Essa tal classe média: Simpósio BVPS

O Blog da BVPS dá início essa semana a um novo simpósio sobre classes médias no Brasil. Organizado por Celi Scalon (UFRJ), André Botelho (UFRJ) e João Mello (PPGSA e NEPS/UFRJ), o simpósio ouviu especialistas de diferentes áreas das ciências sociais, humanas e literaturas, bem como de várias especialidades dessas áreas, sobre a relevância e a atualidade do tema. O diálogo multidisciplinar entre especialistas e não especialistas em classes médias tem o objetivo de promover trocas teóricas, históricas e empíricas e também investigar a possível multidimensionalidade e transversalidade do tema que discutimos. Cruzar fronteiras que a rotina institucional estabeleceu entre áreas, problematizar a hiperdisciplinarização do conhecimento social a ponto dos seus temas se tornarem especialidades esotéricas e promover comunicações públicas das pesquisas são missões da BVPS.

O convite para participação no simpósio buscou contemplar a diversidade da comunidade de pesquisadores brasileiros, levando em conta gênero, geração e outros marcadores sociais, além de filiação institucional e áreas de pesquisa. Agradecemos às colegas e aos colegas que aceitaram participar compartilhando seus dados de pesquisa ou reflexões.

Hoje divulgamos texto dos organizadores do simpósio, cujas postagens serão semanais, a partir de amanhã, sempre às quartas-feiras, cada uma, a princípio, com contribuições de quatro participantes. Nessa organização sempre procuramos levar em consideração, simultaneamente, o diálogo possível entre as respostas e a diversificação de pontos de vista.

Boa leitura!


Essa tal classe média: apresentação e problemas

Celi Scalon (UFRJ)
André Botelho (UFRJ)
João Mello (PPGSA/UFRJ)

As representações sobre “empreendedorismo” se multiplicam no Brasil e no mundo. Espécie de ponto de cruzamento problemático entre múltiplos movimentos mais amplos na sociedade e no Estado: a feição chamada neoliberal do capitalismo contemporâneo, o crescimento da desregulamentação dos direitos sociais tradicionais do trabalho, a intensificação de processos sociais de individualização, a imposição aos indivíduos da construção da sua biografia, uma racionalidade do sujeito enquanto empresa a que, no Brasil, não tem faltado o socorro das visões teológicas das religiões neopentecostais. Houve algum avanço no que diz respeito às chamadas políticas identitárias, ao gosto do nosso tempo, mas esvaziamento dos movimentos sindicais e profissionais. De qualquer maneira, as ações contemporâneas têm redundado muito pouco na redistribuição de riqueza. Há uma concentração crescente de renda em todo o mundo, não apenas no Brasil.

Mas a força paradoxal dessas representações sobre empreendedorismo se mostra, inclusive, no fato de que atravessam governos diferentes nas últimas décadas, especialmente os dois primeiros governos Lula e o (des)governo Bolsonaro, para voltar com força renovada na agenda internacional brasileira, como mostra o discurso do Presidente Lula na última Assembleia Geral da ONU, neste mês de setembro em curso. Nele, o Presidente aponta para uma retomada, graças à vitória da democracia no país, de um discurso que reinsere o Brasil como um dos atores globais no combate à desigualdade. Em tempos de pandemia, crise climática e tensões geopolíticas, o discurso não deixou de afirmar uma luta por um comércio global mais justo, por um novo modelo de governança global frente ao fracasso do neoliberalismo. A seu ver, o desenrolar da crise no Brasil, iniciada em meados da década passada, ilustra o cenário que coloca em risco as democracias do mundo: o desemprego e a precarização do trabalho minando a confiança das pessoas em tempos melhores, especialmente a dos jovens; o aumento da dissonância entre a “voz das ruas” e a “voz do mercado”; um legado de deserdados e excluídos; a desigualdade econômica e política; e a emergência de um nacionalismo primitivo, conservador e autoritário que se coloca como uma solução fácil diante da falência do modelo liberal-democrático.

Por certo, os sentidos políticos dos discursos e das possíveis políticas públicas do “empreendedorismo” não são as mesmas, de um lado do espectro político-ideológico ao outro. Basta ver a relação estabelecida pelo atual governo entre empreendedorismo e combate às desigualdades sociais, por exemplo. É verdade que o discurso contra a “desigualdade” atravessa a República pós-1988, não apenas com diferenças, mas também com desigualdades no que se refere às poucas iniciativas reais de sua superação. O tema traz à tona problemas sociológicos de longa duração na sociedade brasileira. E atinge de modo contundente as expectativas e representações de mobilidade por parte de grupos sociais remediados, a que costumamos, com mais ou menos precisão, identificar as assim chamadas classes médias. “Novas classes médias” para alguns, inclusive.

A vida social nunca é uma linha reta; as ações dos indivíduos e grupos nunca seguem uma lógica simples de causas e consequências e nem sempre os efeitos das ações corroboram suas intenções. Nossa história e nosso passado recente nos mostram exatamente que a luta por direitos e cidadania se dá em espirais, com seus avanços e retrocessos. E, assim, o paradoxo social se recoloca: ao mesmo tempo que o indivíduo é impulsionado a determinar e desenhar sua própria vida, ele se encontra à mercê de uma série de constrições novas para o desenvolvimento de sua individualidade, a começar pelo próprio princípio de incerteza que a todos atinge.

Neste simpósio realizado em parceria com o Blog da BVPS, pesquisadoras e pesquisadores responderam a um questionário com quatro perguntas, elaborado com a expectativa de indagar diferentes formas de se pensar e trabalhar com a categoria de “classe/s média/s” – no singular e no plural – a partir de diferentes áreas das ciências humanas. A organização dessa série se vincula ao Projeto Temático da FAPERJ “Classe média à brasileira: desigualdades, história e percepções”, coordenado por Celi Scalon, que articula duas áreas consolidadas da Sociologia: estratificação social e pensamento social brasileiro. O objetivo do projeto é investigar o perfil social e histórico assumido pelas chamadas classes médias no Brasil moderno e contemporâneo.

Ao partir da percepção de uma inadequação dos modelos explicativos adotados em sociedades europeias para a compreensão das classes médias no Brasil, a pesquisa investiga as ambiguidades e os limites das tentativas de atualização dos modelos clássicos, especialmente na categorização desse grupo, a fim de capturar as particularidades históricas e sociológicas do processo de estratificação brasileiro. Para enfrentar esse desafio, discute possíveis ganhos heurísticos advindos do confronto com suas formulações clássicas na própria tradição sociológica brasileira.

O conceito de classe social está em constante debate. Não exatamente pelo critério adotado para definir classe, uma vez que há consenso na área de estratificação de que classes são definidas, basicamente, pelas ocupações; mas aí surge a questão: quais ocupações? É nesse campo de definição dos esquemas de classe que o embate se estabelece. Mas, se a definição de classe é objeto de contenda, o que dizer da noção de “classe média” ou, como nosso grupo de pesquisa decidiu chamar, “classes médias”, dada sua heterogeneidade. Nesse caso, o embate não se dá apenas no âmbito da produção acadêmica, melhor dizendo, se dá muito menos no campo acadêmico, à medida que permanece há décadas como elemento de disputa política na cena pública.

Entendida ora como constituída pelo segmento alocado entre a mediana e abaixo dos 20% alocados na parte de cima da distribuição de renda, ora como formada apenas pelos 20% posicionados no topo dessa mesma distribuição, ora por ambos (Salata, 2016; Salata & Scalon, 2020; Cardoso & Préteceille, 2021); as classes médias são objeto de ódio e desejo dos diversos atores políticos, não somente pelo que representam em proporção de votos nas urnas, mas, principalmente, porque constituem um segmento com influência na cultura política e, portanto, no destino da sociedade brasileira.

No Brasil, há muito a sociologia macro-histórica das chamadas interpretações do Brasil vem chamando a atenção para particularidades da sociedade, de sua formação e organização social, o que, obviamente, inclui problemas gerais de estratificação e mobilidade sociais. André Botelho e Antonio Brasil Jr., especialmente em trabalhos sobre Florestan Fernandes e Antonio Candido, vêm discutindo os rendimentos heurísticos das interpretações sobre as classes médias no país, seja para a reflexão da crise democrática do Brasil contemporâneo, como a de Florestan, seja em comparação com outras interpretações sobre o lugar e o papel desses setores na formação histórica da sociedade, como a de Antonio Candido.

Se o retrato feito por Florestan dos setores especificamente burgueses mostra que eles passaram por uma espécie de processo histórico de aprendizagem, que foi retirando das ideologias e utopias burguesas qualquer acento de radicalismo – até chegarem à clareza máxima com que aceitaram o seu autoprivilegiamento ostensivo e imediatista –, no caso das classes médias, o quadro parece dotado de mais matizes e ambiguidades. Afinal, em um país com desigualdades tão abissais, elas seriam o esteio possível de um radicalismo burguês mais consequente e duradouro, capaz de levar a uma democratização parcial da riqueza material, do prestígio social e das formas de poder político – ou, ao menos, deslocar um pouco o controle conservador das mudanças (Botelho & Brasil Jr., 2017).

Antonio Candido – quer como sociólogo, quer como crítico literário e da cultura – mostrou-se sempre atento aos papéis desses grupos sociais, por seu peso político e simbólico na estruturação da sociedade brasileira e da sua cultura letrada de que tanto se ocupou. A questão se espraia por toda a sua obra, como visão de mundo e pressupostos analíticos, como tema, como recurso para pensar a relação literatura e sociedade ou para dimensionar uma forma literária, a biografia de um autor ou as muitas circunstâncias de escrita e leitura, por exemplo. De alguma forma, pode-se argumentar, num país tão desigual como o Brasil, e com índices históricos tão baixos de alfabetização e de cultivo da cultura letrada, a atividade literária, seja      do ponto de vista da produção, seja da recepção, ou ainda da circulação, sempre esteve ligada tanto às elites propriamente ditas quanto aos grupos intermediários, dos quais, sobretudo a partir do século XX, as classes médias vão se desembaraçando. (Brasil Jr. & Botelho, 2023).

Mas como a classe média tradicional (Salata, 2016) percebe seu lugar? É com essa pergunta que nos permitimos atiçar a curiosidade dos leitores e leitoras do BVPS.

Dentre as atividades do projeto, que embasam este simpósio, está a realização de grupos focais em três metrópoles: Rio de Janeiro, São Paulo e Recife. Assim buscamos responder a essa e muitas outras questões que acompanham a literatura sociológica. Homens e mulheres entre 40 e 65 anos, com ocupações de nível superior e renda individual igual ou maior do que R$8.000,00, nos permitiram refletir sobre identidade, trajetórias de vida, expectativas de futuro e apostas políticas para o Brasil. Como aperitivo, podemos mencionar a fala de um arquiteto que definiu classe média como aquele segmento que tem acesso a “luxos necessários”, entendidos como educação e saúde privadas. Ou o empresário que na pandemia se arrependeu de ter apostado no empreendedorismo e hoje diz que deveria ter seguido os passos da sua família majoritariamente composta por funcionários públicos. Ou, ainda, o professor de educação física cuja mãe, merendeira, dormia com ele na escola, de modo que contou com o auxílio das professoras para sua formação escolar. Hoje ele se orgulha de ter um diploma da UFRJ, contrariando a profecia de seu pai que dizia ser esse um sonho impossível, porque pobres não eram admitidos naquela universidade. Em comum, os noventa entrevistados entendem que não são ricos, mas pertencem ao que se chama classe média, uma vez que, sem trabalho, não são capazes de manter essa posição de classe. Reconhecem, porém, que lhes é franqueado acesso a bens e serviços inalcançáveis para as classes populares; segmento de origem social, e, portanto, bem conhecido, da maioria dos participantes

Entretanto, antes de explorar os significados da classe média através das percepções e das representações dos participantes dos grupos focais, decidimos ouvir a reflexão dos pesquisadores e pesquisadoras de diferentes áreas da sociologia, como também da antropologia, ciência política, história e literatura, com o objetivo de ampliar o debate sobre o tema. Reunidos neste simpósio, podemos dialogar com colegas para identificar distintas concepções de classes médias que vêm sendo mobilizadas no âmbito das variadas pesquisas acerca da realidade brasileira.

O convite para participação no simpósio buscou contemplar a diversidade da comunidade de pesquisadores brasileiros, levando em conta gênero, geração e outros marcadores sociais, além de filiação institucional e áreas de pesquisa. O simpósio será apresentado em postagem semanal, sempre às quartas-feiras, cada uma, a princípio, com contribuições de quatro participantes. Nessa organização sempre procuramos levar em consideração, simultaneamente, o diálogo possível entre as respostas e a diversificação de pontos de vista.


Referências

BRASIL. Presidente (2023 – 2026: Luiz Inácio Lula da Silva). Discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na abertura da 78ª Assembleia da ONU. Nova York, 19 set. 2023. Disponível em: https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/discursos-e-pronunciamentos/2023/discurso-do-presidente-luiz-inacio-lula-da-silva-na-abertura-da-78a-assembleia-da-onu. Acesso em: 25/09/2023.

BRASIL JR., Antonio & BOTELHO, André. Florestan Fernandes para dimensionar a força do presente. In: BOTELHO, André; STARLING, Heloísa. (Org.). República e Democracia: impasses do Brasil contemporâneo. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2017, p. 205-224.

BRASIL JR., Antonio & BOTELHO, André. Circuito fechado, circuito aberto: classes médias em sociedade oligárquica, segundo Antonio Candido, 2023 (mimeo).

CARDOSO, Adalberto & PRÉTECEILLE, Edmond. Classes médias no Brasil: estrutura, mobilidade social e ação política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2021.

SALATA, André Ricardo. A Classe Média Brasileira: posição social e identidade de classe. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2016.

SALATA, André Ricardo & SCALON, Celi. Socioeconomic mobility, expectations and attitudes towards inequality in Brazil. Sociologia & Antropologia, v. 10, n. 2, p. 647–676, 2020.


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