Coluna Palavra Crítica | Dizer a verdade sobre si: rapazes, pérolas, por André Botelho

A Coluna Palavra Crítica publica hoje o texto “Dizer a verdade sobre si: rapazes, pérolas”, de André Botelho, professor do IFCS e do PPGSA da UFRJ. O autor estuda narrativas autobiográficas como problema sociológico e organizou a publicação das Memórias de Pedro Nava para a Companhia das Letras.

O ensaio é resultante do encontro de André Botelho com Mathieu Lindon na Livraria da Travessa de Botafogo, com mediação de Matheus Baldi (PUC-Rio), no dia 8 de novembro de 2023, por ocasião do lançamento no Brasil de dois livros do escritor francês: Hervelino e O que amar quer dizer. As relações intelectuais e afetivas deste autor com o escritor Hervé Guibert e o filósofo Michel Foucault não surgem apenas como temas nas respectivas obras, mas também como formas de construção literária da subjetividade, como discute Botelho em seu texto. Por meio de um exercício crítico, os afetos e pensamentos se entrecruzam, em uma prática amorosa homoafetiva que se manifesta no plano da sensibilidade e também da ação.

Boa leitura!


Dizer a verdade sobre si: pérolas, rapazes

Por André Botelho (UFRJ)

J’adore les livres de Mathieu Lindon. Semana passada, dia 08 de novembro, tive a oportunidade de conversar com ele sobre seus dois livros recém-publicados a convite da Editora Nós. Hervelino, lançamento, e O que amar quer dizer, nova edição brasileira. Este é o relato de sua convivência, quando mais moço, com Michel Foucault e outros jovens, especialmente Hervé Guibert, objeto do relato no segundo livro, o Hervelino. 

Recém-lançado na França, Une archive forma com os dois outros mencionados uma espécie de trilogia, dedicado aos seus mortos. Aguardando publicação no Brasil, o último é uma biografia do pai de Mathieu, Jerôme Lindon, editor da Les Éditions de Minuit, que publicou todo o Nouveau Roman, de Alain Robbe-Grillet a Claude Simon, além de Marguerite Duras, Samuel Beckett e muitos outros.

Os livros de Mathieu Lindon me ensinam como poucos “o que amar quer dizer”. Algo que sempre aprendo também com livros. Mas, cada vez que volto aos de Lindon, novas descobertas tornam-se possíveis. O que amar quer dizer? Diz, fundamentalmente, “Dizer a verdade sobre si” para lembrar o último Michel Foucault, justamente aquele com quem Mathieu conviveu na intimidade. 

Não vou conseguir explorar as afinidades e diferenças entre as ideias de Foucault e o projeto literário em curso de Lindon neste momento com o cuidado que o tópico pede. Mas acentuo que o paralelo que se pode traçar entre eles é da ordem do diálogo, e não de qualquer espelhamento ou aplicação à literatura de princípios filosóficos já delineados. Primeiro porque Mathieu Lindon é um grande narrador. Segundo porque falar num “último” Foucault é, para mim, um recurso para acentuar o quanto as ideias em que vinha trabalhando, quando foi surpreendido pela morte, ficaram, assim, inacabadas, abertas, pulsando. O último curso de Michel Foucault no Collège de France, em 1980-1981, marca um importante deslocamento nas suas preocupações básicas, já delineadas, em pontos gerais, no último volume de História da sexualidade: o cuidado de si. Suas pesquisas anteriores, praticamente restritas ao binômio saber e poder, são reorientadas para uma terceira dimensão, pelo que ficou sendo conhecido como “modos de subjetivação”, colocando de maneira explícita a seguinte questão: de que maneira o sujeito foi estabelecido como objeto do conhecimento possível, desejável ou até mesmo indispensável, em diferentes momentos históricos e contextos institucionais?. 

As “técnicas de si” são justamente os procedimentos pressupostos ou prescritos aos indivíduos para fixar sua identidade, mantê-la ou transformá-la, graças a relações de domínio de si sobre si ou de conhecimento de si por si. Lindon desenvolve seu diálogo com esse Foucault tardio, inacabado e aberto. Os críticos costumam assinalar, com mais ou menos maldade, que Mathieu teve sorte por conviver com pessoas tão interessantes. Isso é fato. Da minha parte, porém, quero acentuar que afortunados mesmo são os seus amigos, que como Foucault e Hervé Guibert vivem novamente na sua narrativa. Trata-se então de um diálogo sobre a transparência do eu, para lembrar o tema rousseaniano que está na base da escrita biográfica moderna, redimensionada especialmente como um cuidado e uma prática de si no amor e na ética homoafetivas. Fosse o caso de prosseguir esboçando esse paralelo, eu chegaria, especialmente, ao capítulo “Os rapazes”, do já citado terceiro volume do História da sexualidade.

* * *

Lendo Hervelino e relendo O que amar quer dizer me impressionam os deslocamentos que o díptico promove em termos espaciais e temporais e de imaginários que querem vencer o espaço e o tempo. No primeiro, sem sair de Paris, e, na verdade, praticamente sem sair do apartamento de Michel Foucault da rua de Vaugirard, somos levados à Grécia Clássica: o Filósofo, o convívio íntimo dos rapazes aprendizes (erómenos) com o homem mais velho (erastês). O homem mais velho que não é o pai. Em Hervelino, vamos para Roma, literalmente, ainda que, novamente, pouco saíamos de uma espécie de domínio francês na cidade – a Villa Medici na Colina do Píncio, onde, desde 1803, está alojada a Academia Francesa em Roma. O deslocamento e o não-descolamento para fora da França, aqui, como no livro anterior, têm camadas e mais camadas de significados. Da Grécia Clássica a Roma da decadência. Não exatamente a contada pelos seus próprios historiadores que fizeram questão de acentuar os excessos sexuais luxuriosos de suas grandes personalidades públicas, especialmente os Césares. Mal comparando, Ao amigo que não salvou minha vida, de Hervé Guibert já cumpriu de certa forma esse papel público – e ao seu tempo bastante polêmico – ao expor pioneiramente o definhamento do eu-corpo aidético. Então, Mathieu Lindon pôde se concentrar no privado, no cantar a amizade entre dois homens como uma ética homoafetiva. A sexualidade noutros registros, o do afeto, do humano desejo de uma pessoa por outra, nem sempre correspondido, nem sempre consumado, como tão bem mostra a poesia homoerótica latina, como lemos na brilhante coletânea, com organização coletiva, Por que calar nossos amores?.

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Ao amigo que não salvou minha vida, de Guibert, termina com a frase: “Finalmente voltei a ter minhas pernas e braços de criança”. Hervelino, o relato de Lindon sobre sua convivência em Roma nos anos finais de Guibert, começa com a frase: “Hervelino: A palavra ficou presa na garganta”. Décadas os separam. Mas muito mais tempo e mesmo outras temporalidades, como sugerido, parecem os unir. Há uma natureza particular na ética homoafetiva que a narrativa de Lindon quer apreender, desafiando noções convencionais de tempo e espaço, sem, contudo, pressupô-la fora da interação histórica. Ao amigo que não salvou minha vida e Hervelino me parecem discrepar da tendência de pensar a escrita como cura, como uma espécie de terapêutica que tem tentado domesticar a prática biográfica e memorialística contemporaneamente, buscando lhe conferir ao menos uma função social útil – dessa feita, a da cura numa sociedade “medicalizada” e “adoecida” pelas contradições do individualismo avançado e do neoliberalismo galopante em todas as relações, das mais estruturais e públicas às mais cotidianas e íntimas. A questão não é simples e não posso desenvolver o argumento a contento nestas notas. Muitas perguntas me ocorrem e talvez, aos/às leitores/as. Mas, não creio que em ambos os livros se possa encontrar consistentemente qualquer aposta de redenção ou salvação. Em Hervelino arrisco afirmar que certamente não. Por isso, dizia lá atrás que os livros de Lindon aqui considerados não perfazem um campo da moral, mas, sim, da ética. Dizer a verdade sobre si: “Não adianta estou feliz em escrever, mas não sinto menos falta dele”, diz Mathieu no livro. 

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Assim como as noções de “prática” e “técnica” de si em Michel Foucault problematizam qualquer ideia de uma subjetividade inerente ou transcendente, derivada em grande medida da cultura judaico-cristã, o “eu” e o “outro” na narrativa de Mathieu Lindon são laboriosamente construídos, para além e talvez contrariando a experiência que fazemos de nós mesmos, as quais sempre nos parecem originárias e transparentes. Deste modo, faria sentido falar no eu como projeto biográfico em suas narrativas, mas apenas na medida em que “biográfico” não constitua um pressuposto, e sim um ponto de chegada contingente e instável. O que contrasta com outros experimentos narrativos biográficos contemporâneos, quer na literatura brasileira, altamente mobilizada pela noção substantiva de um eu inscrito nas políticas das origens e ancestralidades subalternizadas no processo histórico de uma sociedade desigual, por exemplo; ou mesmo na francesa como os experimentos de certa forma “néo-realistas” da sociologia biográfica de um Didier Eribon, e seu impressionante Retorno a Reims. Fico tentado a avançar na comparação entre eles, mas não posso. Deixo assinalado, contudo, que eles parecem competir entre si por Foucault, se não diferentes, descontínuos. Eribon prende-se mais à lógica do binômio saber e poder, que ele também qualifica a partir da sociologia de Pierre Bourdieu e de sua crítica; a narrativa de Lindon está mais reorientada para aquela terceira dimensão mencionada anteriormente, a dos “modos de subjetivação”. As relações entre o cuidado de si sob diferentes formas e as diferentes formas de conhecimento de si que constituem a subjetividade são a matéria da narrativa de Lindon. Da sua “alegria”, como acentuou no debate que tivemos no Rio de Janeiro com Matheus Baldi, estudante da PUC. Porém, o mais intrigante na sua alegria de escrever é, para mim, sua capacidade de imprimir à forma narrativa – uma técnica de si decantada nos longos lutos que o ligam aos sujeitos da sua escrita e manejada com maestria por ele – uma juventude radical. E, sobretudo, a qualidade com que realiza isso. Uma forma tão jovem que acaba por, não diria superar, mas suprimir em nome de uma nova ética o velho desafio de “recuperar o tempo perdido”. Hervelino é um experimento de supressão do próprio tempo. “Escrever sobre Roma é passar por cima de tudo o que não ouso escrever”, diz seu narrador.

* * *

Não se deixe de ler as dedicatórias de Hervé Guibert a Mathieu Lindon apensadas por este ao final do livro. Mais do que a documentação de uma amizade entre grandes escritores e leitores um do outro, ou mesmo um trabalho de compilação para pesquisadores acadêmicos, segundo a versão do autor do livro, elas são peças cruciais da ética homoafetiva forjada na e pela narrativa: a narrativa de Hervé, biografado, ganha voz própria e pode afetar o sentido da narrativa de Mathieu, biógrafo. Hervé, assim, se “hospeda”1 em Hervelino, forjando um diálogo, uma relação de repetição, diferença e igualdade. 

Relações no tempo e no longo aprendizado do jogo de entrar e dele sair. Hervelino mostra-nos, simultaneamente, o cuidado de si homoafetivo dentro e fora do tempo, como se fosse possível surpreender, ao mesmo tempo, sua natureza particular e sua interação histórica constante. Hervelino = Hervé + Lino. Acabo por encontrá-lo (casualmente?) na já mencionada coletânea de poesia latina, no Poema 47 de Marco Valerio Marcial (40-104 d.c.):

Pedagogo da turma cabeluda,
Lino!, a quem Postumila chama dono
dos bens que tem, ao qual confia rica
as joias, o ouro, a adega, os concubinos.
Provada, assim, eterna lealdade,
tua patrona de prefere a todos:
socorras, peço, meu furor infausto
e cuides vez ou outra negligente
daqueles que meu coração inflamam,
eles que dia e noite anseio ver,
repleto de desejo, em meu regaço
lindos, gêmeos, da cor da neve, iguais,
grandes, já não meninos, porém, pérolas

 


Nota

  1. Para lembrar a categoria de Silviano Santiago que eu já discuti nas páginas desta BVPS, veja aqui ↩︎
Mathieu Lindon na Livraria da Travessa de Botafogo.
André Botelho, Matheus Baldi e Mathieu Lindon.
André Botelho, Matheus Baldi, Mathieu Lindon e a intérprete do convidado, Claire.

Crédito da imagem que abre o post: Gavin Houghton https://www.gavinhoughton.co.uk/


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