Coluna Palavra Crítica + MinasMundo | “O diabo na rua, no meio do redemunho” – Ato II: Conversa com Bia Lessa

O projeto MinasMundo, em colaboração com a Coluna Palavra Crítica do Blog da BVPS, publica o segundo post da série sobre O diabo na rua, no meio do redemunho, novo filme de Bia Lessa, a partir do romance Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa.

São três posts, ou três atos, como a estrutura de um texto narrativo ou dramatúrgico. Entretanto, não intentamos dar a cada um, de forma estanque, a função clássica e linear que possuem na construção de uma história. A nomenclatura tampouco é arbitrária, embora tenha, sim, seu caráter lúdico, ou seja, de jogo com as palavras e com as estruturas dos textos. Ato é ação, na origem e no seu fim. Pensamos ainda na definição de Patrice Pavis, em seu Dicionário de teatro, para quem o ato “se define como uma unidade temporal e narrativa, mais em função de seus limites do que por seus conteúdos”. Portanto, nos três atos que publicamos, pretendemos agir nos e além dos limites da palavra, esgarçando-os através da ferocidade da literatura de Guimarães Rosa e da des-domesticação da escrita cênico-visual de Bia Lessa.

No post de hoje, o Ato II traz mais três cenas da conversa de Bia Lessa com Rodrigo Jorge Ribeiro Neves, curador da Coluna Palavra Crítica e pesquisador do projeto MinasMundo. A artista mergulha na travessia entre as linguagens artísticas a que se dedicou para conferir outra materialidade ao universo do sertão rosiano, abordando os elementos da linguagem cinematográfica e a sua especificidade. Também somos convidados a participar dos bastidores de preparação das atrizes e atores na construção das personagens. Por fim, Bia Lessa ressalta a universalidade do romance de Guimarães Rosa e seu pacto com a dimensão mais profunda da nossa existência. Nonada. Vim-me. Travessia.

Para conferir o Ato I, clique aqui.

Boa leitura!


FADE IN

CENA 3 – INT. CAPITU CAFÉ – MANHà

BIA LESSA

O cinema me ajudou muito a fazer a peça. A peça era dentro de uma gaiola que dificultava um pouco o olhar do espectador, então reforçava a ideia do “mire e veja”. Havia as coisas no meio e a pessoa tinha que se mover, quer dizer, para ver tem que olhar, você tem que fazer o esforço, não está dado. E os atores não saíam nem entravam em cena nunca, ou seja, não tinha entrada ou saída. Na preparação dos atores, trabalhei com corte seco. “Vira pássaro, agora é o jagunço, agora vira não sei o quê… pá-pá, já foi, pá-pá, já foi!”. Não havia transição, havia corte seco, era algo imediato. 

Com a plateia, cada espectador tinha um fone de ouvido e havia sons. Essa ideia veio a partir do cinema, da noção de espacialidade, do som, como quem cria uma imagem, como transportar aquilo quase como uma música. Então o cinema me ajudou muito a descobrir a linguagem do teatro. Quando eu estava vendo o espetáculo, depois de estreado, um mês e meio depois, me veio uma frase do Godard – eu sou louca por ele! –, que dizia que a merda do cinema é que as pessoas querem mostrar uma maçã, pegam uma maçã e a mostram, mas a função do cinema seria mostrar o que há dentro da maçã, ou fazer com que a gente visse a maçã pela primeira vez, visse algo que ninguém nunca viu. Essa ideia ficou muito na minha cabeça.

Eu estava olhando para a rede do espetáculo e, epa!, que questões agora eu podia levar para o cinema, algumas questões do teatro, não da peça? Como, por exemplo, a abstração, a metáfora, a locação… eu não preciso de nada dessas coisas em que, de alguma forma, o cinema está pousado. O que eu preciso do cinema? A linguagem. Que é o quê? As câmeras, o movimento, o close, os abertos, os fechados. Então eu usei no filme todas os recursos possíveis da linguagem cinematográfica com o que o teatro pudesse contribuir, que era abrir mão de tudo que não fosse necessário. Isso tem relação com o trabalho de Eduardo Coutinho, um gênio e muito radical e extraordinário, que aos poucos foi abrindo mão de tudo. Não havia mais roteiro, não havia mais nada, nem mesmo as pessoas, até o último filme. E ele me falava: “Bia, o próximo vai ser eu, sentado ali, as pessoas vão chegar e pronto, não vou nem ir mais, já não tem nada”. 

Ele vai retirando e vai focando na única coisa que interessa, que é entender o ser humano. Por que é que a gente vive? Por que é que a gente morre? Por que esse mundo de angústias faz parte da nossa vida? Por que somos tão loucos e complexos?, O que está acontecendo no mundo? Acho tão doido como a gente está agora, não só pelo reacionarismo, mas por tudo o que está acontecendo. O mundo desabou com o capitalismo selvagem, com o valor único do dinheiro… a sensação que eu tenho é que acabou, não sabemos ainda que acabou, mas já está acabado. Essas questões se tornam ainda mais fundamentais, entendemos a merda que fizemos, quem somos, do ponto de vista individual, íntimo, próprio e também coletivo. Por isso essas obras formadoras são importantes. E para mim é importante também fazer um cinema que abra mão do supérfluo, do que não precisa de nada. Não estou falando contra o cinema que precisa disso, seria uma imbecilidade, uma bobagem, porque as coisas, os espaços dizem muito. Eu estaria negando a mim mesma, mas o meu desafio era esse: como levar essas questões que para mim eram importantes e seria uma inversão? 

Percebe como é? É uma coisa que vai dar na outra, que vai dar na outra. É uma coisa que cria perguntas para o outro espetáculo. Tanto que eu não consigo – eu recebo muito texto para dirigir –, fazer algo já dado, porque para mim o trabalho tem que vir de uma pergunta que estou fazendo, mesmo que seja um texto genial, porque olho e penso: “Ai, seria tão bom fazer isso com esse ator que eu adoro”. Mas não casa, o que eu quero falar na hora, e se eu não tenho, é uma coisa muito difícil para mim. Por isso que a minha vida é assim, artesanal. A minha vida é artesanal, sou artesanal e eu gosto é disso. 

Isso era muito bonitinho no set, era uma graça, porque era tudo outra coisa. Nunca havia feito cinema de ficção, então não tinha ideia do que cada um faz. Eu ia varrer o palco, costurar figurino, e o primeiro dia era assim, o primeiro assistente, com o fone, atores… Cara, aquilo começou a me dar um negócio, quando eu vi, eu falei: “Gente, agora, faz, ação, faz, chama ali”, eu ia, pegava, cenário, um monte, fazia, “Vamos lá!”. Quando eu vi, estávamos todos artesanalmente fazendo aquilo… foi muito bonito. 

A gente fazia antes um aquecimento físico, porque como precisava de muito esforço dos meninos, emocional e físico, a gente fazia uma aula, alongamento. No primeiro dia, os atores, aquela maquinária, olhando e pensando “Ai, que saco!”. Dois dias depois estavam todos fazendo, o contra-regra fazia, o cara do caminhão fazia, todo mundo ali, então virou aquilo que eu acredito, que é a equipe, o coletivo, porque o coletivo tem uma força, principalmente quando ele é feito de indivíduos inteiros. Daí é uma coisa extraordinária. 

Agora, foi muito difícil fazer o filme, muito difícil. Eu saí quase morta, foi muito duro. Foram 17 dias de um grau de angústia. Porque, no cinema, cada segundo é dinheiro. Se você tem que resolver aquilo imediatamente, você tem que filmar aquilo naquele dia, então é uma coisa muito sobre-humana para esse tipo de coisa que eu faço. A gente resolveu que faríamos o que fosse possível. Quantos dias temos? 17? Vamos fazer isso. E depois vem a coisa mais linda que eu acho no mundo que é a montagem. Acho que é onde as coisas de fato se estabelecem, porque ali é que vem a linguagem. Por que você coloca do lado daquilo? Por que é que aquilo está ali? Então, aos poucos, você vai entendendo e mexendo.

MATCH CUT TO

CENA 4 – INT. CAPITU CAFÉ – MANHà

BIA LESSA

Eu fiz Antunes, como atriz. E o Antunes tinha uma ideia de atuação. E você trabalha a vida inteira, o corpo, o desequilíbrio, para você atingir o gesto ideal. Então é um trabalho muito racional. Isso fez muito mal para mim, como atriz. Eu não era uma grande atriz, mas eu tinha uma vivacidade, uma espontaneidade. Eu tinha um fogo, digamos assim. E o método do Antunes meio que brecava esse fogo. Por conta disso, fui entendendo e criando de alguma forma um próprio método. 

No meu método – não sei se posso chamá-lo assim –, passo por sete etapas. Não vou falar de todas, porque é um processo longo, mas o primeiro momento para mim é o seguinte: se eu vou pegar um Guimarães Rosa, ou um Shakespeare, ele tem que ser meu colega. É como o Kantor fala, que é lindo: “Eu não faço o Shakespeare, eu falo com o Shakespeare”. Então, não sinto já que ele é maior que eu. Sinto que tenho a obrigação de dizer por que eu fiz aquilo. Eu tenho que dizer a que veio. Não tenho nenhuma pretensão de tentar saber o que Guimarães quis dizer com aquilo. Tenho a pretensão de dizer o que eu quero dizer com aquilo que Guimarães disse. O texto de Guimarães está escrito ali, é extraordinário, mas eu não tenho essa pretensão. O que acontece? Eu trabalho com os atores dando fragmentos. Então, eu pego, abro o livro, abro o livro em casa, seleciono uma frase daqui, uma frase de lá, um pedaço, dou pra eles e falo: 

– “Leu a frase? Agora, quero que você, em três minutos, me dê cinco formas de fazer isso, e com três surpresas em cada uma dessas formas”. 
– “Não dá tempo, como é que eu vou fazer?” 
– “Dá tempo, faz! Três minutos.”

As pessoas ficam loucas, perdem o controle e fazem qualquer coisa. Nesse qualquer coisa aparecem as coisas mais geniais do mundo, porque é descontrolado, é espontâneo, é feito na alegria. É um momento do ensaio que é uma barulheira. Eu falo, outro ri, outro tropeça e cai, é um atabalhoamento. E isso eu faço com todos os trechos que me interessam no livro, só que não organizadamente, com nenhuma possibilidade da pessoa fazer qualquer leitura racional, do tipo, “Disso, eu penso isso, logo aquilo, ele quis dizer”, nada disso me interessa, eu nunca faço mesa. Não me interessa saber, me interessa o que eu vou fazer com aquilo. 

E todos fazem de tudo, então ali, todos interpretaram Riobaldo, todos fizeram Diadorim. Eu decido quem vai ficar com o papel muito depois. E quando a pessoa cria, você cria, eu crio, eu sempre torno aquilo público. Acho que a coisa mais linda do conhecimento é que você pega o que quiser no ar, e é seu, e aquilo que o outro fez já é seu. Aos poucos, eles vão, fazem isso tudo e a gente vai anotando… “Olha esse gesto, olha aquilo ali, olha aquela hora que era raiva e você fez com amor, olha aquilo”. E a gente vai criando uma biblioteca de gestos, de coisas, de sensações, todos falando. Então há esse momento e o momento em que a pessoa anota aquilo tudo. Quer dizer, não é que faz aquilo e não pensa sobre aquilo, faz aquilo. E depois eu falo: “Olha, aquilo que você fez é ótimo, guarda aquilo ali que não sei o quê, você vai pensando”. Até que depois, você diante de uma coisa gigante, você pode, aí sim, como pessoa racional, construir pelo escolher. “Escolha isso, escolha aquilo”, e aí você vai compondo aquilo que você já vivenciou com muita liberdade. 

Acho que o diretor nunca pode dizer para o ator o que ele deve fazer. Mas eu sempre tenho que dialogar com o que ele quer fazer. Então, se eu preciso que aquela cena seja triste e para aquele ator aquilo é uma comédia, eu vou ter que ver como é que eu faço para aquela comédia, que será comédia – porque o ator é dono do trabalho dele – no todo virar tragédia. Tinha uma cena – essa é clássica! – com a Fernanda Torres, quando fazia o Orlando, em que o Orlando perdia o grande amor. E no livro o rio Tâmisa descongela e vira aquela aguaceira, gritos, e a Nanda só conseguia rir. Ela era irônica, tem uma personalidade assim. Ela riu muito. Como é que eu vou resolver essa situação? Então o que eu fiz? Joguei em cima dela uma tempestade de terra com uma música, uma ópera altíssima. Então, era a Nanda, às gargalhadas, uma música louca e o mundo dela desabando. É muito mais triste do que se ela tivesse obedecido e chorado. “Ah, perdi, tô triste”. Então, acredito muito no que está do lado do outro, no diálogo entre as coisas. Meu trabalho todo vai ser assim. 

Uma coisa muito importante para mim é a realidade da cena, o jogo real da cena. Eu faço assim, você treme. Se eu não fizer, você não treme. Tem que ser jogo de futebol. Tanto que no espetáculo, antes, a gente jogava futebol. “Fica ali, joga, pega a bola”. Porque eu acho que o jeito de você se nutrir para o espetáculo não é você se concentrar. É você rir, se libertar, cair, pegar uma bola que você não sabe que você vai pegar. Você estar apto para reagir. Então, para mim isso é uma coisa sempre muito importante. É por isso eu ensaio todo dia. Sérgio Sant’Anna, que foi um grande companheiro de trabalho, falava algo muito lindo. Ele dizia que a coisa mais triste de ser escritor é que depois que você manda para a editora você não mexe mais. E você vê que é aquilo. E a coisa deslumbrante do ao vivo é você poder ver e mudar.

Acredito que o teatro é um exercício de utopia, porque nunca todo mundo vai fazer perfeito, é humano. Um está com dor de barriga, outro não sei o quê, a luz que não sei o quê. É o desejo de uma utopia irrealizável. É muito parecido com a vida, que nos tira o tapete o tempo inteiro, que a gente não controla. Então, é um exercício de humildade e de desejo muito extraordinário. E como manter isso? Mantendo-se aberto à mudança, possibilitando o movimento entre, entendeu? Tem que abrir a janela para que o ar circule. Então, meu método, digamos assim, é algo criado a partir de uma discussão interna com a crença do Antunes, que eu não acredito, de que existe um gesto. Não acredito que alguém fará a mesma coisa hoje e amanhã. Acho que a gente muda mesmo. Acho que hoje em dia todos somos muita coisa – burros, inteligentes, bonitos, feios, moços, velhos –, a cada dia está de um jeito. Um dia parece que eu sou uma velha de 90 anos e estou morrendo. No outro dia eu digo: “caramba, quero correr na relva, tenho 3 anos”. Então, não dá mais para você achar que é uma coisa. Agora é plural, as sensações que eu tenho, somos plurais. 

CUT TO

CENA 5 – INT. CAPITU CAFÉ – MANHà

BIA LESSA

O que eu gosto em Guimarães é que ele pensa no homem de hoje, não é nem o do Brasil. Eu acho que ele usa o Brasil como uma particularidade, mas ele está falando do ser humano. Não tem Brasil, não tem Japão, não tem… É tanto que a gente tenta muito, apesar de, que pela sonoridade, às vezes, sabe? Mas eu tentei muito não ter sotaque nenhum, porque eu queria que fosse uma coisa que tivessem as roupas, mas elas não são roupas de cangaceiro, elas são uma roupa que até que tem a ver um pouco. Eu gosto muito de um cara chamado Yohji Yamamoto. Eu lembro que, quando eu ia para Paris, eu ia, sei lá, no Boubou, ia na loja, porque, cara, o jeito que a prega vem… é uma obra como ele lida com tecido. É uma coisa!, eu sou louca por ele. Então, que fosse um homem sem lugar, mas que fosse contemporâneo. 

Então, acho que a genialidade do Guimarães é que ele vai falar do isso, desde o cara que mora no Polo Norte ao cara que mora no Polo Sul, japonês, alemão. Eu dei o Guimarães Rosa, que tem uma tradução muito boa para o alemão, para a Pina Bausch. Eu tinha um desejo muito grande da Pina fazer alguma coisa com o Grande sertão, porque eu acho que é um livro universal. Quando ele fala, é metafísico, né? O sertão está dentro da gente, o bem e o mal, tudo. Eu acho que, obviamente, para nós, nesse momento, ele tem um diálogo direto com o que o Brasil está vivendo, imediato, leitura até quase primária, óbvia. Mas eu acho que o discurso dele é um discurso para o mundo. Tenho muito desejo de viajar com esse filme. Não para festivais, porque eu implico com essa coisa de festival, porque para mim é a coisa mais colonizada. Todo mundo manda lá e fica lá esperando que alguém diga, “Esse vale, esse não vale”, eu não estou nessa. 

Eu quero ir, sim, através das universidades, através de um cineclube pequenininho aqui e ali. Quero, mas eu tenho vontade também de ver como é que o mundo dialoga com essa coisa, que para mim é um Fausto, é um Goethe. Eu acho que Guimarães tem essa potência. E eu tenho muito esse desejo de ver como que vai ser isso para quem não tem noção disso tudo, dessa coisa que a gente, de um jeito ou de outro, tem esses jagunços dentro da gente, a gente tem isso, dentro do inconsciente da gente, eu tenho muita vontade de ver. Então agora o trabalho é tentar isso. Foi uma grande questão como legendar o filme. Não podia ser uma legenda comum, tinha que ser uma tradução de fato. Silviano Santiago achou uma mulher na Austrália que estava fazendo uma nova tradução do Guimarães para o inglês, uma tradução brilhante, que já foi até premiada antes de ser publicada. Ela viu o espetáculo por acaso, buscou a peça e se juntou com uma pessoa que está em Nova York, que já tinha traduzido uma coisa do Guimarães e fizeram uma tradução, segundo as pessoas, porque eu não sou expert em inglês, muito boa, assim, com a potência poética não diria, mas com a potência física das palavras dele. Vim-me. Vim-me não dá, né? Vim-me, cara, vim-me é muito sabido, vim-me. 

FADE OUT

Imagem que abre o post: fotograma do filme O diabo na rua, no meio do redemunho. A primeira imagem dentro do post é outro fotograma do filme; as duas últimas foram tiradas dos ensaios por Isa Salomão.


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