BVPS Reportagem | Silviano Santiago dedica prêmio Camões “a Mário de Andrade, meu mestre”

Terça-feira, dia 14 de novembro. Manhã quentíssima no Rio de Janeiro. Biblioteca Nacional. Auditório Machado de Assis lotado. Aclimatado, o calor que se sentia lá dentro era de outra ordem. Pessoas de diferentes áreas – da literatura, das artes, da universidade, estudantes – e de diferentes gerações – idosos, maduros, jovens, muito jovens – que compõem os círculos mais próximos do agraciado com o maior prêmio da língua portuguesa, compartilharam juntos aquela espécie de eletricidade que nos liga em momentos únicos.

Num mundo em guerras reais e simbólicas, geopolíticas e entre conterrâneos, foi uma grande experiência compartilhar, ainda que por algumas horas, o estar lado a lado e não o este é o meu lado, aquele é o seu, ou qualquer divisão que nos tem diminuído, apequenado. Sem triunfalismos, sem traços grandiloquentes, Silviano simplesmente nos deu uma experiência de grandeza do humano, demasiado humano. É deste que vive a literatura, de que vivemos nós.

Hospedado em seu mestre, Mário de Andrade, Silviano apostou no inacabado, no aberto e no sentido potencialmente democrático do movimento cultural em curso, que transforma novos atores sociais em novos autores e, dessa forma, nos transforma a todos, cidadãos, leitores.

Queremos agradecer a Silviano pela sua dedicação e realização na transformação da língua literária brasileira e portuguesa em longos anos de ensino, orientação, pesquisa, jornalismo cultural e escrita. Silviano é parte do presente e do futuro, já não precisa repetir as palavras de Mário no mesmo discurso por ele evocado: “Mas isso decerto ficará para outro futuro movimento modernista, amigo José de Alencar, meu irmão”. Muito obrigado pelo presente cheio de futuro, Silviano!

P.S.: Encerrada a cerimônia, Silviano atravessou a Cinelândia com seu Camões e reuniu-se com amigos e amigas num mesão de almoço no Amarelinho. Estudantes do NEPS do IFCS/UFRJ presentes fizeram questão de convidá-lo. Ao mestre com carinho.

Abaixo, confira o discurso do premiado. Para conferir a repercussão do Prêmio Camões em Portugal, clique aqui.


Discurso de Silviano Santiago ao receber o Prêmio Camões

Ser contemplado com um prêmio literário da altitude do Prêmio Camões é motivo de autoestima e de grandes alegrias. A vida profissional do escritor, dedicada ao ensino da Literatura em universidades, somada à prática da crítica literária e cultural em periódicos e ainda à variada e expressiva produção artística em livros, estava sendo distinguida. Em Lisboa, o meu trabalho intelectual − disperso no tempo e no espaço − se unifica, em consequência de inesperada decisão de uma comissão de especialistas, aos quais envio os meus sinceros agradecimentos.

O intenso foco de luz camoniano realça, como se já tivesse chegado à condição de um todo, o trabalho do cidadão brasileiro e a sua entrega à educação, ao jornalismo cultural e à arte. Momentaneamente, eu, apologista da diferença desconstrutora, me reconheço indivisível e perco as contradições naturais de experiência existencial singular nos difíceis e complexos tempos, que nos coube viver.

Toda padronização de vida e obra, se explicitada por premiação vinda do alto, significa o minuto de uma avaliação jubilosa.

Mas o que realmente significou receber o Prêmio Camões no segundo semestre do ano de 2022?

A pandemia tinha instaurado o medo e a infelicidade no planeta. Desaparecem as cenas de multidão e se multiplicam as fotos de covas e de retratos de pessoas tristes e ensimesmadas. O silêncio e o caos tomam conta das famílias e das ruas que, no Brasil, padecem o descaso administrativo do Ministério da Saúde e do próprio governo nacional. Não há clima digno para ambientar e encorajar o fluxo da autoestima e da alegria sentido pelo cidadão brasileiro contemplado.

Nosso 2022 não será fácil de ser esquecido. Em todas e todos, da Mongólia à Patagônia, o ano deixou marcas à flor da pele e profundas.

No Brasil, o sofrimento anônimo e comunitário não foi diferente do sentimento íntimo, talvez tenha sido até mais intenso. Não há que nomear hoje todos os desastres mortais por que passaram nossos entes queridos. Os acontecimentos ainda são recentes e queimam nossa sensibilidade fragilizada. Nesta manhã, entre os presentes aqui na Biblioteca Nacional, as vidas humanas de então se assemelham a feridas abertas na memória coletiva e individual.

Ao final do ano de 2022, o resultado das eleições trouxe alento. Trouxe de volta ao povo brasileiro a possibilidade de se concretizar no dia a dia a esperança e o sonho duma nação mais igualitária e solidária. Era urgente a reconstrução meticulosa de um país da América do Sul que esteve a perigo de desaparecer no caos.

Mas persiste o fato de eu ter recebido o prestigioso Prêmio Camões no segundo semestre de 2022. Ele se confundiu ontem com a parada momentânea da História nacional e universal numa “estação do inferno” (saison en enfer), para lembrar o célebre poema em prosa de Arthur Rimbaud. Tenho de cor as primeiras palavras do poema. Cito-as: “Sentei a Beleza nos joelhos e a achei amarga”.

E, refletindo minimamente, mais amarga me apareceu a Beleza poética no plano da literatura nacional.

A própria atividade profissional, a que o professor, o crítico cultural e o romancista tinha dedicado toda a vida, estava sendo finalmente aberta para novas, mais abrangentes e mais esperançosas experiências artísticas que, num clamor por justiça, imputam um sentimento de culpa às gerações passadas − à minha própria geração.

Desde o Renascimento europeu e as viagens transcontinentais, temos sido e ainda somos coniventes com uma das mais bem acolhidas e mais injustas civilizações implantadas no Sul pelo Ocidente. Uma civilização indígena do Novo Mundo tinha sido contemplada pela notável tradição ocidental e, no ambiente em que cotidianamente circulamos aqui e no estrangeiro, emergia uma dor secular. E havia também uma exigência de muitas e de muitos injustiçados, pouco ouvida. Na história nacional ouvia-se um grito amordaçado de mágoa. Séculos de sofrimento exigem hoje uma reparação urgente.

Repito-me. Aos 86 anos de idade, sentia-me momentaneamente unificado, como se todo o ontem estivesse a se concretizar num agora dionisíaco, e, no entanto, vivia como se a obra tripartida que construíra a tão duras penas, e que justificara a opção pelo meu nome e obra em Lisboa, fosse motivo menor de vaidade pessoal e bem-estar nacional; fosse, na verdade, motivo maior para eu me julgar um cara-pálida, a me somar a um arrependimento coletivo desejado, esperado, mas nunca concretizado.

Sim, a literatura brasileira que eu expressei e continuo a expressar em língua portuguesa está a ponto de passar por abalos sísmicos que serão duradouros. Foram desejados e esperados. Agora, são exigidos e são concretizados.

Bem-vindos sejam os novos protagonistas! Elas e eles ganham o palco pela força também secular da resistência e se representam humana e artisticamente por emoções e sentimentos originários e autênticos.

Sou premiado, mas estou parado nos versos recordados de Rimbaud. Ainda sento a Beleza nos joelhos e a acho amarga.

Piso novamente o chão natal e lanço os olhos para a imensidão do Brasil, enriquecido ao norte pelas águas caudalosas do Amazonas e banhado a leste pelo oceano Atlântico. Não me pergunto, afirmo que é chegado o momento de liberar a literatura brasileira às águas amazônicas e às atlânticas africanas e a todas as correntes diaspóricas.

As naves multiétnicas não ancoraram em Porto Seguro. Mas agora trafegam em liberdade pelas águas democráticas e cidadãs da década que se abriu em janeiro de 2022. Suas tripulações amazônicas, atlânticas e mediterrâneas, só recebiam permissão para trafegar como cidadãs plenas se sob o comando dos dedicados etnógrafos (nacionais e estrangeiros), ou se sob a bandeira menor e suplementar de acervo folclórico ou de literatura oral brasileira.

Lanço os olhos para a infinita imensidade desse agora que vivo e vivemos e dedico o Prêmio Camões a Mário de Andrade, meu mestre.

Em 1942, proibido pelo Estado Novo de falar no auditório do Itamaraty, Mário lê, na Casa do Estudante do Brasil, o seu sofrido testamento sobre o legado do Modernismo brasileiro. Ao final, a reflexão ensaística do mestre se torna pessoal e se exprime por palavras que roubo no momento em que agradeço a presença ilustre de todas e de todos neste auditório. Repito as palavras de Mário de Andrade:

E se agora percorro a minha obra já numerosa e que representa uma vida trabalhada, não me vejo uma só vez pegar a máscara do tempo e esbofeteá-la como ela merece. Quando muito lhe fiz de longe umas caretas. Mas isto, a mim, não me satisfaz.

Muito obrigado.


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