Mário de Andrade, suas cartas e nós: uma doença que não existe mais e a doença dos nossos dias, por Robert Wegner

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O post de hoje da série Pandemia, Cultura e Sociedade é a primeira parte de um díptico sobre o tema da doença em Mário de Andrade, um dos mais importantes e profícuos intelectuais brasileiros, cuja agudeza de suas reflexões segue a nos interpelar. Abaixo, Robert Wegner, professor da Fiocruz e da PUC-Rio, nos mostra como Mário trabalhou, especialmente em cartas, seu próprio diagnóstico médico, a neurastenia, à época tratada como uma enfermidade típica da civilização moderna. Na quarta-feira (06/05) nosso díptico será completado por André Botelho, professor da UFRJ, que irá recuperar a chamada “filosofia da maleita” e os escritos amazônicos do autor. Os dois textos procuram ainda indicar como as reflexões de Mário e a partir de Mário podem ajudar a iluminar certos aspectos da atual pandemia de COVID-19.

Com a atualização de hoje, a série Pandemia, Cultura e Sociedade ultrapassa seu primeiro mês. Inaugurada no dia 02 de abril de 2020 com o intuito de pensar publicamente, com a colaboração de especialistas, as dimensões sociais, simbólicas e históricas envolvidas na atual crise que enfrentamos, começamos com dois posts semanais, que logo se tornaram três. Desde então publicamos 13 textos exclusivos e tivemos mais de 42 mil acessos registrados. Além de ensaios e textos de comunicação científica concebidos para o formato de divulgação no blog, dedicamos dois posts à poesia e propomos abordagens mais pessoais, que associam experiência e reflexão teórica e histórica. Um de nossos textos ganhou inclusive tradução para o espanhol (com outras a caminho) e um debate virtual com a autora. Em breve teremos mais novidades, que serão anunciadas no momento oportuno.

Lembramos que a série Pandemia, Cultura e Sociedade é uma parceria do Blog da BVPS com a revista Sociologia & Antropologia (PPGSA/UFRJ). Para acompanhar as atualizações basta curtir nossa página no Facebook clicando aqui. Aproveitamos para agradecer a nossos colaboradores e leitores que têm nos acompanhado até aqui e seguir desejando boa saúde a todas e a todos!

Boa leitura!

 

 

Mário de Andrade, suas cartas e nós: uma doença que não existe mais e a doença dos nossos dias.

Por Robert Wegner[i]

 

Esses tempos de ameaça da COVID-19, em que somos levados a buscar o isolamento social, é um momento oportuno para pensar nas cartas de Mário de Andrade (1893-1945). Por meio de um veículo que pressupõe distância espacial, o escritor paulista não apenas construiu parte de sua contribuição intelectual e artística, como cultivou seus laços de amizade e modelou sua identidade, mantendo extensa correspondência com um sem número de escritores e artistas brasileiros.[ii] Como notou Ricardo Benzaquen de Araújo, Mário de Andrade fez isso de modo peculiar e – ao menos nas cartas trocadas com Carlos Drummond de Andrade – não se ateve às “regras da conveniência e do decoro” que balizam a “retórica epistolar”. Ele se pautou, antes, pela mais pura “autenticidade”, sublinhando a todo momento as “dimensões mais singulares e enfáticas da sua personalidade”. As cartas redigidas por Mário de Andrade eram como um sismógrafo a registrar as menores variações do seu espírito.[iii]

Dentre as frestas de transparência do seu self reluzem também as descrições de Mário de Andrade sobre doenças, dores físicas e mesmo pequenos procedimentos cirúrgicos a que foi submetido. Tão grande era a persistência dessas referências que o próprio Drummond veio a fazer o levantamento e o registro minucioso das passagens nas quais o amigo se referia a suas condições de saúde.[iv] A doença que Mário de Andrade descreveu de modo recorrente, não apenas nas cartas dirigidas a Drummond, mas também a Manuel Bandeira e ainda, mais especialmente, ao seu tio Pio, foi a “neurastenia”.[v]  Citando uma crise nervosa sofrida em 1913, aos quase 20 anos de idade, quando, em um acidente em uma brincadeira na escola, seu irmão mais novo, Renato, bateu a cabeça e morreu, Mário de Andrade descrevia a doença incurável que passou a lhe acompanhar, a “neurastenia aguda”, e que sempre lhe exigiu cuidados, como técnicas para combater a insônia e períodos de descanso na fazenda do tio Pio.

Descrita pela primeira vez pelo médico norte-americano George Beard (1839-1883), em um momento de intensa expansão econômica de seu país, a “neurastenia” tornou-se uma doença própria da civilização, quando a constituição nervosa do indivíduo deixava de processar todos os estímulos gerados na vida das grandes cidades. Partindo de uma concepção de pessoa anterior a Freud, o corpo era visto em termos econômicos, em um balanço de receitas e despesas e com um sistema central produtor de energia que poderia ser sobrecarregado por um excesso de funções. Em seu livro de 1881, o neurologista nova-iorquino comparou o sistema nervoso a uma máquina a vapor acionada para acender um conjunto de lâmpadas. Imaginava ele, “se um número extra de lâmpadas deve ser interposto no circuito, a potência do motor deve ser aumentada; do contrário, ou a luz das lâmpadas seria reduzida ou se apagariam”. Similarmente, o sistema nervoso do homem é “o centro de fornecimento de energia a todos os órgãos do corpo”. Assim, raciocina Beard, “quando novas funções são interpostas no circuito, como a civilização moderna está nos requerendo fazer constantemente, [pode] chegar um período em que […] a quantidade de força é insuficiente para manter todas as lâmpadas ativamente acesas.” A obra de George Beard ganhou legitimidade no meio médico e a neurastenia tornou-se um diagnóstico de doença consistente e popular, ultrapassando as fronteiras dos Estados Unidos e da medicina para se tornar uma maneira influente de explicar a sensibilidade e as emoções na modernidade. Na expressão do próprio neurologista, a neurstenia tornou-se a “filosofia do nervosimo moderno”.[vi]

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Georg Simmel foi um dos leitores dos trabalhos de George Beard e, como aponta Leopoldo Waizbort, em As aventuras de Georg Simmel, o sociólogo alemão passou a explorar o tema dos ‘nervos enfraquecidos’ e da ‘intensificação da vida nervosa” desde a segunda metade da década de 1890.[vii] Simmel trabalhou também dentro da concepção de um sistema nervoso que produz energia e da lógica de balanço entre receitas e dispêndios de energia. Contudo, enquanto Beard imaginava ou a possibilidade de um acréscimo de produção de energia por parte do sistema nervoso – por meio de hábitos higiênicos e períodos de descanso no campo – ou, por outro lado, a moderação nas atividades, Simmel introduziu uma nova variável na equação: um “órgão de proteção” proporcionado pela “reserva”, atitude necessária para o morador da cidade se proteger contra uma profusão de novos estímulos.[viii]Para manter a imagem de Beard, a racionalidade e o dinheiro, discutidas mais extensamente por Simmel em Filosofia do dinheiro (1900), funcionam como uma espécie de estabilizador que homogeneiza e amortece os estímulos. Ao tratar da atitude blasé, Simmel sugeriu que este seria um caso “em que a doença determina a sua própria forma da cura.”

Mário de Andrade tratou sua neurastenia de uma forma mais próxima dos conselhos médicos de George Beard do que das reflexões de Georg Simmel. Em carta a Manuel Bandeira de 29 de maio de 31, Mário relata como foi o bom senso de um tio que o salvou em 1913: levou-o para a fazenda em Araraquara, deixou-o lá sozinho. Quando voltou da fazenda, estava curado da sua primeira crise nervosa. Mas o diagnóstico da neurastenia o acompanhou. Mário de Andrade costumava, desde então, a passar períodos de férias na chácara de seu tio Pio, trocar sugestões de tratamento com o tio – também neurastênico -, além de seguir os conselhos de médicos que escreviam livros dirigidos a neurastênicos, como Antônio Austregésilo e o seu A Cura dos Nervosos. Ir para a fazenda para desligar as lâmpadas temporariamente, enquanto, na cidade, se expunha aos mais radicais estímulos, sem nenhum mecanismo de proteção, foi a maneira adotada pelo escritor para equilibrar a produção e o dispêndio de energia e lidar com sua neurastenia.

Mesmo nas cartas, veículo por excelência para o exercício do decoro e para guardar o distanciamento, Mário de Andrade escrevia de forma transbordante e transparente, enfatizando sempre sua singularidade e não se preservando através do recurso da reserva. Vale lembrar que, para Simmel, a carta, especialmente datilografada, era um meio pelo qual o indivíduo poderia se comunicar com o outro sem tornar explícita as múltiplas variações do seu espírito no decorrer da escrita. O caminho escolhido por Mário de Andrade era o exato oposto, no qual o interlocutor – ao menos os amigos mais próximos – não apenas tinham detalhes sobre as circunstâncias emocionais da redação da carta, como podiam, por meio dela, perceber as menores alterações de humor do seu missivista.

Hoje, a neurastenia não é mais considerada um diagnóstico médico, mas ainda parece boa para pensar nossa condição moderna, ainda mais quando se vive sob a ameaça do SARS-CoV-2 e, em termos de política pública de saúde, a mercê da insanidade do presidente. O cansaço, a insônia, a ansiedade e a irritabilidade rondam o cotidiano e fica-se a perguntar, tal como faziam os neurastênicos, onde está o problema maior, no excesso de estímulos do mundo lá fora, ou na falta de capacidade individual para lidar com tudo isso. Ao lado disso, a quarentena faz com que o isolamento espacial teime em ser um isolamento social. Nestas circunstâncias, pensar no valor que Mário de Andrade atribuía às cartas e na forma em que ousava se exprimir por meio delas é uma forma de enxergar nos veículos de comunicação à distância – hoje podemos pensar nas redes sociais e nas facilidades que a tecnologia proporciona, quando podemos ouvir a voz e ver o outro – um caminho para quebrar o isolamento social e manter as chamas das relações pessoais acesas.

Notas

[i] Professor do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Fiocruz e do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio.

[ii] Sergio Miceli. Mário de Andrade: a invenção do moderno intelectual brasileiro. In Lilia Schwarcz; André Botelho (Orgs.). Um enigma chamado Brasil: 29 intérpretes e um país. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. pp. 167-169. Sugiro a leitura de Botelho, André. De olho em Mário de Andrade: uma descoberta intelectual e sentimental do Brasil.  São Paulo: Claroenigma, 2012; Jardim, Eduardo. Eu sou trezentos: Mário de Andrade, vida e obra. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2015.

[iii] Araújo, Ricardo Benzaquen de. Um grão de sal: autenticidade, felicidade e relações de amizade na correspondência de Mário de Andrade com Carlos Drummond. In Carmen Felgueiras, Marcelo Jasmin e Marcos Veneu (Orgs.) Zigue-zague: ensaios reunidos (1977-2016). Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio; São Paulo: Editora Unifesp, 2019. p.410-412.

[iv] O levantamento de Drummond foi publicado como apêndice em Frota, Lélia Coelho (Org.).  Carlos e Mário: correspondência entre Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade: 1924-1945. Rio de Janeiro: Bem-TeVi Produções Literárias, 2002. pp. 561ss.

[v] Moraes, Marcos Antonio de (Org.). Correspondência: Mário de Andrade & Manuel Bandeira. 2.ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, USP, 2001; Pio & Mário: diálogo da vida inteira. A correspondência entre o fazendeiro Pio Lourenço Corrêa e Mário de Andrade, 1917-1945. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul; São Paulo: SESC SP, 2009.

[vi] Beard, Georg Miller. American Nervousness Its Causes and Consequences: a Supplement to Nervous Exhaustion (Neurasthenia). New York: G. P. Putnam’s Sons, 1881. [Facsimile by Forgotten Books, 2015]

[vii] Waizbort, Leopoldo. As aventuras de Georg Simmel. São Paulo: Editora 34, 2000. p. 472.

[viii] Simmel, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito (1903). Trad. Leopodo Waizbort. Mana. 11(2)  2005. p.582.

 

As imagens que ilustram o post são, na ordem:

••• Anita Malfatti. Mario de Andrade 1, 1921-1922. Óleo sobre tela, 51.00 cm x 41.00 cm. Coleção particular. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra1376/mario-de-andrade-i. Acesso em: 01 de Mai. 2020.

••• Edward Hopper. Spindley Locusts, 1936. Fotografada por Peter A. Juley & Son. Fotografia, 8cm x10cm. Acervo do Smithsonian American Art Museum. Disponível em: https://www.si.edu/object/spindley-locusts-painting-photographed-peter-juley-son:siris_jul_35154. Acesso em: 01 de Mai. 2020.

 

* Os textos publicados pelos colaboradores não refletem as posições da  BVPS.

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