Hospedagem Vale Quanto Pesa | Apresentação de André Botelho e Gabriel Martins da Silva

O Blog da BVPS dá início esta semana a um novo experimento intelectual e estético inspirado na categoria de “hospedagem” de Silviano Santiago, desenvolvida no livro Fisiologia da composição (2020). Na verdade, método e objeto vão se encontrar neste caso, e, esperamos, não sem tensões. Aproveitando o aniversário do segundo livro de ensaios de Silviano, Vale quanto pesa, publicado originalmente em 1982, propomos um exercício de comentário, repetição, suplementação, hospedagem dos 18 textos nele reunidos. Para contemplar a natureza proteiforme do livro, que reúne ensaios teóricos, análise de poesia, de prosa literária e de ensaios, além de poema e textos mais curtos escritos nos anos 1970 e começo da década de 1980, jovens autores e autoras “hospedarão” seus textos nos textos de Silviano Santiago. Autores e autoras de 40 anos ou menos comentam Vale quanto pesa em seus 40 anos ou mais

É uma alegria proporcionar esse encontro, ainda mais porque, como espaço de formação de editores/as, autores/as e leitores/as de comunicação pública das ciências sociais, literaturas e artes, o Blog da BVPS aposta sempre na conversa entre diferentes gerações. O projeto desta hospedagem é de autoria e curadoria de André Botelho (UFRJ) e Gabriel Martins da Silva (PUC-Rio) e ocupará as páginas do Blog da BVPS com duas postagens semanais, sempre às segundas e quartas-feiras. Para abrir os trabalhos, Botelho e Martins da Silva discutem a ética da relação no pensamento de Silviano Santiago e no experimento de hospedagem que propõem. 

Cada postagem será suplementada por um trabalho da Série Galáxias, de 2018, da artista plástica Lena Bergstein – a quem agradecemos imensamente a parceria inspirada e também suas palavras para o Blog que compartilhamos ao final do post. São fotografias e superposições que dialogam com a concepção de “suplemento” de Jacques Derrida, uma das paixões compartilhadas entre Lena e Silviano: “um excesso, uma plenitude enriquecendo outra plenitude, a culminação da presença. Ele cumula e acumula a presença”. 

Acompanhe as postagens da Hospedagem e participe desta experiência!

Boa leitura!


Hospedagem Vale quanto pesa, uma ética da relação

Por André Botelho (UFRJ) &

Gabriel Martins da Silva (PUC-RJ)

Vale quanto pesa (1982), publicado há mais de 40 anos, é o segundo livro de ensaios do escritor e crítico Silviano Santiago, vencedor do Prêmio Camões de 2022.  É também um livro organizado pelo seu autor em plenas experiências universitária e intelectual brasileiras. Nele, Silviano reúne ensaios escritos e publicados dispersamente entre a segunda metade da década de 1970 e o começo dos anos 1980. Eles revelam uma espécie de múltipla personalidade que tem caracterizado o papel de Silviano como especialista rigoroso e intelectual público: o orientador e participante ativo da vida universitária e da formação de jovens pesquisadores; mas, também, a sua presença no debate público através de jornais e suplementos culturais; isso para não falar dos intercâmbios entre o crítico e o ficcionista, claro – lembremos que o período da segunda metade da década de 1970 é justamente o de elaboração do projeto que viria a se tornar o romance Em liberdade (1981). Assim, na própria fatura de Vale quanto pesa, na composição mesma dos ensaios, podemos rastrear os caminhos de Silviano para a formulação tanto do livro como de sua própria subjetividade enquanto pensador, entrevendo os caminhos para a formação crítica geracional, individual e institucional. Reforça nosso ponto o fato de o livro terminar com uma entrevista do autor sobre o papel do crítico, tendo passado antes pela discussão sobre censura, mercado e ditadura, fenômenos que afetaram aquele papel. Talvez seja este, enfim, o denominador comum de uma coletânea que discute a reflexividade da crítica em suas relações multidimensionais, interseccionais e complexas com os produtores artísticos e culturais e com os leitores. Relações em intensas e aceleradas transformações naqueles anos.

Alguns dos ensaios reunidos em Vale quanto pesa foram escritos ainda no período de organização de seu livro anterior: Uma literatura nos trópicos (1978). Este último, publicado pela editora Perspectiva, é uma reunião de ensaios escritos entre os Estados Unidos e o Brasil, especificamente entre a experiência como docente e pesquisador em universidades norte-americanas – no seu trânsito entre Paris, onde terminava sua tese de doutorado em literatura francesa, e Buffalo, onde embarcava num dos mais altos postos acadêmicos – e a experiência como professor da primeira turma de mestrado da pós-graduação em Literatura Brasileira da PUC-Rio na primeira metade da década de 1970.

Uma literatura nos trópicos é um livro bipartido: a primeira parte discute grandes temas da crítica literária especializada e os romances ícones do século XIX brasileiro com um arsenal teórico informado pelo chamado pós-estruturalismo francês; já a segunda parte explora o caminho das micropolíticas da identidade e da sexualidade, seguindo os índices contidos nas práticas de transgressão e marginalidade na contracultura, na música, na poesia, no romance etc. (Santiago & Bittencourt & Hoelz, 2018). A estrutura aparentemente aleatória do livro, na verdade, revela o trânsito entre a universidade norte-americana, as primeiras aulas sobre literatura brasileira, o encontro com o pensamento francês e a experiência universitária brasileira, especificamente no Rio de Janeiro, com a emergência de movimentos contestatórios em plena ditadura militar. A junção dos ensaios heterogêneos forma a argamassa que garante coerência ao livro, apostando em novos objetos para a crítica literária, como a música popular, a cultura de massa, a literatura contemporânea e a poesia marginal.

Se por um lado, Vale quanto pesa, o livro de 1982, abandona o formato bipartido do anterior – já que, obviamente, trata-se de um novo projeto –, por outro, alguns dos enquadramentos teóricos e balizamentos conceituais aparecem em franca continuidade. Em primeiro lugar, a discussão sobre a escritura em Jacques Derrida, de certa maneira, atravessa o livro de ponta a ponta, traço que se estende desde pelo menos o livro de 1978 – e que poderíamos recuar um pouco mais até 1976, com a publicação de Glossário de Derrida e Carlos Drummond de Andrade, ambos os livros dialogantes com o pensamento da desconstrução. Evidentemente, o problema da diferença de corte filosófico francês só aparece na medida em que solicitado pelo próprio objeto artístico – seja ele qual for: a literatura, as artes plásticas, a própria política nacional –, de modo a suplementá-lo.

I.

Além disso, temos a “dobradinha” de “O entre-lugar do discurso latino-americano”, do livro de 1978, com “Apesar de dependente, universal”, do livro de 1982. Os dois ensaios, se lidos juntos e em sequência, fornecem uma espécie de quadro geral para o debate sobre dependência cultural no campo das artes, localizando Silviano Santiago dentro desse complexo arranjo. Era precisamente esse o clima da discussão dos anos 1970, agrupando autores como Roberto Schwarz, Antonio Candido e Haroldo de Campos, cujos esforços tentavam conferir uma resposta dos estudos literários ao problema da dependência, formulado anteriormente por Celso Furtado e o grupo ligado à Cepal. Mas há que se acentuar o lugar próprio de Silviano nesse debate que discrepa dos termos mais assentados. Ele não está sozinho neste lugar, porém. Seu diálogo com Florestan Fernandes a esse respeito é central para evidenciar como ambos já questionavam, naquele momento, a ideia de “formação” que dá sustentação ao debate sobre dependência a que ambos se opõem.

Em sua leitura ao calor da primeira edição de A revolução burguesa no Brasil (1975), Silviano Santiago apontava que analisar a revolução burguesa no Brasil implica ver as diferenças específicas no interior de um processo global e assimétrico (portanto, colonial, neocolonial ou imperialista) de imposição de um padrão societário-civilizacional. Não está em jogo nem a valorização dos modos centrais de realização do capitalismo, nem tampouco um discutível elogio das “vantagens do atraso”. O cerne da preocupação de Florestan é a estruturação das desigualdades e sua consequente naturalização na ordem social capitalista, em todas as suas latitudes.

A interpretação de uma sociedade dependente exige do sociólogo e do crítico literário que eles saibam manusear com maestria as categorias europeias até praticamente o seu esgotamento teórico e ideológico. De alguma forma, concepção política, método sociológico, de crítica e de escrita se imbricam aqui, exigindo dos autores e dos leitores e leitoras que acompanhem, na trama da análise, o conflito entre não apenas o tema (tipo Brasil vs. Europa), mas entre abordagens, entre categorias – novas, velhas, recriadas. Em suma, sugere Silviano sobre Florestan (e sobre si mesmo, em certa medida): tratando-se de interpretação “de uma sociedade dependente, o sociólogo teria de usar necessariamente certas categorias de pensamento que naturalmente mostrassem a ligação, a dependência, mas que ao mesmo tempo dessem conta de todas as forças, digamos, progressistas, que tentavam neutralizar esta dependência” (Santiago, 2018: 306-307).[1]

Aquilo que Silviano sugere sobre o livro do colega e amigo sociólogo é bastante indicativo do seu próprio programa crítico intelectual. Embora pouco lembrado pela fortuna crítica, Silviano escreveu uma das primeiras resenhas sobre A revolução burguesa no Brasil, ainda em 1977, a pedido do próprio Florestan. Os autores se conheceram pessoalmente nos anos 1970, em Nova York, apresentados por Abdias do Nascimento, quando Silviano, fazendo carreira no exterior, era então Associate Professor no Departamento de Francês da State University of New York em Buffalo; e Florestan iniciava sua estadia como visitante na University of Toronto, no Canadá, parte de seu périplo cosmopolita no exterior impingido pela sua aposentadoria compulsória em 1969.        

A afirmação sobre a necessidade de rever o modelo teórico importado, para dar conta do duplo movimento que estrutura teoricamente o livro, nomeado por Silviano pelo par de oposições dependência/independência, é precisa. Florestan Fernandes, o resenhista argumenta revelando muito dele próprio, vai trabalhar com “as categorias estruturais e semânticas de repetição e diferença. No processo de repetição, existe por um lado uma atitude de absorção e de cópia, e que redunda do ponto de vista semântico, em silêncio significativo para o sociólogo. No processo de diferença, existe transgressão a valores estabelecidos e imperialistas, e do ponto de vista semântico, significação” (Santiago, 2018: 308). No desenvolvimento de sua obra teórica e crítica, Silviano Santiago se encarregaria de dar passos decisivos nessa direção, questionando o paradigma da formação e formulando o alternativo da inserção[2], cujas raízes estão no modo ousado como enfrentou o tema uníssono da dependência nos anos 1960 e 1970.

Numa aula inaugural proferida na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em março de 2015, Silviano retoma as palavras de Hélio Oiticica no texto “Brasil diarreia” para propor uma “inserção da linguagem-Brasil em contexto universal”, movimento que se coaduna, de maneira incisiva, ao debate sobre dependência, lançando o Brasil no universal, se forçando a “[…] situar um problema que se alienaria fosse ele local […]”. As questões insuladas na periferia do mundo se tornam irrelevantes se enclausuradas no particularismo das margens, mas ganham estatuto crítico – e cosmopolita – se inseridas no debate mundial. Invertendo a ordem da dependência, como o fez Jorge Luis Borges, lembrado também por Silviano, no seu “Pierre Menard, autor del Quijote”, fazem com que o texto cosmopolita seja reescrito, repetindo-o em diferença.

O próprio Silviano Santiago, aliás, observou André Botelho (2022), lançou as bases desse programa intelectual no conceito editorial e no estudo introdutório à coleção Intérpretes do Brasil, que reuniu, em três volumes, alguns dos estudos clássicos da formação da sociedade, do Estado e da cultura brasileiros, no contexto das comemorações dos 500 anos do dito descobrimento do Brasil, em 2000. Alguns dos livros que, provoca Silviano já de saída, “temos e que envolvem, de maneira descritiva, ensaística ou ficcional, o território chamado Brasil e o povo chamado brasileiro, sempre serviram a nós de farol (e não de espelho, como quer uma teoria mimética apegada à relação estreita entre realidade e discurso)”. Mostra o autor como em diferentes interpretações recolocam-se em questão “identidade”, “hierarquia” e “liderança” na sociedade que se veio formando no contexto do império colonial português na América, e como a palavra escrita sempre constituiu um mecanismo de abordagem dos problemas e de estabelecimento dos valores sociais, políticos, econômicos e estéticos da nova terra e da sua gente. Assim, se forma uma tradição intelectual entre a metrópole e a colônia, não raro, porém, respondendo “às próprias perguntas que colocam, umas atrás das outras, em termos de violentas afirmações europeocêntricas”.

II.

Se Vale quanto pesa ainda ressoa, de alguma forma, o período formativo dos anos 1960-1970 de Silviano e suplementa a preocupação central de Uma literatura nos trópicos sobre o problema da mimese em contextos coloniais e da assimetria entre diferentes literaturas, eles representam juntos, com continuidades e descontinuidades, marcos decisivos na institucionalização dos estudos de literatura comparada no Brasil e na promoção de novos objetos e sujeitos literários. Isso pode ser verificado tanto nos estudos com objetos mais “tradicionais”, isto é, sobre grandes autores brasileiros do século XIX, quanto nos textos mais ousados, de corte ensaístico, que buscam, justamente, na novidade de seus objetos, a verve do contemporâneo. O título do livro, ao trazer o produto emblemático da propaganda da época, o desodorante Vale quanto pesa, não deixava dúvidas sobre a direção do pensamento do autor; quer dizer, garantir, a partir de suas análises, estatuto crítico aos produtos culturais de massa, aos objetos artísticos que ganharam notoriedade junto ao grande público, e explorar novos temas para a literatura comparada. Revela-se, assim, o intuito de fugir, mesmo que momentânea e sorrateiramente, das obras simplesmente literárias, já consagradas pela crítica, indo em direção a outros campos.

O subtítulo do livro também é uma chave importante: “Ensaios sobre questões político-culturais”. Já argumentamos que as realizações de crítica literária de Silviano são simultaneamente realizações de crítica estética (da ordem da concepção e fatura das obras), de crítica da cultura (do lugar dessas obras num sistema cognitivo ou simbólico mais amplo) e também política (pois lhe interessa o sentido assumido pelas obras na tradição literária, para os seus leitores e noutros contextos), e alcançam em cheio o debate público na sociedade contemporânea (mesmo quando escreve sobre o passado) (cf. Botelho, 2022). Esse sistema de comunicação reflexiva entre literatura, cultura e política, que nunca, porém, reduz um termo ao outro, vem configurando a crítica de Silviano e ganha em Vale quanto pesa aportes cruciais. Diríamos mesmo, que a própria noção tradicional de literatura com a qual a crítica brasileira ainda vinha trabalhando rotineiramente é sutil, mas decisivamente abalada na coletânea de 1982.

Pense-se, para começar, no sentido de numa coletânea de ensaios que se inicia com um poema rasurado; ou da afirmação que abre o ensaio que dá título à coletânea: “Nesta altura do século XX, seria imprudente começar a escrever sobre ficção brasileira contemporânea sem se levar em consideração o fato de que é veiculada através de um objeto a que chamamos livro”. Ou ainda, pense-se na poesia de João Cabral de Mello Neto (“As incertezas do sim”) figurando ao lado da de Adão Ventura (“A cor da pele”), alocando dois poetas, um consagrado e outro em franca ascensão, na mesma chave qualitativa, de modo a conferir uma análise justa ao primeiro e garantir legitimidade ao segundo. Além disso, o livro traz a primeira interpretação da linguagem literária de Lima Barreto que mostra a experiência do autor preto e suburbano tomando forma. Lima e Adão, as cores afetando e alterando a noção estética de poesia e literatura, dando palco ao debate racial, campo fechadíssimo à época e ainda hoje anacronicamente ilhado em escolas e instituições literárias que perderam ao menos dois bondes da história: o da política do reconhecimento e o da ampliação da noção do literário que ela pode – e deve – acarretar. Vale quanto pesa: o título já revela o programa crítico. Os conflitos aí refletidos são, em grande medida, balizadores da crítica literária e da cultura que modelaram o nosso campo tal como hoje o conhecemos e contra o qual nos batemos.   

Para celebrar Vale quanto pesa em seus quarenta e poucos anos ou mais, convidamos autores e autoras com quarenta e poucos anos ou menos para suplementarem ou hospedarem suas leituras dos/nos textos de Silviano Santiago. Cada um dos textos reunidos na coletânea de 1982 será comentado uma ou mais vezes ao longo das próximas semanas em postagens neste Blog da BVPS. Suplementação e hospedagem são categorias centrais na economia interna da obra de Silviano, que não para de conhecer desdobramentos e inovações. Mas, de alguma forma, remetem ao gesto, sem abusar de triunfalismo, “inaugural” de seu pensamento: a recusa da relação simples entre original e cópia. Em Fisiologia da composição (2020), livro escrito e publicado durante a pandemia da COVID-19 (Silva, 2022), uma reflexão densa sobre a importância do corpo na relação homológica entre “grafia-de-vida” e “composição literária”, Silviano toma o verbo hospedar de textos variados: da ficção machadiana de Esaú e Jacó a Da hospitalidade, de Jacques Derrida, ou de João Cabral de Mello Neto ao ensaio homônimo de Edgar Allan Poe. Hospedando-se naqueles e noutros textos, Silviano acaba por realizar uma espécie de autopoiese em relação ao percurso da sua obra realizada até o momento, projetando-a contra novos limites e ampliando o seu campo próprio. Afinal, é pela perspectiva do corpo que vai rever o processo de composição das Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, mas também do seu próprio romance Em liberdade – textos“gêmeos, embora não sejam univitelinos” (Santiago, 2020: 18); das Memórias póstumas de Brás Cubas e de Esaú e Jacó, mas também do seu próprio romance Machado. Como observou Diana Klinger (2021) em resenha do livro: “O eu que narra está sempre a ser desafiado pela outridade que ao mesmo tempo acolhe e é acolhida por ele […]. Acolhendo o outro-estrangeiro em sua narrativa, o autor Silviano Santiago abre mão da sua ‘propriedade’ (de seu estilo, por exemplo) se engajando numa relação de generosidade mútua com o texto que o hospeda”.

É esta a proposta de hospedagem nos textos de Vale quanto pesa feita aos/às nossos/as convidados/as. Um exercício de hospedagem implica uma ética da relação, que se contrapõe a outras de caráter sintético e substancialista. “Hospedagem” vem modificar esse espaço complexo, entre a assimilação a um modelo original e a necessidade constante e incansável (e quem sabe inalcançável) de reescritura (Botelho & Hoelz & Bittencourt, 2022). Acrescenta, adensa e afeta o que sabíamos até aqui da obra de Silviano. Repetição com diferença ela mesma, “hospedagem” permitirá a irritação mútua entre essas categorias ao mesmo tempo que exigirá repensar a autodiferenciação da obra de Silviano em relação ao seu “ambiente” (a estética – ação/reflexão) e a modificação que acarreta aos ambientes como um todo, uma vez que poderá gerar ressonâncias – em particular sobre a questão da diferença cultural na sociedade brasileira.

Vale quanto pesa soma-se de modo próprio – onde “próprio” significa particularidades e até mesmo algumas idiossincrasias de época que estão sendo revistas nesta Hospedagem – ao movimento mais característico do crítico Silviano Santiago: no lugar da alternativa dualidade ou síntese, o que interessa a Silviano são os deslocamentos, os tensionamentos, as desestabilizações das visões polarizadas e estáveis de literatura, de identidade, de sociedade. Foi o enfrentamento corajoso do debate sobre dependência do ponto de vista próprio da literatura, do qual necessariamente decorreu todo um programa de abertura e problematização do próprio “literário”, que permitiu a Silviano criticar consistentemente o pensamento dualístico dominante, no Brasil e fora (Hoelz, 2022), do tipo “ou este ou aquele”.

Essa dualidade é justamente o que bell hooks (1984: 29), por exemplo, viria a defender ser “o componente ideológico central de todos os sistemas de dominação na sociedade ocidental”. No caso de Silviano Santiago, a dualidade é rejeitada pela condição epistemológica própria que confere ao escritor e ao intelectual em contextos pós-coloniais, mas que acaba por desvendar a trama do conjunto de que eles fazem parte: um “entre-lugar” destinado à reescritura – que praticamos, mais uma vez, nesta hospedagem. Este e aquele.


Notas

[1] Sobre as relações entre Silviano Santiago e Florestan Fernandes, ver Botelho & Brasil Jr. (2020).

[2] Para uma melhor distinção entre “formação” e “inserção” ver : “A anatomia da formação” (Santiago, 2014) e “Formação e inserção” (Santiago, 2012).

Referências

BOTELHO, André & BRASIL JR., Antonio. (2020). Cosmopolitismo plebeu: a sociologia de Florestan Fernandes. Blog BVPS, 22 jul. 2020. Disponível em https://blogbvps.com/2020/07/22/cosmopolitismo-plebeu-a-sociologia-de-florestan-fernandes-por-andre-botelho-e-antonio-brasil-jr/

BOTELHO, André. (2022). Dois estudos para retrato inacabado de Silviano Santiago. In: BOTELHO, André & HOELZ, Maurício & BITTENCOURT, Andre. A sociedade dos textos. Belo Horizonte: Relicário, p. 201-216.

BOTELHO, André & HOELZ, Maurício & BITTENCOURT, Andre. (2022). A sociedade dos textos. Belo Horizonte: Relicário.

HOELZ, Maurício. (2022). Cosmopolítica do entre-lugar. In: BOTELHO, André & HOELZ, Maurício & BITTENCOURT, Andre. A sociedade dos textos. Belo Horizonte: Relicário, p. 217-237.

HOOKS, Bell. (1984). From margin to center. Boston: South End Press.

KLINGER, Diana. (2021). Uma genealogia da generosidade. Blog BVPS, 17 fev. 2021. Disponível em: https://blogbvps.wordpress.com/2021/02/17/uma-genealogia-da-generosidade-por-diana-klinger/

SANTIAGO, Santiago. (2018). A Revolução Burguesa. Sociologia & Antropologia, v. 8, p. 299-312.

SANTIAGO, Silviano. (2014). A anatomia da formação. Folha de São Paulo. Caderno Ilustríssima, 7 set 2014.

SANTIAGO, Silviano. (2020). Fisiologia da composição. Recife: Cepe.

SANTIAGO, Silviano. (2012). Formação e inserção. O Estado de São Paulo. 26 Maio 2012.

SANTIAGO, Silviano & BITTENCOURT, Andre & HOELZ, Maurício. (2018). Ruptura e tradição: Uma literatura nos trópicos 40 anos. Entrevista concedida a Andre Bittencourt e Maurício Hoelz. Blog BVPS, 09 set. 2018.

SILVA, Gabriel Martins da. (2022). Silviano Santiago confinado. Alter | Revista de filosofia e cultura da PUC-Rio, v. 16, n. 1, p. 140-144.


Série Galáxias

Por Lena Bergstein

Galáxias é o título de uma série de trabalhos lúdicos, inquietos, baseados em investigação.

Quando olhamos o firmamento à noite, as estrelas brilham circundadas de uma densa treva. A astrofísica contemporânea explica que as galáxias mais remotas se distanciam de nós a uma velocidade tão grande que sua luz não consegue nos alcançar. O que percebemos então como o escuro do céu é essa luz que viaja até nós, sem poder nos alcançar, pois as galáxias das quais provêm se distanciam numa velocidade superior à velocidade da luz.

Perceber na escuridão do tempo presente uma luz que procura nos alcançar e ao mesmo tempo não pode fazê-lo, isso significa ser contemporâneo, o que é, antes de tudo, uma questão de coragem. Ser capaz de olhar na noite de nosso tempo e de perceber uma luz nesse escuro, que dirigida a nós, de nós se distancia infinitamente. Os trabalhos que tento criar na série Galáxias interagem entre si, organizando-se a partir de sistemas múltiplos de trocas, desenhos de um trabalho se fragmentando e espraiando-se em outros, como sedimentos que se acumulam e se dissipam criando efeitos de maré, permutação, poeira de estrelas, quasares, criando todos eles um catálogo de objetos difusos.

A imagem que abre o post é de autoria de Lena Bergstein, Série Galáxias, 2018. Fotografia e superposições


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