Nova série BVPS: Autorais

A BVPS inicia hoje uma nova série de publicações com o objetivo de reunir textos pouco conhecidos, fora de circulação e inéditos de mesma autoria. É uma grande honra estrear a Autorais com a Professora Alcida Rita Ramos (UnB). Serão 10 textos publicados, um a cada semana, sempre às terças-feiras. Serão abordados, entre outros temas, Yanomamis, viagens etnográficas de antropólogos e de indígenas, reflexões sobre a antropologia brasileira, etnologia e políticas públicas, cosmopolitismo, perspectivismo e a renascença artística indígena. Todos eles perpassados sempre pelos sonhos, como se verá, e como indicam os curadores André Botelho (UFRJ) e Maurício Hoelz (UFRRJ) na pequena apresentação que abre a série.

O primeiro texto da seleção é “O sonho da paz interétnica”, publicado em 2003 no site do Conselho Indígena de Roraima, e agora acompanhado de um posfácio escrito pela autora em 2023, especialmente para a BVPS.


Singularidade e pluralidade: sonhos e textos de Alcida Rita Ramos

Por André Botelho (UFRJ) & Maurício Hoelz (UFRRJ)

A BVPS dá início a uma nova série de publicações, a que chamamos de “Autorais”, pois seu objetivo é reunir textos pouco conhecidos, fora de circulação e inéditos de mesma autoria. Como para fazer uma coletânea, reviramos juntos os baús de publicações e apontamentos de colegas e nos deixamos penetrar por sua singularidade, percebendo regularidades, alimentando a imaginação e, o mais difícil, fazendo escolhas.

É uma grande honra para a BVPS que essa nova série estreie com a Professora Alcida Rita Ramos (UnB). E por muitos motivos. A qualidade dos seus textos, a importância da sua trajetória acadêmica, seu pioneirismo na etnologia brasileira, sua amizade e luta lado a lado com os povos indígenas, sua qualidade reflexiva e capacidade de imaginação sem fim são alguns deles. Ressaltamos ainda o fato de ser ela a mulher protagonista da sua geração na história da sua disciplina e na antropologia, uma história ainda contada por meio do ponto de vista masculino.

Eleita recentemente para a Academia Brasileira de Ciência, Alcida tem e merece todo o reconhecimento dos seus pares e da comunidade acadêmica em geral. Tudo isso é verdade e suficiente para essa série. Mas, como curadores, não podemos deixar de expressar a alegria incomum no árduo trabalho editorial com que se deu todo o processo de contatos, escolhas, reescritas, escritas. O entusiasmo contagiante de Alcida nos atingiu de modo certeiro, nos inspirou e moveu. Seus textos eruditos, mas de uma beleza narrativa extremamente cristalina, nos fascinam. Revirando seu baú, encontramos muitas contas dispersas, mas de imediato nos chamaram a atenção algumas delas que, reunidas, formariam um fio muito próprio da sua singularidade em meio à pluralidade constitutiva de uma carreira aberta e em curso. Sonhos. Não sabemos o quanto a própria Alcida estava ciente antes de nossa interpelação sobre esse fio tão singular nos seus escritos e lutas tão plurais. Sonhamos com Alcida.

Agora é hora de compartilhar seus sonhos-texto-lutas com leitoras e leitores da BVPS. Serão 10 textos publicados, um a cada semana a partir de hoje, sempre às terças-feiras. Yanomamis, viagens etnográficas de antropólogos e de indígenas, reflexões sobre a antropologia brasileira, etnologia e políticas públicas, cosmopolitismo, perspectivismo e a renascença artística indígena são alguns dos temas cobertos pela nossa seleção. Todos eles perpassados sempre pelos sonhos. Creio não errarmos ao afirmar que a etnóloga Alcida tem aprendido e muito com os grupos que estuda. É certamente o caso dos Yanomamis, cujo mundo onírico, povoado pelo cotidiano, lhe revela o cosmos. Com Alcida é assim também, uma nova paisagem de afetos e experiências se abre em seus sonhos-textos. E existe algo melhor do que compartilhar sonhos?

Boa leitura!

O sonho da paz interétnica

Viagem à terra de Macunaíma

Por Alcida Rita Ramos

Mulher Yanomami decorando o corpo do marido xamã. Acervo da autora.

Nos dias 13 e 14 de maio de 2003, tive a magnífica oportunidade de visitar o leste do estado de Roraima, onde vivem cerca de vinte mil indígenas de cinco etnias: Macuxi, Wapixana, Ingarikó, Taurepang e Patamona. No ambiente mágico do lavrado roraimense, entre campos abertos, banhados salpicados de jaburus e garças-brancas, serras de avançada idade geológica, grande silêncio, profunda beleza e um céu de dar inveja ao Planalto Central, trava-se um centenário de confronto, muitas vezes sangrento, pela posse da terra. A morte de líderes indígenas é tão rotineira na região quanto a impunidade dos assassinos. Tanta violência cresce em proporção ao fortalecimento étnico e político daqueles povos indígenas. Do final dos anos 1960 – quando, a caminho da área Yanomami, onde passaria dois anos em pesquisa de doutorado, me choquei com a visão de pessoas Macuxi varrendo, cabisbaixas, as ruas de Boa Vista – aos dias de hoje, os indígenas do lavrado deram enormes saltos de conscientização e engajamento no campo interétnico. Agora eles mostram sua força na expulsão de mais de 100 fazendeiros que há muito ocupavam a área de São Marcos, na indenização ganha da Eletronorte pela linha de transmissão que lhes corta as terras, levando eletricidade da Venezuela para Boa Vista (o chamado linhão de Guri), e na incansável luta pela homologação de outra área, Raposa/Serra do Sol, demarcada em 1998, mas alvo de pressões de políticos locais e arrozeiros que atravancam o término do processo administrativo de homologação e registro em cartório daquela área indígena. 

Essa viagem de corpo e alma ao lavrado foi tão inspiradora para mim como já o fora mentalmente para Mário de Andrade, que, embevecido com a riqueza cultural dos Pemon-Macuxi, elaborou o seu personagem Macunaíma, tão mítico quanto o Makunai’mî dos Macuxi. Mas, apesar de partilhar com o escritor modernista o gozo estético pela região, minha ida a Roraima teve cunho prioritariamente político. Como membro suplente do antropólogo Roque Laraia no Conselho Indigenista da FUNAI, acompanhei os demais membros do Conselho e o presidente do órgão, Eduardo Aguiar de Almeida, para a reunião ordinária que teve lugar na missão católica e aldeia macuxi de Maturuca, na Serra do Sol. Os conselheiros ouviram uma torrente de insatisfações e demandas, desde a exigência de justiça pela morte recente de um líder da comunidade Uiramutã, seriamente invadida, passando por pedidos de veículos e outros bens já tornados essenciais, até a grande preocupação com o crescimento desenfreado da vila de Pacaraima na divisa com a Venezuela, nascida de um velho pelotão de fronteira do exército brasileiro e transformada no sonho militar de “vivificar” a fronteira norte do país, como reza o Projeto Calha Norte. Mas é a necessidade de homologação da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol que mais mobiliza agora as energias dos povos do lavrado e da serra. São energias que se manifestam em pressões sobre autoridades em Brasília, no recrutamento de apoio de entidades simpatizantes da causa indígena, em pronunciamentos escritos e falados, e nas canções que compõem e com as quais receberam, esfuziantes, a comitiva da FUNAI. Enquanto na fria e fechada sala de reuniões da FUNAI o Conselho Indigenista avalia os problemas indígenas, numerosos e cabeludos, com horário marcado até o almoço, lá, na própria aldeia, o contato direto, aberto e imediato com os índios exerce um insubstituível poder de empatia e envolvimento. A concretude dos rostos crispados ao descrever abusos de brancos, da fala embargada por soluços pela morte do parente, da ubiquidade das crianças sorrindo e brincando porque, afinal, a vida continua, mais do que compensou o custo de deslocar o Conselho para a área indígena, tanto em dinheiro quanto em percalços de viagem. Nada, em suma, se compara à experiência vivida e ao profundo sentimento de solidariedade que dela advém.  

Que essa reunião in loco do Conselho Indigenista, a última da gestão, renda os frutos prometidos que os povos indígenas do lavrado roraimense esperam e pelos quais têm lutado e sofrido por tanto tempo. Homologar a Terra Indígena Raposa/Serra do Sol é uma possante dívida interna que o Estado brasileiro tem com eles. O não pagamento dessa dívida pode custar ao governo Lula o incalculável juro de arcar com o peso do caos social em Roraima. Fazendeiros já indenizados e afastados da área indígena retornam com o argumento de que ela não está homologada. Em prol da ordem pública e da justiça social, é preciso acatar a lei que já demarcou essa área contínua e respeitar os direitos históricos, sociais e culturais desses povos que já foram considerados os guardiães das fronteiras nacionais. É responsabilidade do governo – e especialmente deste que tanto prometeu – exercer sua autoridade na observância dessa lei, como também é responsabilidade dos antropólogos manter perenemente acesa a tocha da justiça étnica. A luta pelos direitos territoriais de povos como os Macuxi e os Yanomami, para mencionar os maiores grupos indígenas de Roraima, tem sido um esforço conjunto com antropólogos que, tendo convivido íntima e prolongadamente com eles, ficaram indelevelmente marcados pela sua paciência, sabedoria e respeito aos outros. Na arte da reciprocidade, somos meros aprendizes.

Maio 2003

Posfácio

Vinte anos depois dessa viagem de sonhos à terra de Macunaíma, e após longos e tensos anos em que o Supremo Tribunal Federal analisou e rejeitou os argumentos de políticos e fazendeiros de Roraima para anular a demarcação anterior, os habitantes da Raposa Serra do Sol afirmam que a homologação da T. I. Raposa Serra do Sol, em 2014, diminuiu sensivelmente a tensão social naquele estado. Comemoram a tranquilidade que sentem por estarem a salvo de ataques em suas próprias casa e roças e louvam o valor incalculável que essa tranquilidade tem para os seus habitantes de todas as gerações.

No entanto, a decisão do STF pela demarcação de cerca de 1.750.000 hectares de terra contínua da Raposa Serra do Sol teve um certo gosto de vitória de Pirro. Além de levantar o espectro do marco temporal, deixou um rastro de 19 condições para serem aplicadas a todos os casos futuros, o que traz ainda mais insegurança aos povos indígenas que ainda não têm suas terras demarcadas. Uma análise profunda das consequências dessas condições é útil e necessária para avaliarmos o que, na prática, significa, por exemplo, a quinta condição: “O usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da Política de Defesa Nacional. A instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico a critério dos órgãos competentes (o Ministério da Defesa, o Conselho de Defesa Nacional) serão implementados independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à Funai”. Aqui, a palavra-chave é estratégia. Em seu nome, muitos povos indígenas já foram acintosamente espoliados. Está aí uma das grandes diferenças entre usufruto e propriedade.

Mas, apesar de tudo, os sonhos de paz interétnica continuam a ser sonhados.

Setembro de 2023

Cestaria Ye’kwana

A imagem que abre o post é de autoria de Joana Lavôr


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