Simpósio BVPS | Essa tal classe média (II)

Publicamos hoje o segundo post do simpósio sobre classes médias no Brasil. Como convidadas/os temos Adalberto Cardoso (IESP-UERJ), Angela Alonso (USP), Eduardo Marques (USP) e Reinaldo Marques (UFMG).

Organizado por Celi Scalon (UFRJ), André Botelho (UFRJ) e João Mello (PPGSA e NEPS/UFRJ), o simpósio ouviu especialistas de diferentes áreas das ciências sociais, humanas e literaturas, bem como de várias especialidades dessas áreas, sobre a relevância e a atualidade do tema. O diálogo multidisciplinar entre especialistas e não especialistas em classes médias tem o objetivo de promover trocas teóricas, históricas e empíricas e também investigar a possível multidimensionalidade e transversalidade do tema que discutimos.

Para ler a apresentação geral escrita pelos coordenadores do simpósio, basta clicar aqui. O primeiro post pode ser acessado aqui. Continue acompanhando o simpósio nas próximas quartas-feiras!

Boa leitura!


Sobre as/os convidadas/os:

Adalberto Cardoso é professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e pesquisador associado do Observartoire Sociologique du Changement – OSC/Sciences Po. Autor, entre outros, de Classes médias e política no Brasil: 1922-2016 (2020) e Classes médias no Brasil: estrutura, mobilidade social e ação política (2021), escrito junto com Edmond Preteceille.

Angela Alonso é professora de Sociologia da Universidade de São Paulo. Autora, entre outros, de Treze: a política de rua de Lula a Dilma (2023) e Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-1888) (2015).

Eduardo Marques é professor de Ciência Política da Universidade de São Paulo. Autor, entre outros, de A metrópole de São Paulo no século XXI: espaços, heterogeneidades e desigualdades (2015) e The Politics of Incremental Progressivism Governments, Governances and Urban Policy Changes in São Paulo (2021).

Reinaldo Marques é professor de Teoria Literária, Literatura Comparada e Literatura Brasileira da Universidade Federal de Minas Gerais. Autor, entre outros, de Indiccionario de lo contemporáneo. Prácticas estéticas latinoamericanas en tiempo presente (2021) e Arquivos literários: teorias, histórias, desafios (2015).

1. O que a seu ver identifica/define uma pessoa de classe média? Esses elementos mudaram ou se mantiveram ao longo das últimas décadas?

Adalberto Cardoso: Em minhas publicações sobre o tema, em parceria com Edmond Préteceille, definimos classes médias (sempre no plural) a partir das posições que as pessoas ocupam na estrutura social, tal como capturada pela estrutura das ocupações no mercado de trabalho. Na fronteira inferior dessa estrutura, as classes médias baixas se distinguem da classe operária e das classes populares urbanas e rurais devido às suas ocupações não manuais, em geral de nível técnico, incluindo também trabalhadores não manuais de rotina dos escritórios públicos e privados. Acima deste grupo estão as classes médias-médias, também em ocupações não manuais, porém mais estáveis e menos rotineiras do que as classes médias baixas, com nível mais alto de escolaridade (como professores de diversos níveis, supervisores do trabalho manual, clérigos, artistas etc.). E as classes médias altas são compostas por gerentes não ligados à gestão superior das empresas, cargos qualificados da função pública, profissionais liberais e acadêmicos de modo geral. Na maioria são ocupações que exigem escolaridade superior. Essa escala denota oportunidades de vida ao condicionar o acesso à renda.

A renda familiar per capita média dobra do estrato médio inferior para o intermediário, e deste para o superior. Aumenta também a proporção de brancos nas famílias, a proporção de homens, o número médio de anos de estudo de seus membros, a proporção de membros com ensino superior, bem como a riqueza dos domicílios. Essas características se tornaram mais salientes nas últimas décadas. Tudo isso está demonstrado no livro que escrevi com Edmond: Classes médias no Brasil: estrutura, perfil, mobilidade social e ação política, publicado em 2021 pela UFRJ.

Angela Alonso: Depende de como se define “classe média”. O conceito é, desde sua origem, vago. Descreve mais uma posição diferencial em relação a extremos da estrutura social, acima e abaixo, do que uma identidade social bem definida. Já apareceu como a encarnação moderna da pequena burguesia oitocentista, com um modo de vida bem definido. No miolo do século XX, quando da explosão numérica dos que não estão nem em posições de muito poder social, nem muito subordinadas no Norte global, virou um coletivo genérico para muitos grupos diferentes em inserção no mundo profissional e em gostos culturais, mas associados pela capacidade de consumo assemelhada. Mais contemporaneamente, a categoria foi, de um lado, aditivada com o prefixo neo (“nova” classe média) e, de outro lado, pluralizada (“classes médias”), em um reconhecimento oblíquo da variedade interna que a categoria carrega. A imprecisão da categoria garante desentendimentos em seus usos, conforme o usuário, podendo descrever realidades empíricas radicalmente distintas. Pessoalmente, evito ao máximo. “Estratos médios” me parece mais neutro e permite trabalhar em linha com a ideia de diferentes estilizações da vida, em uma derivação weberiana.

Eduardo Marques: Penso a definição de classes médias a partir da posição na estrutura social, o que envolve ocupações profissionais, nível educacional e renda monetária. Acho que classes médias no plural definem melhor o fenômeno, visto que se trata de mais de um grupo social ocupando os “meios das distribuições”. Tivemos mudanças de longo curso, lentas, associadas à urbanização, ao aumento da escolarização e às transformações que o mundo do trabalho sofreu, mas que tenderam a se acelerar nesse milênio. Embora não tenha dados sobre isso, estimaria que as classes médias baixas se expandiram em um processo de mobilidade ascendente de pequena distância.

Reinaldo Marques: Entendo que o principal critério para definir uma pessoa como pertencendo à classe média é o da renda. Isso se deve ao fato de que, nas sociedades urbanas e capitalistas modernas, em que há uma supervalorização do consumo, o acesso a bens variados – carros, eletrodomésticos, equipamentos eletrônicos etc. – constitui sinais visíveis do pertencimento de uma pessoa à classe média e indica seu prestígio social. Esse critério, contudo, deve ser articulado a outros fatores, tais como o acesso à educação de nível superior, ter qualificações profissionais permitindo o exercício de profissões liberais, além de fatores de natureza cultural, que permitem produzir identificação cultural, como acesso a atividades artísticas e culturais. Contudo, nas sociedades pós-industriais, com o impacto das novas tecnologias no mundo da produção – a exemplo da robótica, do mundo digital, levando a novas relações de trabalho –, esses elementos estão se alterando, entrando em novas dinâmicas sociais, que refletem na constituição dos setores médios da sociedade.

No mundo contemporâneo, conceitos sociológicos como o de classes sociais parecem não dar conta da complexidade das novas relações sociais e culturais existentes, das formas de produção e de trabalho, fragmentando a realidade social com as diversas subjetividades envolvidas. Tais categorias precisam ser pensadas de forma interseccional, considerando relações de gênero e étnico-raciais, por exemplo. Assim, o conceito de classe média não traduz mais uma realidade homogênea, estável e fechada, não dando conta de apreender um mundo social e econômico cada vez mais complexo, dinâmico, fragmentado e instável. Ademais, uma pessoa pode pertencer a uma classe social em termos de renda, mas se identificar com valores e comportamentos de outras classes sociais. Como se pode ver de modo generalizado na nossa realidade, indivíduos pertencentes aos setores médios da sociedade aspiram, em termos de ascensão social, fazer parte dos grupos dominantes e com eles se identificam culturalmente, abraçando seus valores e sua ideologia.

2. Como o tema aparece no seu campo de pesquisa e qual a relevância dele para os fenômenos que estuda?

Adalberto Cardoso: O tema é polêmico no Brasil e no mundo. A literatura econômica sobre ele, com exceção de alguns estudos pioneiros nos anos 1960 e 1970, tende a definir as classes médias pela renda, em geral tomando como tal os estratos intermediários da distribuição da renda (por exemplo, entre o 4º e o 8º decil, ou os 40% acima da mediana etc.). No Brasil, ficou famosa a polêmica em torno dos estudos da FGV coordenados por Marcelo Neri, que afirmou, a partir do crescimento da “Classe C”, que o Brasil havia se tornado um país de classe média. Essa definição serve a comparações internacionais e às pesquisas de mercado, mas é de pouca valia sociológica. São comuns também estudos que definem as classes médias pelo seu padrão de consumo e seu acesso à estabilidade e à segurança socioeconômica, como, por exemplo, ter casa própria, carro novo, bens diferenciados, colocar os filhos em escolas privadas e na universidade. Mas essa definição remete, na verdade, às classes médias altas, deixando de lado a imensa gama de segmentos médios que nossa definição captura de forma mais sistemática.

Angela Alonso:[1] Classes sociais não são atores coletivos, são categorias demográficas, descrevem os que estão em uma posição similar na estrutura social. E nem todos os que estão na mesma posição social agem politicamente da mesma maneira. A literatura sobre movimentos sociais, desde os anos 1970, cresceu justamente apontando esta distinção. O ponto geral é que a posição social compartilhada não é o mesmo que ação política coletiva. Entre uma coisa e outra, há o fenômeno da formação de laços de solidariedade, como se dizia antes, ou a ativação de redes interpessoais, como se diz agora, isto é, a conformação de vínculos efetivos entre pessoas concretas, sem os quais a mobilização política não acontece. Em outras palavras, os atores políticos coletivos não emergem automaticamente de classes sociais. Deste ponto de vista, não vejo como falar em protagonismo político da classe média per se.

Eduardo Marques: Faz tempo que não trabalho com o tema de perto. Nunca fui especialista em estratificação, mas me aproximei do assunto ao desenvolver estudos sobre segregação social em espaços urbanos. Isso me levou a trabalhar com análises espaciais (basicamente análise fatorial, luster e SIG) e dados de estratificação gerados por outros colegas (em especial, por Celi Scalon e Rogério Barbosa).

Reinaldo Marques: No campo da pesquisa no âmbito dos estudos literários e culturais, o tema da classe média reverbera de diferentes maneiras. De um lado, tendo em vista a capacidade mimética das obras literárias e artísticas, pode ser apreendido por meio da representação que dele elas fazem. No caso da literatura, existem inúmeras obras que retratam o mundo dos indivíduos das classes médias, com seus valores e comportamentos, em suas relações de força conflituosas com as realidades e sujeitos das classes populares e dominantes, como podemos ver em romances de Aluísio de Azevedo e Graciliano Ramos.

De outro lado, pensando do ponto de vista da recepção, cabe considerar que o acesso à leitura de obras literárias é muito maior entre os indivíduos pertencentes às classes médias e alta, tendo em vista o mercado editorial e o custo dos livros. Os sujeitos pertencentes às classes trabalhadoras do mundo urbano e agrícola, de modo geral, se veem excluídos do acesso a esses bens, na medida em que o custo dos livros se mostra incompatível com a renda que recebem. Não obstante, eles atribuem grande valor às obras literárias e artísticas. Na atualidade, percebo essa questão nas salas de aula dos cursos de letras, com a presença maior de estudantes negros e indígenas em razão das políticas de ações afirmativas, deixando a universidade de ser privilégio da classe média. Nota-se, hoje, uma presença maior de estudantes das classes populares, tornando o diálogo mais rico e diversificado. Esses estudantes, porém, têm mais dificuldade de acesso aos livros em razão do fator renda, o que gera desafios não apenas para eles, mas também para os professores e os métodos de ensino e aprendizagem. Em contrapartida, têm uma proximidade muito grande com a cultura visual – filmes e séries no streaming, por exemplo – e a canção popular – como o rap e o funk, expressões de jovens da periferia –, exigindo pensar o rico diálogo da literatura com as outras artes e expressões culturais, especialmente na contemporaneidade.

3. Como você vê o protagonismo político desses grupos, especialmente, nas últimas duas décadas?

Adalberto Cardoso: A meu juízo não é possível compreender a dinâmica política do Brasil contemporâneo sem menção à ação das classes médias. Como elas vêm crescendo numericamente (ou ao menos cresceram no período estudado no livro que mencionei, que cobre 2010 a 2014), as classes médias têm se tornado eleitoralmente cada vez mais relevantes. Além disso, juntamente com as classes superiores, as classes médias têm um poder de pautar o debate público – tanto nas mídias tradicionais quanto nas mídias sociais – que as classes mais baixas não têm. É  relevante, sobretudo, a adesão (prática e discursiva, embora muito seletiva) ao tema da corrupção, adesão justificada por ideologias em geral conservadoras, como a meritocracia (em um país muito desigual e que perpetua desigualdades de oportunidades desde o berço), o neoliberalismo, a ideia de que o Estado é ineficiente e ineficaz (por oposição ao mercado) etc. E uma parcela (em particular das classes médias-médias e médias baixas) é muito conservadora nos costumes (antifeminismo, homofobia, anti-aborto), embora seja muito condescendente com a violência letal do Estado contra os mais pobres. Esses temas marcaram o debate público no Brasil nos últimos anos (desde pelo menos o chamado “mensalão”, em 2005), e constituem propriamente o político como arena de disputa dos fins da ação pública. As classes médias foram e continuam centrais nessa constituição.

Eduardo Marques: Certamente vem representando um elemento central nas transformações da política brasileira nas últimas décadas. Contrariando os modelos de estudo da democracia baseados na teoria da modernização, que preconizam que a formação das classes médias é um garantidor das democracias, uma parte importante desses grupos (em especial os que ascenderam recentemente) expressam preferências políticas antidemocráticas e autoritárias.

Reinaldo Marques: Em minha opinião, houve acentuado avanço do protagonismo político das classes médias, especialmente urbanas, nas duas últimas décadas. Nos dois primeiros governos do presidente Lula e o de Dilma, com as políticas voltadas para melhorar o rendimento de setores populares, muitas pessoas melhoraram suas condições de vida e ingressaram na classe média baixa, acarretando um crescimento das classes médias. Contudo, setores das classes médias mais alta e média não se sentiram contemplados com as políticas governamentais. Tal descontentamento se expressou no golpe contra a presidenta Dilma e preparou o terreno para o bolsonarismo, que me parece expressão do protagonismo político das classes médias, encorpada pela ascensão de muitos oriundos de setores populares, especialmente por parte do público evangélico.

4. Como você vê a relação das classes médias com as políticas públicas (educação, saúde, habitação, por exemplo)?

 

Adalberto Cardoso: Se tomarmos as classes médias em suas múltiplas configurações, temos que admitir que essa relação não é homogênea. As classes médias baixas clamam por serviços públicos de qualidade, por não poderem pagar por eles no mercado. Mas parcela não desprezível dá seu aval ao discurso neoliberal hegemônico, em uma contradição irresolúvel no âmbito de sua identidade social. Uma parte relevante das classes médias-médias é composta por servidores públicos e, portanto, sofre as pressões das outras classes sociais pela melhor qualidade dos serviços, sendo um dos grupos responsáveis pela luta por essa melhoria. Tendem a ter posições mais progressistas, e nessa camada (e em uma parte das classes médias altas) se encontra um conjunto amplo de intelectuais ativos na esfera pública, disputando os significados do que está em jogo.

De qualquer modo, parte do desprezo das camadas mais altas das classes médias às políticas públicas de bem-estar decorre do fato de que elas compram esses serviços no mercado, e essa é uma marca de sua distinção e de sua capacidade de transferir a seus filhos as posições privilegiadas que ocupam. Sua adesão ao “Estado mínimo” ou ao neoliberalismo é um elemento de seu etos de classe marcado pela luta por manter seus privilégios, transferidos de geração a geração. Esse é um dos mecanismos mais profundos de reprodução das desigualdades no Brasil.

Eduardo Marques: Diria que a relação é ambígua, já que as classes médias altas escaparam para a provisão de políticas via mercado (escolas particulares, planos de saúde etc.), e as baixas utilizam fortemente os serviços públicos, mas almejam deixá-los assim que possível. Portanto, o processo de ascensão recente foi acompanhado pelo desenvolvimento de um conjunto de provedores privados de serviços de baixo preço e baixa qualidade.

Reinaldo Marques: A meu ver, as políticas públicas relacionadas à saúde, educação e moradia sempre foram predominantemente voltadas para as classes médias, sobretudo as urbanas. São elas que têm maior poder de pressão sobre o Estado, o orçamento e as políticas públicas, maior capacidade de expressar e impor suas demandas. Esse é um vetor que ajuda a entender o enfraquecimento de muitas políticas públicas direcionadas às classes populares, como o Mais Médicos, Minha Casa Minha Vida, ocorrido nos últimos dez anos, e só retomadas agora com o terceiro mandato do presidente Lula. Entre nós, a classe média não é uma aliada das lutas dos setores populares da sociedade, mas sim dos interesses e projetos da classe dominante, e com ela se identifica. Isso explica parcialmente o forte conservadorismo da sociedade brasileira. Parece-me que uma pessoa pode pertencer à classe média em termos de renda; mas, em termos do imaginário, das identificações culturais, se inclui nas classes mais elevadas, trabalhando pelos interesses delas. Importa entender o imaginário aqui como a dimensão virtual do real sempre em devir, podendo se atualizar ou não na realidade empírica, e não como sua negação. Isso indica que um fenômeno pode se situar em diferentes níveis de realidade, exigindo abordagens transdisciplinares. Daí o grau problemático de conceitos como o de classes sociais, que procuram traduzir fenômenos de natureza multifuncional, muito complexos.


Nota dos editores

[1] A autora condensou as respostas das perguntas 2, 3 e 4, justificando que elas se encontram interligadas na literatura com a qual trabalha.


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