Conjuração Mineira, por Heloisa Starling

No feriado do dia 15 de novembro, a coluna MinasMundo do Blog da BVPS publica o primeiro texto de uma série baseada na mesa Inconfidências, que abriu a programação do projeto este ano. “Conjuração Mineira” é uma contribuição da pesquisadora do MinasMundo Heloisa Murgel Starling (UFMG), que será seguida ainda de textos de Eliane Robert de Moraes (USP) e Sérgio Alcides (UFMG).

No post, a historiadora escreve sobre o que interpreta como o primeiro movimento anticolonial da América portuguesa de fôlego no campo das idéias, e o primeiro entre nós a adaptar um projeto claramente republicano.

Conjuração Mineira

por Heloisa Starling

Imaginem Vila Rica. Mês de maio, por volta de 8 horas da noite. Tudo ermo. Alguém – não se sabe se homem ou mulher – foi visto caminhando pelas vielas. Vestia capa preta comprida, um chapelão desabado sobre os olhos. Levava uma lanterna e tinha pressa. Foi à casa de Cláudio Manuel da Costa e o avisou da porta que a Conjuração tinha sido descoberta, Tiradentes estava preso, e eles corriam perigo. Na casa de Gonzaga, deixou recado com Antônia da Costa, negra forra que cuidava dos afazeres domésticos. Na urgência de informar ao tenente-coronel Domingos de Abreu Vieira sobre a prisão de Tiradentes, errou de endereço, encontrou uma porta entreaberta e entrou no vizinho. No topo da escada deparou-se com a esposa do dono da casa, percebeu o engano, praguejou baixinho e precipitou-se para a rua. Desapareceu no ar como a neblina. Nunca mais se soube dele.

O “Embuçado”, nome pelo qual o personagem ficou conhecido, percorreu Vila Rica possivelmente na noite de 17 de maio de 1789 alertando que a Conjuração tinha sido descoberta. Esse foi o primeiro movimento anticolonial da América portuguesa de fôlego no campo das idéias e o primeiro a adaptar um projeto claramente republicano. Essa Conjuração – disso às vezes nos esquecemos – antecedeu a Revolução Francesa.

Os conjurados esquadrinharam um repertório político e intelectual cosmopolita que mobilizava autores próprios da tradição republicana, com influência formadora sobre suas duas matrizes modernas, a norte-americana e a francesa. Como ocorreu, por exemplo, no caso de Montesquieu que estava na estante de pelo menos três bibliotecas decisivas para a construção do repertório dos conjurados.

Também alimentaram seu projeto político com temas característicos do Humanismo Cívico – em especial, o pensamento da primeira geração de humanistas, de Petrarca a Alberti. E naturalmente, muitos conjurados identificavam-se com o repositório originário da cultura política portuguesa – a natureza pactária de sua Monarquia, por exemplo.

E introduziram argumentos de autonomia retirados de suas próprias tradições. Como, por exemplo, o propósito de reatualizar o pacto político com a Coroa portuguesa, reavivando a mitologia em torno do auto-engrandecimento dos paulistas, durante o levante Emboaba, sob a justificativa de que haviam conquistado e ocupado a capitania para o Império. Aliás, como disse com todas as letras, Cláudio Manuel da Costa, no poema “Vila Rica”: “(…) Estas conquistas,/A quem se deverá mais que aos Paulistas?”

Mas quando foi preciso alinhavar escolhas e construir soluções para planejar o cenário de ruptura com Portugal e dar forma política a um novo tipo de governo nas Minas, eles acrescentaram a esse repertório o composto inédito de formas de pensar e de agir surgidas da Revolução Americana. Vitoriosa, a Revolução Americana encontrava-se, nos anos que antecederam a Conjuração Mineira, em pleno processo de criação institucional, buscando construir estruturas republicanas de governo capazes de expressar os princípios que os colonos haviam defendido na luta contra o Império britânico.

O entendimento do atributo da soberania foi o fermento da Conjuração mineira. Supõe a criação de uma comunidade territorial com comando interno e autonomia em relação às potencias estrangeiras, a fundação de um corpo político próprio – o Estado – e a capacidade de criar, alterar e revogar suas leis. “As Minas podiam viver independentes do governo de Portugal”, explicava entusiasmado, o alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, em 1789, utilizando um argumento que prometia muito e cheirava a pólvora: “[As Minas] eram um país, como não havia outro, que tinham todas as riquezas em si e que não precisavam doutro país para sua subsistência (…) poderiam ser uma República e conseguir a liberdade […]”

Os conjurados mineiros infundiram à palavra “liberdade”, um afeto político que expressa mais do que um propósito de poder. Em um de seus depoimentos durante os interrogatórios da Devassa, Luis de Toledo Pisa, confessou seu delito sustentado por esse afeto. Ele confirmou a adesão à Conjuração porque a participação na vida pública era algo extraordinário e, quando alguém toma parte na execução de uma ação política, abre para si uma dimensão nova e exaltante da experiência humana. “A liberdade era amável”, resumiu.

O amor pela liberdade comprometeu os conjurados com um afeto que faz exigências políticas. Ele se manifesta numa presteza de partilhar o mundo com outros homens. Foi a base para incluir, na pauta do debate político das Minas, outro princípio formulado pela matriz do republicanismo norte-americano: a positivação de direitos considerados inerentes ao indivíduo e aplicáveis a todos, exclusivamente por conta de seu status como seres humanos.

Mas o problema era muito maior. Os direitos estavam emaranhados com a escravidão. Faltou aos conjurados o pensamento antiescravocrata. Eles temiam interferir no sistema escravista por razões econômicas; mas, também por medo de que qualquer alteração nesse sistema servisse para fomentar a insurreição escrava.

Apesar disso, a Conjuração Mineira conseguiu debater sobre a escravidão sem separá-la de uma reflexão política. A escravidão era a contraface da liberdade – e, com esse argumento, Alvarenga Peixoto abriu uma brecha inesperada de discussão com Álvares Maciel. Se você declarar livres os escravizados nascidos nas Minas, dispostos a portar armas contra Portugal e em apoio à Conjuração, Alvarenga argumentou, isso não servia apenas para resolver o problema estratégico do número de homens necessários ao levante militar; serviria também para distinguir o que significa viver sob grilhões ou em um estado de liberdade – e Alvarenga apostava nisso para afastar a ameaça do potencial levante de escravos anunciado por Álvares Maciel.

As idéias da Conjuração trafegaram, pela capitania, a partir de três centros nervosos de transmissão: as Comarcas de Vila Rica, Rio das Mortes e Serro do Frio. As idéias se movimentavam e as informações se espalhavam de boca em boca e por dentro da estrutura social graças à singularidade de um ambiente urbano em que públicos distintos se cruzavam e andavam ombro a ombro por toda a parte. As idéias circularam e encontraram adesão entre os membros da elite econômica – fazendeiros, comerciantes, contratadores – além dos letrados – poetas, médicos, naturalistas, engenheiros – dos padres e cônegos, e dos militares de variada patente. Mas, circulavam também entre a faixa mais heterogênea da população e tinham o poder de erodir a lealdade de mineradores, pequenos comerciantes, músicos, artesãos, clérigos, tropeiros ou lavradores, para com a Coroa portuguesa. 

Nós não sabemos a data precisa em que a Conjuração tomou forma. Provavelmente em algum momento entre 1781 – o ano em que estudantes mineiros e cariocas, em Coimbra, criaram uma associação secreta e juraram dedicação à causa da soberania da colônia – e 1788, quando o projeto de criar uma República nas Minas passou a ser expressamente debatido em reuniões realizadas na capitania.

O gatilho que deflagrou a Conjuração combinava fatores de natureza distinta – político e administrativa, econômica e cultural –, com capacidade de impacto variada, mas capaz de atingir todas as camadas da estrutura social da capitania. Existia, de longa data, o rigor de uma política metropolitana que desconsiderava a realidade da queda da produção do ouro e descartava a criação de projetos alternativos para a exploração do potencial econômico das Minas.

E havia fatores de natureza conjuntural. O desastre político representado pela administração do governador Luís da Cunha Meneses que afastou a elite local das possibilidades lucrativas oferecidas pelo contrabando e, no lugar, instalou seus apaniguados.

O outro fator: a imposição da “Derrama” – o tributo cobrado por Lisboa no intento de completar as 100 arrobas da cota anual de ouro devida à Coroa e que incidia sobre toda a população. Num momento de recessão provocado pelo declínio da produção do ouro, Portugal insistia na imposição da “Derrama”.

Ninguém sabia ao certo como seria a cobrança, mas havia muita especulação; e era o caso de fazer as contas: se Lisboa resolvesse cobrar todas as parcelas atrasadas, a fatura poderia sair por volta de oito toneladas de ouro – em torno de 46 g. de ouro para serem pagas pelos homens livres da capitania. Já a cobrança da dívida dos contratadores subia a 5,1 toneladas de ouro. Era possível identificar sinais de um desastre iminente; o ar estava carregado de rumores e a temperatura política chegou ao ponto de ebulição.

A Conjuração teria início com um motim – marcado para ocorrer no mês de fevereiro, em Vila Rica, quando fosse imposta a Derrama. Uma vez vitoriosos, os conjurados deflagrariam a rebelião por toda a capitania. Isso incluía o anúncio de uma nova política – a declaração de independência das Minas – e a definição dos instrumentos necessários para sua implantação sob a forma da República.

Os conjurados sustentaram seu planejamento militar baseado na premissa de que estratégica e logisticamente Portugal estava em desvantagem: não seria fácil, nem barato, manter o deslocamento de tropas através do Atlântico e, em seguida, por terra, para o interior da América portuguesa. A posição estratégica das Minas – entre o litoral e o interior e entre o Rio de Janeiro e Salvador – e a proteção natural das montanhas permitiam a montagem de um sistema defensivo em profundidade que incluía duas pontas. Uma, o fechamento das “bocas” das Minas: o “Caminho Velho” e o “Caminho Novo” pelos conjurados da Comarca do Rio das Mortes; o “Caminho dos Currais do São Francisco” pelos conjurados da Comarca do Serro do Frio.

A outra, a utilização do recuo tático e da “guerra do mato”, que hoje chamamos por guerrilha, nas montanhas do Distrito Diamantino onde imperavam os garimpeiros, as quadrilhas de salteadores e os contrabandistas – para azar da Coroa, boa parte envolvida no emaranhado de relações sediciosas estabelecidas por Padre Rolim. Era um planejamento que guardava semelhança estratégica e parecia inspirar-se no êxito norte-americano na Guerra de Independência. A expectativa não era a de vencer no campo militar e expulsar as tropas portuguesas; era a de exaurir Portugal, inclusive economicamente, forçando Lisboa a negociar.

Em 1789, a Conjuração Mineira fracassou. Entre março e junho de 1789, ocorreram as delações e, a partir de então, uma parte dos conjurados foi presa. Sobrevieram as Devassas, os interrogatórios, a morte suspeita de Cláudio Manuel da Costa, o desterro na África, a prisão perpétua em Portugal para réus eclesiásticos e o enforcamento de Tiradentes.

Cabe lembrar. Conjuração é um tipo de conspiração: a disposição de depor o governante, tentar tomar a liberdade e chegar ao poder pelo caminho encurtado da ação violenta. Inconfidência é crime de lesa majestade de primeira cabeça – significa ser infiel ao soberano, traição contra a vida do rei ou de seus representantes e contra a segurança do Estado português.

Uma vez esmagada a Conjuração Mineira, sobraram as idéias e a “estranha potência das palavras”, definiu Cecília Meireles, no Romanceiro da Inconfidência. “América”, “Pátria”, “Autogoverno”, “Liberdade”, “República” firmaram-se no centro de uma linguagem do mundo público. E continuaram a ser falada, em voz alta, no Rio de Janeiro, em 1794, e em Salvador, em 1798 – as Conjurações do Rio de Janeiro e Baiana.

E então, no dia 3 de março de 1817, a República foi proclamada no Brasil – no Recife. Em 3 de maio, a República do Crato foi instalada, no Ceará. Começava o ciclo revolucionário da Independência – “A nossa outra independência”, como definiu o historiador Evaldo Cabral de Mello.

Muito obrigada.

Referências bibliográficas

AUTO de perguntas ao sargento-mor Luís Vaz de Toledo Pisa. 2ª. Inquirição – Rio, Cadeias da Relação – Acareação com o Capitão José de Resende Costa – 02-07-1791”. Autos da Devassa da Inconfidência Mineira. Brasília: Câmara dos Deputados; Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1982. v.5, p. 321.

BIGNOTTO, Newton. “Maquiavel e as conjurações”. In:_. O aprendizado da força; Maquiavel e a arte de governar. Belo Horizonte: UFMG, 2018. (mimeo.).

COSTA, Cláudio Manuel da. “Vila Rica”. In: PROENÇA FILHO, Domício (Org.). A poesia dos inconfidentes; poesia completa de Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Alvarenga Peixoto. Op. cit. Canto VII. p. 417.

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MEIRELLES, Cecília. “Romance LIII ou das palavras aéreas”. In:_. Romanceiro da Inconfidência. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.

MELLO, Evaldo Cabral de. A outra Independência; Pernambuco, 1817-1824. São Paulo: Todavia, 2022.

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ORDENAÇÕES Filipinas. Lisboa: Fundação Caloustre Gulbenkian, 1983. 3 volumes. (especialmente Livro V).

ROUANET, Sérgio Paulo. “As Minas iluminadas: a Ilustração e a Inconfidência”. In: NOVAES, Adauto (org.) Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992; STARLING, Heloisa Murgel. Ser republicano n Brasil Colônia: a história de uma tradição esquecida. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

Heloisa Murgel Starling é historiadora e cientista política. É autora de, entre outros, República e democracia: impasses do Brasil contemporâneo (2017) e Ser republicano no Brasil Colônia – a história de uma tradição esquecida (2018). A pesquisadora coordena o Projeto República, da UFMG.


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