Um nó na garganta e uma palavra ao vento, por Eliane Robert Moraes

No segundo post da série, a coluna MinasMundo do Blog da BVPS publica mais um texto baseado na mesa Inconfidências, que abriu a programação do projeto este ano. “Um nó na garganta e uma palavra ao vento” é uma contribuição da pesquisadora do MinasMundo Eliane Robert de Moraes (USP), que será seguida ainda por um texto de Sérgio Alcides (UFMG). Para ler o primeiro post da série, de autoria de Heloisa Murgel Starling (UFMG), clique aqui.

No post, a autora faz um depoimento, em primeira pessoa, partindo de uma memória de infância relativa à palavra “inconfidência” para se embrenhar numa pesquisa filológica e etimológica do termo com consequências históricas.

Um nó na garganta e uma palavra ao vento

Depoimento de Eliane Robert Moraes [1]

Vou me permitir aqui tocar nas bordas do nosso tema e, para tanto, começo com uma confidência em primeira pessoa, evocando algumas palavras que aprendi quando criança. Palavras que conheci em Minas Gerais, na minha infância passada em Poços de Caldas, onde se iniciou a minha escolaridade, meu aprendizado e minha paixão pelas formas de dizer o mundo. Entre essas estavam as estranhas menções a “inconfidência” e “inconfidente”.

Não sei se por estar em território mineiro  – acho que não só, pois a Inconfidência realmente mexeu com o país inteiro –, essas palavras me inquietaram desde os primeiros anos de escola, pois de alguma forma eu sentia que elas guardavam algo de misterioso,  algo que demandava decifração. Elas eram, ao mesmo tempo, palavras que se ouvia dos professores, dos pais, dos amigos dos pais, mas que a gente nunca sabia exatamente o que queriam dizer. A rigor, eu nunca soube direito e mesmo até agora, e devo agradecer o convite para participar desta mesa, que me fez mergulhar nesses significantes difíceis para perceber quanta ambiguidade há neles. Na infância, mesmo sabendo que remetiam a um fato histórico, eu ignorava o seu significado: “inconfidência” para mim era como um nome próprio que tinha vida própria e que se ligava à injustiça, a um assassinato, à morte de um homem inocente, à forca, aos algozes. Era uma palavra forte, dramática, marcante, que carregava junto muita coisa.

A primeira associação infantil que o termo me suscitou foi com a figura de Tiradentes. Inconfidente, Tiradentes: dente, dentes. Muito antes de saber o que era assonância, aliteração ou mesmo rima, essa repetição já operava magicamente dentro de mim, com uma ênfase que destacava a dramaticidade do significante. O dente, a boca, a cabeça. E aquele nó na garganta que remetia à forca, o insondável se impondo no imaginário infantil, onde gritava a cabeça morta de Tiradentes. Os dentes chamando a atenção e ativando a tensão. Tudo estava ali, tudo era estranho e ambíguo, a começar das palavras.

Mais tarde eu viria a saber que a minha intuição infantil não estava de todo equivocada, porque os inconfidentes realmente cultivaram relações potentes com a palavra, fosse pelos discursos candentes dos seus heróis letrados e cosmopolitas, fosse, mais tarde, pelos diversos relatos históricos ou literários que garantiram a sobrevivência mítica desse evento, entre os quais o extraordinário Romanceiro da Inconfidência, da Cecília Meireles.

Foi, portanto, essa invocação da infância que se impôs a mim de forma quase imperativa quando eu aceitei, sem pensar muito, o convite para participar desta mesa. Resolvi de imediato que iria me concentrar na palavra, decidida a interrogar o significante enigmático que me assombrou desde os primeiros anos de vida. Aceitei, sem realmente refletir, essa convocação, empreendendo uma aventura lexical iniciada por uma visitação intensa a alguns dicionários que, embora longe de ser exaustiva, me levou a algumas descobertas. Lancei-me de forma meio obsessiva à tarefa de investigar a palavra, no Houaiss, no Borba, no Aurélio, no Dicionário da Academia de Ciências de Lisboa, no Antenor Nascente, no Francisco Fernandes, em vários etimológicos. É o resultado disso que venho aqui partilhar com vocês. 

A primeira descoberta foi que nem todo dicionário contém as palavras “inconfidência” e “inconfidente”. Essa não é uma dupla regular. É curioso por só acontecer com os termos de prefixo negativo já que todo dicionário efetivamente tem as palavras “confidência” e “confidente”. Isso cria um intervalo, uma lacuna que se impõe aos significados, deixando-os um tanto opacos. E aí vale lembrar que a gente está lidando com uma extensa série lexical, pelo menos em português, que atravessa os verbos fiar, confiar, confidenciar e, consequentemente, o desfiar, o desconfiar. Mas não desconfidenciar, nem tampouco inconfidenciar porque esses verbos não existem!

O que eu pretendo evidenciar com isso é que há um problema na constituição daquilo que supõe o contrário da ação de confiar, de confidenciar e da própria confidência: ou seja, a sua negativa não é simples e muito menos automática. “Inconfidência” é uma palavra meio bastarda nessa família lexical, aquela presença que incomoda, que atrapalha a ordem das coisas, que perturba um pouco.

Cabe então perguntar: afinal, o que é “Inconfidência”?

Abuso de confiança, deslealdade, infidelidade, traição e, com certa frequência, perfídia. São os sentidos que nos trazem os dicionários, tanto os lusitanos quanto os brasileiros. Já “inconfidente” quer dizer indiscreto – como aparece em quase todos os dicionários –, arengueiro, boca-rota, futriqueiro, mexeriqueiro, intrigante… É interessante porque supõe uma atividade verbal rebaixada, que não tem seriedade, sendo associada a termos degradados como o mexerico, o futrico, a fofoca – enfim, a ações pouco nobres praticadas pela boca…

Além disso, cabe notar que as palavras “inconfidência” e “inconfidente” também ganham com grande regularidade o significado de revelação de segredo confiado. A ideia de revelação aparece, portanto, tanto numa quanto na outra expressão, e em ambos os casos trata-se sempre da revelação de um segredo. Mas com uma diferença fundamental: na confidência, quem confidencia revela o seu próprio segredo; e na inconfidência, o que é revelado é o segredo alheio. Desnecessário dizer que isso reforça o sentido negativo que os dicionários tendem a atribuir às duas palavras, como que a desmentir a ideia de glorificação do herói nacional que alimentava meu imaginário infantil.

Seja como for, para insistir na ambiguidade desses termos, cabe ainda a leitura de mais duas entradas de dicionário, pois elas permitem observações sobre o sentido especificamente brasileiro das duas palavras.

Comecemos por um dicionário bastante conhecido de usos do português do Brasil, o assinado por Francisco Borba, que aqui resumo: “Inconfidência. Nome feminino. Primeiro sentido: revelação de segredo confiado. Segundo sentido: a Inconfidência Mineira”, seguido de exemplos. Observe-se que, nesse caso, a Inconfidência Mineira já aparece com sentido dicionarizado, o que aplaca a carga negativa da palavra. Mas ainda há outra entrada no Borba, que é “Inconfidência Mineira”, definida como “conspiração urdida em 1789 na Capitania de Minas para proclamar a Independência e a República do Brasil”. Esse foi o único dicionário da minha pesquisa em que se associa “inconfidente” diretamente à Inconfidência Mineira, ou seja, inconfidente passa a ser figura relativa à Inconfidência Mineira. Então aqui o sentido da palavra já é totalmente mergulhado na história.

Para contrastar, vale considerar as mesmas entradas no Dicionário de Língua Portuguesa da Academia de Ciências de Lisboa. Nele, o primeiro sentido de “inconfidência” é “falta de lealdade e de fidelidade para com o soberano ou o Estado”, o segundo é “abuso de confiança”, e o terceiro, “revelação de segredo confiado”. Já “inconfidente” vai aparecer como primeiro sentido, atribuído a quem revela segredos que lhe foram confiados, sendo o segundo “aquele que é desleal, traidor, infiel” e o terceiro, “que é desleal, infiel ao soberano ou ao Estado”. Em que pese a distância histórica entre um dicionário e outro, lembro que ambos foram objetos de sucessivas edições que chegam até os dias de hoje, passando obviamente por atualizações. Daí que esses sejam significados correntes, lidos por quem visita o dicionário na atualidade.

À exemplo do que ocorre com o volume da Academia de Lisboa, diversos outros dicionários portugueses registram a inconfidência como falta de lealdade ao soberano ou ao Estado. Ora, trata-se de uma acepção que desaparece significativamente nos dicionários brasileiros, e quando reaparece já surge referida à Conjuração Mineira, sem o sentido da traição ou da deslealdade. É caso do citado Borba, que vai iluminar o sentido histórico em detrimento de qualquer outro. Enfim, o que importa aí, tanto em termos filológicos como históricos, é o fato de que no Brasil a história vai pautar o dicionário. Isso é um achado genial.

Há uma beleza aí, e ela não pode ser ignorada: a história se impõe sobre o sentido semântico convencional da palavra para modificar seu curso. A história assume um papel transformador dentro do dicionário. Quer dizer, para nós brasileiros – e para a criança que fui – inconfidência tornou-se realmente uma palavra histórica, um nome próprio mesmo. Ninguém será chamado por nós de inconfidente por ter sido um traidor. Dizendo de outro modo: os termos “inconfidência” e “inconfidente” terminam por subverter o significado original a favor do seu contrário, apagando o sentido negativo que essas palavras originalmente carregam. Por isso, não ocorrerá a ninguém hoje chamar Tiradentes de traidor; tampouco vamos chamar um delator – nem mesmo os tristes e desprezíveis “delatores premiados” – de inconfidente, porque o termo adquiriu um sentido mais positivo no país.

Pensadas dessa forma, essas palavras passam a fazer parte de um grupo lexical muito importante, feito de significantes que são capazes de dizer alguma coisa, mas também o seu contrário. Palavras que deslizam de uma ponta a outra, para sugerir que um significado sempre pode se inverter como no caso da Inconfidência Mineira. Palavras que adquirem força de talismã.

Creio que foi justamente como talismã — e quero acreditar nisso — que ainda criança eu intuí a força dos termos “inconfidência” e “inconfidente”, ouvidos na minha primeira década de vida, na virada dos anos 1950 para os 1960, numa sala de aula do Colégio Jesus Maria José, em Poços de Caldas. Foram esses significantes enigmáticos, que passam da minha pessoa ao nosso ethos coletivo, que eu tive a alegria de reencontrar ao preparar estas notas, escritas tantas décadas depois, já na vida adulta, como professora e pesquisadora, com a surpresa de que esses termos ainda preservam sua aura de mistério, de assombro, de alumbramento. E é precisamente nesse encontro da infância com a poesia, que se pode reconhecer a estranha potência da palavra.

A criança, no seu limbo sensível, sabe que as palavras são vento e que na existência delas tudo se forma e se transforma, como propõe o belíssimo poema de Cecília Meireles, o “Romance das palavras aéreas” do Romanceiro da Inconfidência, cujo título já é um poema e cuja primeira estrofe cito para terminar:

“Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!

ai, palavras, ai, palavras,

sois de vento, ides no vento,

no vento que não retorna,

e, em tão rápida existência,

tudo se forma e transforma!

Sois de vento, ides no vento,

e quedais, com sorte nova!

Ai, palavras, ai, palavras,

que estranha potência, a vossa!”

*


[1] Agradeço o convite ao André Botelho, ao Pedro Meira Monteiro, ao Maurício Hoelz e demais organizadores do evento “Inconfidências”, que me deu a oportunidade e o prazer de partilhar essa mesa do Minas Mundo com a Heloisa Starling e o Sérgio Alcides Pereira do Amaral, de quem sou entusiasta leitora.

Eliane Robert Moraes é professora de Literatura Brasileira no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH da Universidade de São Paulo (USP). Entre suas publicações, estão a Antologia da poesia erótica brasileira (2015), e uma seleção de contos eróticos brasileiros, sob o título O corpo descoberto (2018), além de uma Seleta Erótica de Mário de Andrade (2022).

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