o fato de que para se forjar novas perspectivas precisamos também refazer velhas perguntas. Como as de Mário de Andrade sobre a malária, que lhe permitiu propor em seus escritos amazônicos o reconhecimento de um “nós” diante de um “outro”, na contramão do movimento reificado de negar diferenças culturais e recriar desigualdades sociais. A lição atual anacrônica que essa utopia amazônica parece guardar, em tempos de pandemia e pós-verdade, é a de que a relativização precisa estar acompanhada da empatia, pois ela não se realiza num vazio social e, portanto, também não pode se constituir em valor absoluto, acima da dignidade do outro e da vida humana. Saberemos nós, diante da Covid1-9, nos reinventarmos com empatia e solidariedade?
* * *
Concorrem ainda para minha lembrança do Mário de Andrade viajante as notícias crescentemente alarmantes sobre a situação da saúde pública na Amazônia durante a pandemia. Manaus é a primeira cidade brasileira em colapso, com as UTIs lotadas, sem respiradores para pacientes ou equipamentos de proteção individual para os profissionais de saúde. Mas também me levam de volta à Amazônia as imagens do rio que um amigo de Manaus me tem enviado nas fotografias tomadas desde a sua janela, com olhos da quarentena.
E esse contraste violento me joga direto na reflexão de Mário de Andrade num país em que, apesar das muitas mudanças ocorridas em quase 100 anos que nos separam e aproximam da sua viagem, persistem tantas desigualdades sociais e também regionais. Desigualdades já violentamente explicitadas, com dimensões imprevisíveis, em meio à pandemia de Covid-19 em que estamos vivendo e morrendo. Será que mais uma vez, como no episódio das queimadas na Amazônia no ano passado, a catástrofe anunciada agora só ganhará a atenção que merece quando chegar ao sudeste, como a nuvem de fumaça que transformou em noite o dia 19 de agosto em São Paulo?
19 de abril de 2020
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Nota
[i] Professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Bibliografia
ANDRADE, Mario de. O turista aprendiz. Estabelecimento de texto, introdução e notas de Telê Porto Ancona Lopez. São Paulo: Duas Cidades/Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976.
_____. Táxi e crônicas no Diário Nacional. Estabelecimento de texto, introdução e notas de Telê Porto Ancona Lopez. São Paulo: Duas Cidades/Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976.
BOTELHO, André. “A viagem de Mário de Andrade à Amazônia: entre raízes e rotas”. Rev. Inst. Estud. Bras., 2013, no.57, p.15-49.
_____. & LIMA, Nísia Trindade. “Malarial Philosophy: The Modernist Amazonia of Mário de Andrade”. In: Felipe Martínez-Pinzon & Javier Uriarte. (Orgs.). Intimates frontiers: A literary geography of the Amazon. Liverpool: Liverpool University Press, 2019, pp. 150-176.
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento. A gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003.
SANTIAGO, Silviano. Ora (direis) Puxar conversa! Ensaios literários. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006.
SONTAG, Susan. A doença como metáfora. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
SUSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui. O narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das letras, 1990.
As fotografias que aparecem no post são, na ordem:
••• Andrea de Castro Melloni. Nós amazônicos. São Paulo, julho de 2019.
••• Mario de Andrade. Sem título. Arredores de Manaus, 1927. Acervo IEB-USP.
••• Marcelo Seráfico. Pôr do sol na praia da Ponta Negra, zona Oeste de Manaus, 17 de abril de 2020.
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