Coluna Primeiros Escritos | Colonialidade, utopias e experiências conviviais no Sul Global, por Rômulo Santos de Almeida e Ana Lívia Cardoso Castanheira Alvim

O Blog da BVPS publica hoje na Coluna Primeiros Escritos texto assinado pelos estudantes de pós-graduação Rômulo Santos de Almeida e Ana Lívia Cardoso Castanheira Alvim. Debatendo questões em torno da colonialidade, eles argumentam que o Movimento Convivialista e o Buen Vivir podem ser exemplos ao esgarçado modelo de vida ocidental.

Aproveitamos para lembrar que a Coluna Primeiros Escritos se volta para a publicação de textos de estudantes de pós-graduação. Para conhecer mais sobre a iniciativa, que tem curadoria de Caroline Tresoldi (PPGSA/UFRJ) e Rennan Pimentel (PPGSA/UFRJ), clique aqui.

Boa leitura!


Colonialidade, utopias e experiências conviviais no Sul Global   

Por Rômulo Santos de Almeida[*] &

Ana Lívia Cardoso Castanheira Alvim[**]

 

Nos últimos anos o mundo assiste atônito à intensificação de atos golpistas e violações dos direitos humanos dentro e fora do Brasil. Os recentes ataques à democracia, perpetrados por grupos bolsonaristas, o genocídio do povo Yanomami pelo garimpo ilegal, a insegurança alimentar e a guerra entre Rússia e Ucrânia, são apenas alguns exemplos. Esses conflitos expõem não apenas as fragilidades da democracia ocidental, mas também a insuficiência da visão hegemônica de que a civilização técnica, tal como criticada por Adorno e Horkheimer (1985), é capaz de fornecer os remédios para todos os nossos problemas. Ao contrário do fatalismo técnico e utilitarista, que simplesmente quantifica o ser humano, é preciso alargar nossos horizontes epistemológicos, metodológicos e estéticos para obtermos uma compreensão da realidade social de forma mais plural e descolonizada. As experiências, no Sul Global, dos Movimentos Convivialista e Buen Vivir são exemplos de como a potência libertadora do imaginário estético, das utopias e dos sonhos podem ser alternativas viáveis ao esgarçado modelo de vida ocidental.

A pandemia do coronavírus escancarou, de maneira cruel e letal, as desigualdades causadas pelo neoliberalismo, aprofundando, de acordo com Arthur Bueno (2020) e Felipe Maia (2021), uma crise de subjetivação, ansiedade, depressão e ameaças de desintegração social. Em razão disso, é urgente praticarmos uma nova política dos afetos, que, juntamente com as dimensões ética e estética, nos sensibilize como membros da grande comunidade humana. À vista disso, somos levados a repensar não apenas nossas relações com os outros humanos, mas também com a natureza e demais seres vivos. As análises sobre o Antropoceno, realizadas por estudiosos como Dipesh Chakrabarty (2015), tem nos mostrado que a agressão à natureza é também uma agressão a nós mesmos. Não estamos apartados do ecossistema, mas somos parte integrante dele. Somos rizomas e é fundamental que a nossa rede rizomática seja forte o suficiente para nos permitir conviver, derrubando muros e construindo pontes.

As utopias podem ser lidas nessa chave, pois possibilitam imaginar um mundo diferente, rearranjado e organizado conforme outros valores. Carregam, portanto, a capacidade de romper com a naturalização das estruturas que moldam a realidade, evidenciando que o modo de vida no capitalismo não é o único possível (Davidson, 2020). Em geral, as utopias são identificadas com o ato de sonhar, mas também adquirem, conforme defende Paulo Henrique Martins (2019), expressões muito complexas, podendo ser encontradas em dois movimentos contemporâneos: o Convivialista e o Buen Vivir.

O primeiro é um movimento intelectual interdisciplinar iniciado na França, de cunho anti-utilitarista, que visa problematizar a crise da “ocidentalização”, identificada como responsável por grandes desequilíbrios ambientais.

O segundo trata de uma experiência política em andamento na Bolívia, na qual se instaurou um Estado Plurinacional, isto é, um Estado que respeita sua forma primordial e que almeja se livrar da colonização que ainda é produzida internamente (Martins, 2019; Tapia, 2012; Zavaleta, 1982). Essa visão de mundo é simbolizada pela Pacha Mama, termo usualmente traduzido como “Mãe-Terra”. Pacha Mama é uma representação da natureza enquanto uma entidade, uma deusa que (con)vive entre os humanos. Tal entidade é por vezes associada à fertilidade e, por isso, é vista como Mãe: é dela que tudo se origina, inclusive os seres humanos. Daí o entendimento da natureza como um ser vivo que faz parte de nós na mesma proporção que fazemos parte dela.

Os valores associados à Pacha Mama são empatia, pluralidade e generosidade. Cada um deles é fundamental não só para o Movimento Buen Vivir, mas para qualquer outra experiência que vise repensar os rumos da humanidade e do Antropoceno. Dessa maneira, passa-se a observar o humano e a natureza a partir de uma relação de continuum, pois um integra o outro e, em decorrência disso, devem ter direitos de igual importância. Assume-se, com isso, outra compreensão de “progresso” e de “desenvolvimento”, na qual se mudam as hierarquias de direitos, colocando humano e natureza lado a lado.

A experiência do Convivialismo e do Buen Vivir nos coloca diante de uma série de questões: como tecer outras vias de acesso ao real sem perfazer os mesmos caminhos ontológicos, metodológicos e axiológicos do pensamento ocidental? Em que medida podemos construir teorias e modelos de análise social que, partindo da periferia global, faça o centro nos ouvir? Como pavimentar pontes nas direções Sul-Sul e Sul-Norte para fazer escoar o fluxo de novos conhecimentos e saberes? Como criar um pensamento emancipatório a partir de um pensamento que foi colonizado? Podem os sonhos, as utopias e o imaginário estético dos países periféricos serem alternativas ao cartesianismo e ao eurocentrismo? Cada pergunta é uma provocação que deve ser estimulada, sugerindo para os estudos vindouros possibilidades de análise e reorientações sensíveis de criação e ação.

Reconhecemos, porém, a impossibilidade de se discutir o eurocentrismo sem discutir o racismo e o colonialismo, inclusive aquele que ainda atua internamente. De acordo com Pablo González Casanova (2007) e Torres Guillén (2014), os Estados de origem colonial e imperialista possuem dentro deles classes dominantes que refazem e conservam as relações coloniais, com variantes que dependem da correlação de forças dos antigos habitantes colonizados e colonizadores, mesmo após os processos de Independência política. Isso, obviamente, é válido não apenas para os impasses do poder político, mas também para o modo como ocorre a divisão do trabalho intelectual e, portanto, a “colonialidade do saber”, assentada, como percebeu Quijano (2005: 121), no controle “de todas as formas de subjetividade, da cultura, e em especial do conhecimento, da produção do conhecimento”.

Felizmente, na esteira da sensibilidade pós-colonial e com a assunção de estudos do Sul Global, sociólogos e historiadores passaram a descobrir histórias silenciadas de uma agência crítica que não segue o mesmo caminho da Europa moderna (Rebughini, 2018). É necessário repensarmos novas possibilidades e horizontes éticos, estéticos e políticos, que nos auxilie a reafirmar a importância das epistemologias do Sul, sem que isso reverbere em um menosprezo simplista pelas epistemologias do Norte. Tal prerrogativa se faz ainda mais necessária se observarmos os problemas estruturais das sociedades contemporâneas, seguidoras do modelo neoliberal, gerador de fome, guerras, desastres naturais e perda humana do sensível, em plena era de recolonização planetária. 


Notas

[*] Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco.

[**] Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-Rio.

Referências

ADORNO, Theodor & HORKHEIMER (1985). Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar.

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