Série Nordeste | Recôncavo: laboratório de uma experiência humana (1958), de Luiz de Aguiar Costa Pinto, por Antonio Brasil Jr.

Em nova atualização da Série Nordeste BVPS, compartilhamos texto de Antonio Brasil Jr. (UFRJ) sobre o sociólogo baiano Luiz de Aguiar Costa Pinto. O autor sugere que o conceito de “marginalidade estrutural” é a principal contribuição teórica de Costa Pinto para a compreensão sociológica dos processos de mudança social, tema central em sua obra. Discutindo mais diretamente a pesquisa realizada por Costa Pinto no Recôncavo baiano no final da década de 1950, Brasil Jr. argumenta que esse estudo vai além de uma abordagem localista, constituindo-se como uma reflexão teoricamente embasada sobre a complexidade inerente a qualquer processo de mudança social, sempre assíncrono e combinando diferentes temporalidades.

Série Nordeste BVPS é uma iniciativa que une a vocação do Blog da BVPS – formação de editores/as, autores/as e leitores/as de comunicação pública das ciências sociais, literaturas e artes – aos propósitos pedagógicos da disciplina Sociologia Política do Nordeste, que está sendo ministrada na Graduação em Ciências Sociais do IFCS/UFRJ neste primeiro semestre de 2023. 

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Boa leitura!


Recôncavo: laboratório de uma experiência humana (1958), de Luiz de Aguiar Costa Pinto

Por Antonio Brasil Jr. (UFRJ)

Eu sou o vento que lança a areia do Saara
Sobre os automóveis de Roma
(trecho da letra da canção Reconvexo, de Caetano Veloso)

Brevíssima síntese biográfica[1]

Luiz de Aguiar Costa Pinto nasceu em 1920 em Salvador, capital do Estado da Bahia, em família tradicional e de prestígio, herdeira de engenhos na região do Recôncavo e com ligações no mundo político. Seu pai fora professor da Faculdade de Medicina da Bahia e, graças aos contatos herdados, Costa Pinto se aproximou de alguns intelectuais baianos, como Afrânio Peixoto, Arthur Ramos e Anísio Teixeira. Chegou a cursar dois anos de medicina, em Salvador, mas largou o curso quando da morte do pai. Mudou-se para o Rio de Janeiro junto com a família, com a intenção de cursar direito. Porém, com a criação da Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi), integrada à recém-criada Universidade do Brasil (UB), realiza os exames vestibulares para a primeira turma de ciências sociais. Em razão de sua participação com grupos estudantis de esquerda, como a Juventude Comunista, de oposição ao Estado Novo, ficou preso durante grande parte do primeiro ano do curso.

A despeito desta perseguição política, conseguiu estabelecer relações próximas com o catedrático Jacques Lambert, chegando a publicar, em 1944, um livro em parceria com o sociólogo francês, intitulado Problèmes demographiques contemporains, além de se tornar seu assistente, ao lado de Hildebrando Leal. Em 1947, defendeu a tese de livre-docência intitulada O ensino da sociologia na escola secundária.

A proximidade de Costa Pinto com Jacques Lambert não lhe franqueou o direito de competir pelo controle da cátedra quando de seu retorno à França, em 1945. A vaga foi ocupada por Hildebrando Leal, intelectual católico, que assumiu interinamente a Cátedra de Sociologia na FNFi e na qual permaneceu até sua aposentadoria em 1965. Costa Pinto contornou criativamente este bloqueio ao controle da Cátedra de Sociologia através da multiplicação de suas vinculações a instituições e projetos de pesquisa, bem como da bem-sucedida internacionalização de sua circulação acadêmica.

Além de participar do grupo de experts que redigiu a Declaração das Raças da Unesco, em 1950, Costa Pinto foi personagem crucial para viabilizar o patrocínio daquela instituição nas pesquisas sobre relações raciais no Brasil – daí surgiu o livro, feito em colaboração com Edson Carneiro, sobre as relações raciais na antiga capital federal, intitulado O negro no Rio de Janeiro: relações de raças numa sociedade em mudança. Membro do comitê executivo da International Sociological Association (ISA), chegou ao cargo de vice-presidente da instituição entre 1956 e 1959, integrando também o comitê sobre Estratificação social e Mobilidade, coordenado por David Glass. Conseguiu em 1958 a titularidade da Cátedra de Princípios de Sociologia Aplicados à Economia na Faculdade Nacional de Ciências Econômicas da UB – uma vez que a Cátedra na FNFi estava ocupada por Leal. Um ano antes, criou e se tornou o primeiro diretor do Centro Latino-americano de Pesquisas em Ciências Sociais (CLAPCS), com suporte da Unesco. Em 1959, organizou o Seminário Internacional Resistências à mudança, que reuniu vários sociólogos brasileiros e estrangeiros na sede do CLAPCS, no Rio de Janeiro.

Exilando-se na América do Norte depois do golpe militar de 1964, Costa Pinto, após atuar como professor visitante em diferentes instituições, fixa-se como professor permanente em 1976 na Waterloo University até a sua aposentadoria, em 1985. Torna-se professor emérito do departamento de sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1989, em cerimônia celebrada em ocasião dos 50 anos do curso de ciências sociais da instituição. Falece em 2002.

1. O Recôncavo baiano e o conceito de “marginalidade estrutural”

O conceito de “marginalidade estrutural” é a principal contribuição teórica do autor ao entendimento sociológico das mudanças sociais, tema que atravessa do início ao fim a sua obra. Embora Costa Pinto tenha refletido sobre um conjunto variado de problemas empíricos e de questões metodológicas ao longo de sua trajetória, o eixo de gravitação de sua obra sempre foi a pergunta sobre os sentidos (plurais, ambíguos, ambivalentes ou mesmo contraditórios) assumidos pelos processos de mudança social.

Já em 1947, em artigo chamado justamente “Sociologia e mudança social”, publicado na revista Sociologia, Costa Pinto articula a primeira tentativa de definição do conceito. Grosso modo, através da noção de “marginalidade estrutural” o autor procurou mostrar que, nas sociedades em desenvolvimento, não seriam apenas os elementos “tradicionais” que estariam em crise por conta das mudanças sociais em curso, mas também o próprio padrão “moderno” que se queria impor, porquanto incapaz de redesenhar a totalidade da estrutura social. Ele rejeitava a noção de “sociedades duais”, comum em seu contexto intelectual, porque não se tratava da passagem automática de um tipo de sociedade a outro ou sua mera coexistência lado a lado. Não seriam duas sociedades, mas o encontro entre processos assíncronos, descompassados, cujas reverberações criavam no conjunto das relações tensões, conflitos e problemas inéditos. Dito de modo sintético, era a combinação de arcaísmo e modernidade, cuja interação criava problemas novos e imprevistos – o que desafiava, é lógico, a própria sociologia dominante de seu tempo, da qual Costa Pinto sempre foi crítico.

Vejamos como ele justifica o emprego dessa noção numa nota de rodapé do artigo “Desenvolvimento: seus processos e obstáculos”, de 1962, republicado logo depois em Sociologia e desenvolvimento (1963):

Quando em 1947 propusemos o conceito de marginalidade estrutural para explicar os problemas de transição da sociedade brasileira (…) queríamos, em primeiro lugar, nos referir ao fato da estrutura social apresentar característicos de dois padrões – o arcaico e o novo, o tradicional e o moderno –, e, em segundo lugar, ao fato desses dois padrões, e não somente o arcaico, estarem ambos em crise. A nossa hipótese visava expressamente ampliar e completar o conceito já exposto por Boeke (…) e Furnivall (…), que cunharam a expressão “sociedade dual” ou “dualista” para indicar a mesma situação transitória, deixando, entretanto, a impressão de que o padrão arcaico está em crise e no novo padrão estariam todas as soluções. A dualidade consistiria, então, na coexistência de dois padrões como que hierarquizados numa escala de arcaísmo e progresso; enquanto o nosso conceito de marginalidade estrutural procura capitalizar a noção básica que se refere à presença de dois padrões – acentuando, entretanto, o fato de ambos estarem em crise. Isto, que pode parecer pura nuança, tem implicações metodológicas e práticas extremamente importantes (…) (Costa Pinto, 1963: 96).

Como alerta o próprio Costa Pinto, a introdução do termo “marginalidade estrutural” está longe de ser uma simples nuança terminológica: ele chama atenção, contra as visões mais lineares, para o fato de que o padrão “moderno”, nas situações de transição rápida, não se generaliza para o conjunto do tecido social, coexistindo e se recompondo em muitos âmbitos – e de maneira muitas vezes ambígua – com o padrão “tradicional”. Dito de outro modo, como nem os traços “tradicionais” nem as características “modernas” conseguem impor os seus dinamismos de maneira mutuamente exclusiva, o próprio sentido geral da mudança social seria aberto e contingente.

Figura 1: Os municípios do Recôncavo. Retirado de: A PETROBRAS e a gestão do território no Recôncavo Baiano / Cristóvão Brito. Salvador: EDUFBA, 2008: 39.

Nas várias pesquisas que desenvolveu na década de 1950, Costa Pinto articulou o conceito de “marginalidade estrutural” como forma de garantir inteligibilidade sociológica aos processos de mudança. O uso deste conceito é perceptível tanto na já citada pesquisa sobre o negro no Rio de Janeiro, realizada no âmbito do projeto Unesco, quanto em sua investigação sobre o Recôncavo baiano, fruto de uma cooperação entre o Estado da Bahia e a Universidade de Columbia.

Os resultados desta última pesquisa foram divulgados em Recôncavo: laboratório de uma experiência humana (1958), primeira publicação do CLAPCS, além de ter sido a tese que Costa Pinto apresentou para a Cátedra na Faculdade de Ciências Econômicas da UB. Segundo o argumento do livro, a complexidade das relações sociais e das formas de trabalho na região, em transformação acelerada graças à expansão de atividades econômicas modernas, como a exploração de petróleo pela Petrobrás, desautorizaria a visão dualista exposta por Jacques Lambert em Le Brésil (1953) – traduzida ao português como Os dois Brasis (1959) –, posto que inovações capitalistas e formas de produção de origem colonial não estariam apartadas umas das outras, e sim “adjacentes, vivendo numa mesma pequena área geográfica, contradizendo-se reciprocamente”, sem que pudessem “se impor como forma predominante de estrutura e de estilo de vida social” (Costa Pinto, 1958: 49).

 Neste caso, faria mais sentido, em vez de dualidade, empregar o termo “contraponto” – que ele retira, de modo relativamente livre, da obra do cubano Fernando Ortiz – a fim de exprimir a “dramática dialética” que “decorre na zona do açúcar e do petróleo” (Costa Pinto, 1958: 66), colocando lado a lado uma atividade que remonta aos inícios da colonização e a empresa de vanguarda do desenvolvimento industrial. A região do Recôncavo seria, portanto, heurística para análise da mudança social, pois a “coexistência interdependente, dinâmica e complexa de tipos sociais distintos” (Costa Pinto, 1958: 22), possibilitaria o trânsito, “com facilidade e com frequência”, “do primitivo ao moderno”, do “pré-industrial ao supercapitalista” (Costa Pinto, 1958: 26), permitindo observar com grande nitidez o caráter assincrônico existente em todo processo de transição social. E, indo além deste ponto, a presença organizada da intervenção do Estado na economia, com a instalação das refinarias da Petrobrás, tornaria a região propícia para observar os efeitos da “mudança social provocada”, cujos efeitos, em vez de um maior equilíbrio, poderia levar ao agravamento das assincronias entre as diferentes partes da sociedade em mudança.

À luz do conceito de “marginalidade estrutural”, proposto por Costa Pinto, nada garantiria de antemão o sucesso dos planos de desenvolvimento. Nos termos do autor:

[…] é fácil compreender que as contradições e assimetrias que resultam dessa diferença de ritmo de transformação tornam-se ainda mais agudas e profundas quando intervém no processo uma ação consciente e deliberada no sentido da aceleração do ritmo de mudança do regime econômico. Este é o caso das sociedades de economia menos desenvolvida, em que a promoção da transformação se faz intencional e racional, como meio de suprir, pelo planejamento do desenvolvimento econômico, os índices de atraso, que se procura superar a curto prazo (Costa Pinto, 1958: 143-144).

No esquema analítico disposto no estudo sobre o Recôncavo, Costa Pinto defende a importância de se compreender o processo de mudança sem minimizar suas contingências históricas, distinguindo, para tal, as condições sociais do desenvolvimento, por um lado, e suas implicações sociais, por outro. Em relação às condições, trata-se “de analisar os padrões e as formas econômicas e sociais pré-existentes”; afinal, “é nesse padrão tradicional que se vai encontrar a matéria-prima social e histórica” com a qual “se vai moldar um novo padrão” (Costa Pinto, 1958: 146). Já no que se refere às implicações do desenvolvimento, o fundamental seria analisar, em perspectiva de conjunto, “a ação moldadora que ele exerce no sentido de criar um padrão de economia e de sociedade” (Costa Pinto, 1958: 147). Dito de outra maneira, o entendimento sociológico da mudança não pode desconsiderar o peso explicativo da história, uma vez que o “novo” só surgiria a partir das transformações do “velho” – as novas instituições, os novos valores, os novos estilos de vida saem sempre alterados ao interagirem com a matéria histórica.

2. O Recôncavo como “laboratório de uma experiência humana”

No segundo capítulo do livro, “O Recôncavo como estrutura social em transformação”, Costa Pinto procura encarnar, em personagens, grupos, situações, estruturas e processos sociais concretos, como a “marginalidade estrutural” opera no cotidiano das relações em mudança. O caso do Recôncavo, apesar de suas especificidades locais, seria heurístico de um processo mais geral de transição, convertendo-se em uma espécie de “laboratório de uma experiência humana”, como está no subtítulo do livro.

O capítulo começa comentando um artigo que havia sido publicado em um suplemento dominical de um jornal carioca e que dizia que a saída para os problemas de desenvolvimento da região do Recôncavo seria “um plano e um milhão de europeus”. O plano consistiria em direcionar de forma planejada os investimentos na região, e os europeus substituiriam a supostamente pouco produtiva mão de obra local. Esta proposta, acusa Costa Pinto, além de simplista e atrelada a uma ideologia típica das classes dominantes, desconsideraria que a maior ou menor produtividade do trabalho não se explicaria por uma variável isolada, mas por toda uma configuração social dinâmica nas quais se inscrevem as relações de trabalho.

O trabalhador “rústico” da região – este é o termo empregado pelo autor – estaria diante de uma verdadeira encruzilhada histórica: de um lado, socializado no mundo forjado pelo secular patriarcalismo rural da produção açucareira, que se encontrava em decadência; de outro, diante de novas empresas modernas, com outros modos de se organizar as relações de trabalho, que ainda não teriam força suficiente para se generalizar como forma social dominante. Esta coexistência de modos de vida tão distintos – um que remontava à mais “tradicional” plantation de origem colonial e outro que se ligava às inovações tidas como típicas do mundo “moderno” – em uma mesma região marcaria o drama da “marginalidade estrutural”, isto é, de um processo de modernização que força a interação entre passado e presente, redefinindo-os mutuamente em sua acomodação recíproca.

Isso explicaria, por exemplo, porque os donos de engenhos de açúcar da região atualizariam um sistema de expectativas em que o trabalhador não era valorizado por suas competências profissionais ou por sua produtividade, e sim por sua obediência e lealdade. Em um sistema de dependências pessoais, no qual a existência do trabalhador gravitava quase que exclusivamente em torno dos favores dos proprietários – como a moradia, o uso da terra, o acesso ao mercado etc. –, não havia espaço para relações codificadas em noções como direitos e igualdade. Além disso, a degradação das condições de trabalho, baseadas na exploração física e na baixíssima especialização, impossibilitava qualquer percepção de que o trabalho poderia ser um instrumento de melhoria de vida ou de mobilidade social ascendente. Citando um conceito do sociólogo Wilbert Moore, Costa Pinto assinala que a percepção, por parte do trabalhador, de que não haveria alternativas – “the lack of knowledge of alternatives” – àquele tipo de assujeitamento a condições degradantes de trabalho ajudaria a explicar seu padrão típico de comportamento. Portanto, registra o autor, qualquer crítica ao trabalhador “rústico” do Recôncavo deveria levar imediatamente a uma crítica generalizada de todo o sistema de relações de trabalho dominantes na região. As acusações de “preguiça” ou de desinteresse em mudar de vida, ao focalizarem apenas no trabalhador – de modo elitista e racista, cumpre ressaltar –, perdem de vista que a baixa produtividade se inscreve em uma configuração social mais ampla, com níveis alarmantes de desigualdade e de exploração.

Esse universo social decadente, mas que não desaparecia – antes, se reacomodava com a expansão capitalista –, convivia cada vez mais intimamente com a expansão dos setores modernos no Recôncavo, capitaneados sobretudo pelas modernas plantas industriais de exploração petrolífera. Com isso, sugere o autor, camadas sociais emergentes, como uma pequena burguesia “white collar”, começavam a despontar na região. A maior burocratização das relações de trabalho nas empresas forçava a aparição de novos tipos profissionais, em um processo de relativa democratização da estrutura social. Outros canais de mobilidade social ascendente surgiam também graças à expansão da rede de transportes, que conectavam de modo mais direto o litoral ao interior e ao sertão, particularmente pelo aumento da frota de veículos terrestres, como os caminhões. Costa Pinto mostra como pessoas de origens modestas, não ligadas às famílias de proprietários – e muitas vezes de outras regiões –, conseguiram enriquecer no ramo do transporte. Alguns destes procuraram diversificar o capital investindo na produção de cachaça, os chamados “alambiqueiros”, fazendo emergir uma nova burguesia rural, enriquecida, porém com regime de socialização distinto ao dos setores mais tradicionais. Seja como for, o autor assinala um processo de diferenciação social crescente na região do Recôncavo.

Por fim, o autor discute ainda uma nova categoria social com peso na região, o “catingueiro”, trabalhador migrante e sazonal que viria do alto sertão para os períodos de colheita nos canaviais. O “catingueiro” era a opção preferida dos fazendeiros para lidar com a frequente escassez de mão de obra local, uma vez que sua remuneração era menor em comparação com a do trabalhador fixo, e não traria os custos da “proteção” e da “prestação de favores” exigida pelo patriarcalismo rural. Em tempos de avanço da discussão sobre direitos do trabalho, incluindo os do trabalhador rural, a classe proprietária claramente procurava se eximir tanto dos custos das reciprocidades (assimétricas) das obrigações “tradicionais”, quanto do reconhecimento dos direitos e das garantias “modernas” que deveriam ser garantidas aos trabalhadores. Eis um nítido exemplo de como uma situação de “marginalidade estrutural”, em que passado e presente coexistem de modo ambíguo e perverso, poderia conspirar para uma reiteração da exploração brutal da mão de obra em meio à modernização da região.

* * *

A escolha do Recôncavo baiano por Costa Pinto não foi fortuita. Ele procurou justamente selecionar uma região na qual a interação entre as estruturas tidas como mais “arcaicas” – o latifúndio açucareiro de origem colonial e alicerçado historicamente na escravidão – e mais “modernas” – como as usinas da Petrobrás – fosse a mais intensa possível, gerando fenômenos sociais novos e uma complexidade que escapava às teorias sociológicas vigentes. O conceito de “marginalidade estrutural”, como pretendemos esmiuçar aqui, procurava conferir inteligibilidade aos processos de mudança deste tipo, tornando a paisagem social do Recôncavo significativa de uma problemática muito mais geral. Em suma, longe de mera curiosidade localista, o estudo de Costa Pinto sobre a região é uma reflexão teoricamente orientada sobre a complexidade de todo e qualquer processo de mudança, sempre assíncrono, polimórfico e combinando diferentes temporalidades.


Nota

[1] As seções 1 e 2 deste texto se constroem de modo relativamente livre a partir de dois textos previamente publicados: Antonio Brasil Jr. (2013). A reinvenção da sociologia da modernização: Luiz Costa Pinto e Florestan Fernandes (1950-1970). Trabalho, Educação e Saúde, v. 11, n. 1 pp. 229-249; e Antonio Brasil Jr. (2017). La sociología en Río de Janeiro (1930-1970): un debate sobre Estado, democracia y desarrollo. Sociológica (México), v. 32, n. 90, pp. 69-107.

Referências

COSTA PINTO, Luiz A. (1958). Recôncavo: laboratório de uma experiência humana. Rio de Janeiro: CLAPCS.

COSTA PINTO, Luiz A. (1963). Sociologia e desenvolvimento: temas e problemas de nosso tempo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Sugestões de leitura

BOTELHO, André. (2009). Passagens para o Estado-nação: a tese de Costa Pinto. Lua Nova, São Paulo, n. 77, pp. 147-177.

BRINGEL, Breno et al. (2015). Notas sobre o CLAPCS na ‘era Costa Pinto’ (1957-1961): construção institucional, circulação intelectual e pesquisas sobre América Latina no Brasil. Dossiê Temático NETSAL, n. 5, IESP/UERJ, Rio de Janeiro, pp. 10-18.

COSTA PINTO, Luiz A. (1947). Sociologia e mudança social. Conferência pronunciada na Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia. Sociologia, São Paulo, v. 9, n. 4, pp. 287-331

COSTA PINTO, Luiz A. (1964). Estructura de clases y cambio social. Buenos Aires: Paidós.

COSTA PINTO, Luiz A. (1967). Modernização e desenvolvimento. In: COSTA PINTO, Luiz & BAZZANELLA, Waldomiro (Org.). Teoria do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar, pp. 191-201.

COSTA PINTO, Luiz A. (1980 [1949]). Lutas de famílias no Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional.

COSTA PINTO, Luiz A. (1998 [1953]). O negro no Rio de Janeiro: relações de raças numa sociedade em mudança. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.

LIMA, Nísia T. (1999). Sob o signo de Augusto Comte ou sob o signo de Karl Marx: a vocação das ciências sociais nas perspectivas de Costa Pinto e Florestan Fernandes. In: MAIO, Marcos C. & VILLAS BÔAS, Glaucia (Org.). Ideais de modernidade e sociologia no Brasil: ensaios sobre Luiz de Aguiar Costa Pinto. Porto Alegre: Editora UFRGS. pp. 251-274.

MAIA, João Marcelo E. (2019). Costa Pinto em dois tempos: Os efeitos periféricos na circulação de ideias. Tempo Social, v. 31, n. 2, pp. 173-198.

MAIO, Marcos C. (1997). A história do Projeto Unesco: estudos raciais e ciências sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Tese de doutorado.

OLIVEIRA, Lúcia L. (1995). As ciências sociais no Rio de Janeiro. In: MICELI, Sergio (Org.). História das Ciências Sociais no Brasil. São Paulo: Vértice, pp. 233-307.

VILLAS BÔAS, Glaucia. (2006). Mudança provocada: passado e futuro no pensamento sociológico brasileiro. Rio de Janeiro: FGV.

Imagem: Joana Lavôr, colagem da série Dei Normani, Sicília. Para a disciplina/série Blog da BVPS Nordeste Autopoiesis.


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