BVPS Autorais | Brasilio Sallum Jr.

Publicamos hoje o segundo texto de Brasilio Sallum Jr. (USP) na série BVPS Autorais: “Notas sobre o surgimento da sociologia política em São Paulo”, originalmente publicado em 2002 na revista Política & Sociedade.

Neste texto, o sociólogo analisa uma tradição intelectual que identifica como “sociologia política” nas ciências sociais brasileiras, formada a partir da cadeira de Sociologia I da USP e fortemente marcada pela associação entre dominação política e conflito de classes, bem como pelas questões da dependência e do desenvolvimento econômico brasileiros.

Para conferir o primeiro texto de Brasilio publicado na série Autorais, clique aqui.

Boa leitura!


Notas sobre o surgimento da sociologia política em São Paulo[1]

Por Brasilio Sallum Jr. (USP)

O tema desta reunião acadêmica, a publicação próxima de uma revista que pretende abrir espaço para trabalhos de Sociologia Política e a simpatia do convite, fizeram-me aceitar com satisfação a sugestão de falar sobre o surgimento da disciplina na Universidade de São Paulo (USP). Não serei, porém, totalmente fiel ao pedido, pois, de um lado, a sociologia das ideias não é minha especialidade e, de outro, desejo fazer referência a alguns aspectos cognitivos dos trabalhos que marcaram a Sociologia Política surgida na USP.

É preciso lembrar, de início, que na época em que a Sociologia Política surgiu em São Paulo, ela não se distinguia, como hoje, da Ciência Política. Pelo menos até o início dos anos 1980, as duas disciplinas se confundiam. Isso fica evidente quando se lê um número especial da revista Dados, organizado no início da década, para discutir a formação da Ciência Política no Brasil[2]. De uma maneira geral, os autores dos artigos lá publicados não têm preocupação de distingui-la da Sociologia, a não ser pela especificidade dos fenômenos estudados. Daí que a denominem, em várias ocasiões, de Sociologia Política. Bolívar Lamounier (1980) chega mesmo a salientar, em artigo daquele número especial, que estavam ocorrendo mudanças no exercício da disciplina que indicavam, segundo ele, uma convergência futura dos diferentes esquemas conceptuais usados na análise política. Infelizmente, como se sabe, ocorreu o contrário. As diferenças entre uma e outra disciplina se acentuaram cada vez mais.

De qualquer modo, em São Paulo, no âmbito da USP, a Sociologia Política surgiu de forma bastante tardia e como ramo pouco diferenciado da Sociologia. Ela foi tardia tanto em termos paulistas como nacionais. Embora no mundo acadêmico paulista já se fizesse Sociologia de alta qualidade desde os anos 1940, até o final da década de 1950 eram muito incipientes as análises sociológicas da política[3]. Além disso, em São Paulo começa-se a fazer Sociologia Política mais tarde que em outras partes do país. Recorde-se que no Rio de Janeiro, já no final dos anos 1940, Victor Nunes Leal apresentava como tese na Universidade do Brasil o seu clássico Coronelismo, Enxada e Voto. E já nos anos 1950 os trabalhos do ISEB fizeram da política e do Estado o centro de suas preocupações. Não pretendo discutir aqui tais diferenças temporais no surgimento da disciplina nas diversas regiões do país, embora elas possam ser relevantes para a reconstrução de sua história no Brasil. Vou me ater ao contexto paulista.

Neste âmbito, não há dúvida que a Sociologia Política ganhou força pela ação dos docentes que, na USP, vinculavam-se à cadeira de Sociologia I, dirigida por Florestan Fernandes desde 1954[4]. Creio que a gênese do padrão de sociologia política que acabou predominado na USP esteve vinculada, basicamente, a dois processos de mudança. Um deles teve como epicentro as relações acadêmicas vigentes no interior da cadeira de Sociologia I daqueles tempos[5]. O outro, embora afetando a vida acadêmica, tinha seu núcleo na política nacional. Mais especificamente, vinculava-se às polarizações políticas geradas pela crise do regime político de democracia restrita, populista e de orientação nacional-desenvolvimentista vigente antes do golpe de 1964. Em suma, creio que houve uma associação entre estes dois processos, um centrado na vida acadêmica e outro na política nacional, e a emergência da Sociologia Política em São Paulo.

No âmbito acadêmico, o processo de mudança foi impulsionado por tensões que se manifestaram já ao final dos anos 1950 entre Florestan Fernandes, regente da Cadeira de Sociologia I, e os seus principais assistentes – Fernando Henrique Cardoso, Otávio Ianni e alguns outros que orbitavam em torno deles. Que tensões eram essas? Naquele grupo de docentes e investigadores altamente qualificados e competitivos formado por Florestan Fernandes, as tensões derivaram, como seria de esperar, da busca da autonomia dos assistentes em relação ao catedrático que, no caso, não era apenas regente oficial da Cadeira, mas também seu líder intelectual[6]. Embora o caráter hierárquico daquela organização da vida acadêmica estivesse no cerne das tensões mencionadas, estas não se manifestaram diretamente como oposição ao catedrático ou à cátedra. Primeiro, porque o próprio Florestan opunha-se à organização da universidade em cátedras. Segundo, porque os principais assistentes compartilhavam em parte o poder do catedrático. Além do mais, não havia espaço político-institucional para uma disputa frontal deste tipo, pois a Cátedra era um arranjo de poder muito autocrático. Isso pode soar exagerado hoje, quando este tipo de hierarquia acadêmica desapareceu. Mas, de fato, não estou carregando nas tintas. Como regente da Cadeira, Florestan, como todo catedrático, dirigia, mandava, contratava e podia demitir seus assistentes. Como todos os catedráticos, podia “fazer chover”.

A disputa acabou se manifestando no plano intelectual e na mobilização de recursos para o exercício e a expansão da atividade acadêmica. Do ponto de vista intelectual, a primeira manifestação dessa falta de sintonia entre catedrático e assistentes surgiu, ao que parece, com a criação pelos professores assistentes de um seminário de estudos de O Capital e de alguns autores marxistas da época, como Lukács, Sartre e Goldmann. Faziam parte deste grupo não só os principais assistentes da Cadeira de Sociologia I, mas também assistentes de outros departamentos como o de Filosofia, como José Arthur Gianotti e Bento Prado Jr., de História, como Fernando Novais, e outros jovens professores e alunos “maduros”, como Roberto Schwarz[7]. O ponto-chave aqui é que Florestan não foi convidado a fazer parte do grupo. Este confessou, mais tarde, ter-se sentido marginalizado pelos discípulos: estes montaram um seminário de âmbito multidisciplinar, agregando gente de várias cátedras, sem lhe pedir autorização ou orientação[8].

Além da dissociação manifesta na ausência de convite, o grupo do seminário foi construindo paulatinamente, no âmbito da Sociologia, uma divergência de orientação intelectual com o catedrático. Como se sabe, Florestan concebia a Sociologia como ciência empírica diferenciada em subdisciplinas, dependentes da natureza dos problemas a investigar, cada divisão enfocando os fenômenos sociais de certo ângulo, com um método apropriado para interpretá-los. Nesse ponto, inspirava-se em Karl Mannheim, que para diferenciar a Sociologia punha em evidência as possibilidades metodológicas de observar e interpretar os fenômenos sociais. A identificação das regularidades universais da vida social ficava atribuída a uma divisão especial da Sociologia que ele, seguindo Mannheim, chamava de Sistemática. Esta disciplina deveria definir os conceitos sociológico básicos, próprios para identificar os padrões universais da vida social, e teria encontrado na obra de Max Weber a metodologia mais apropriada para suas investigações. De forma similar, caso o problema fosse explicar a perpetuação e mudança dos fenômenos sociais em termos supra-históricos, isto é, referindo-os aos padrões estruturais afins de sistemas sociais globais da mesma espécie – a tipos de sociedades, portanto – haveria que o fazer no âmbito da Sociologia Comparada, cujas dificuldades de construção teriam sido resolvidas por Émile Durkheim. Quando não se tratasse de comparar distintos tipos de sociedades – sociedade de classes e sociedade estamental, por exemplo – nem distintas sociedades do mesmo tipo, mas de estudar a organização interna e as perspectivas de desenvolvimento ou desaparição dos sistemas sociais globais, caberia à Sociologia Diferencial fazê-lo. Para Florestan, o marxismo oferecia o tipo de método particularmente adequado para pensar este tipo de problema, quer dizer, a ordem social em sua historicidade.

Além dessas modalidades de Sociologia, Florestan considerava serem legítimas três outras modalidades da disciplina: a Sociologia Descritiva, a Teórica e a Aplicada. As subdisciplinas da Sociologia analisavam, assim, a ordem social de pontos de vista distintos, complementares e irredutíveis uns aos outros. O importante é que, para Florestan, nenhuma das modalidades de Sociologia tinha, intrinsecamente, superioridade cognitiva sobre as demais. Simplesmente, destinavam-se a lidar com diferentes problemas e produziam conhecimentos distintos, embora complementares[9]. Ora, é justamente isso que o grupo do Seminário de Marx veio a contestar.

De fato, pelo menos parte dos jovens assistentes que participavam do Seminário de Marx passaram a ver as concepções que Florestan Fernandes tinha da Sociologia e de seu desenvolvimento como demasiado cientificistas e a considerar que havia sim uma hierarquia, do ponto de vista cognitivo, entre os vários métodos de interpretação sociológica. Embora tendessem a reconhecer a relevância das várias modalidades de Sociologia, consideravam que o método de interpretação sugerido por Marx tinha maior valor cognitivo que os demais. As demais perspectivas sociológicas, pois, deveriam ser subordinadas ao marxismo. Com isso, colocavam realmente em xeque as concepções de Sociologia e ciência de Florestan. Os sinais dessas divergências dos assistentes em relação às concepções do mestre aparecem em dois textos: a Introdução de Fernando Henrique ao seu livro Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional (que é sua tese de doutorado); e o posfácio de Otávio Ianni ao seu Estado e Capitalismo, publicado em 1964.

Embora a reorientação intelectual a que nos referimos seja o elemento central para caracterizar o tipo de Sociologia Política que predominaria na USP, há outras mudanças que ocorrem na vida acadêmica que manifestam as tensões que a atravessavam. Tratava-se de uma competição cada vez mais bem sucedida dos assistentes, especialmente Fernando Henrique Cardoso, em relação ao regente da Cadeira. De fato, embora sempre agisse em sintonia com Florestan, Fernando Henrique foi se tornando cada vez mais influente pela capacidade de mobilizar recursos políticos e materiais de fora para a Cadeira. Isso culminou na fundação por ele, em 1962, do Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho (CESIT) junto à Cadeira de Sociologia, o que permitia contratar pessoal e obter recursos fora do orçamento da Universidade. Não seria possível a criação deste Centro, cujo projeto inicial era estudar a empresa industrial em São Paulo, sem os contatos políticos de Fernando Henrique, seja no Conselho Universitário, onde representava os assistentes e acabou ganhando proeminência, seja na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, de onde vieram os seus primeiros recursos, e em outros âmbitos[10].

Frente a tais circunstâncias, em que uma parte dos membros da Cadeira se inclinava para o marxismo – claro está que se tratava de um marxismo renovado, não dogmático – e ganhava influência política no meio acadêmico, Florestan Fernandes reagiu competitivamente: ao invés de bloquear o movimento, procurou assumir sua liderança. Como ele fez isso? Além de apoiar a criação do CESIT ele elaborou um projeto de investigação sociológica, denominado Economia e Sociedade no Brasil (1963), que permitia incluir boa parte das atividades de pesquisa da cadeira Sociologia I. Ao fazer isso, propondo um projeto desse tipo, ele atenua bastante as tensões com os assistentes e tenta retomar a liderança intelectual plena da cadeira. Como o projeto se situava no plano do que Florestan denominava Sociologia Diferencial ou Histórica, as tensões de ordem intelectual entre assistentes e catedrático tendiam a desaparecer; neste plano, o método de interpretação que ele considerava mais adequado era o desenvolvido por Karl Marx.

Com o projeto Florestan aprofunda a inflexão já ocorrida com a pesquisa sobre a empresa industrial em São Paulo: faz do desenvolvimento – e não mais das relações raciais – o fulcro das preocupações e investigações da Cadeira de Sociologia I. Sublinhe-se, porém, que o próprio Florestan, embora tenha contribuído decisivamente para incorporar a temática do desenvolvimento às investigações da Cadeira de Sociologia, não abandonou suas concepções anteriores de Sociologia pelo menos na primeira metade dos anos 1960. O modo como o desenvolvimento era entendido no interior de sua orientação intelectual pode ser examinado na sua Introdução à primeira edição do livro Mudanças Sociais no Brasil, datada de 1960. Na distinção que aí se faz entre os conceitos sociológicos de “mudança social”, “evolução” e “desenvolvimento”, identifica-se claramente a concepção de sociologia que defendia desde o início da década de 1950.

Mencionamos antes que existiram certos vínculos entre a Sociologia Política que se expandiu em São Paulo nos anos 1960 e a crise do regime de democracia restrita e de orientação populista-desenvolvimentista. Que vínculos eram esses? Embora a hipótese seja boa, creio que só uma pesquisa bem conduzida poderá estabelecer, com alguma segurança, uma conexão entre a guinada marxista dos docentes que orbitavam ao redor da Cadeira de Sociologia I (e de outros participantes do Seminário de Marx) e a intensificação do debate político nacional ocorrido no final do governo Juscelino Kubitschek e depois[11]. Entretanto, parece-me bem mais factível vincular as polarizações políticas que acompanharam a crise da República populista e do seu padrão de desenvolvimento à mudança no foco de investigação da Cadeira de Sociologia I.

Acho que há boas razões para dizer que é bastante provável que as tensões políticas derivadas das incertezas e da luta em torno da mudança do padrão vigente de desenvolvimento tenham sido importantes na inflexão temática da Cadeira de Sociologia, da análise das relações raciais para a investigação sociológica do desenvolvimento. Não se trata, porém, de uma vincular abstratamente política nacional e vida acadêmica. Recorde-se que o tema das alternativas de desenvolvimento era estratégico para o Partido Comunista e para a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), organizações que direta ou indiretamente dominavam o debate público e tinham predomínio intelectual sobre as forças de esquerda de então. No entanto, embora tais organizações tenham tido importância na incorporação da questão do desenvolvimento à vida acadêmica, as concepções nelas dominantes foram em parte rejeitadas.

Em suma, o projeto de investigação sobre a industrialização de São Paulo e, mais ainda, o subsequente sobre Economia e Sociedade no Desenvolvimento do Brasil, não só contribuiu para ajustar as atividades de investigação da Cadeira de Sociologia I à inflexão marxista que ela experimentava, mas também a colocou em sintonia com processo político nacional.

É fundamental entender, ademais, que se tratava de abordar o desenvolvimento de um ângulo sociológico. Isto significava investigar não apenas seus diversos efeitos sobre a sociedade nacional como a participação das várias forças sociais na sua conformação como processo societário. Isso significa que, entendido sociologicamente, o desenvolvimento também pode ser pensado como resultado de relações políticas entre forças sociais.

Esta conversão à análise das questões políticas envolvidas no processo de desenvolvimento ocorreu com os principais assistentes da Cadeira de Sociologia I, Fernando Henrique Cardoso e Otávio Ianni e com alguns dos docentes que orbitavam ao seu redor. Fernando Henrique publica Empresário Industrial e o Desenvolvimento Econômico no Brasil, sua tese de livre-docência, em que tenta responder a uma questão política crucial: o empresariado industrial brasileiro tinha ou não condições de se converter ao papel de burguesia nacional que a teoria da revolução do Partido Comunista atribuía a ele? Ou seja, estava certo o Partido Comunista ao projetar uma estratégia política para as forças populares que pressupunha que o empresariado brasileiro podia assumir a condição política de burguesia nacional, liderando politicamente um processo de desenvolvimento nacional e democrático, em aliança com o proletariado e contra as forças oligárquicas aliadas do capitalismo internacional? Era essa a teoria da revolução do PCB. O livro de Fernando Henrique lida, basicamente, com essa questão de fundo. Sua resposta, como se sabe, é negativa. O empresariado brasileiro, simplesmente, tenderia a se articular com a indústria estrangeira (que estava no Brasil há muito tempo, mas principalmente a partir do governo Juscelino) e estas articulações tenderiam a inviabilizar qualquer tipo de ruptura com o capital estrangeiro e com os grupos sociais ligados à agricultura. Já no caso de Ianni, a vinculação com a política é mais óbvia ainda. Ele publica Estado e Capitalismo, sua tese de livre-docência, em que discute as condições sociais da emergência do Estado como agente do desenvolvimento entre 1930 e o momento em que escreve (1964).

Desta forma, os dois discípulos principais de Florestan Fernandes passam a fazer Sociologia Política. Tratava-se de uma Sociologia Política dominada por uma versão não-dogmática do marxismo, que tinha flexibilidade suficiente para incorporar elementos da sociologia de Max Weber. Infelizmente, não posso discutir aqui o modo como este último era incorporado. O mais importante é que se tratava de uma Sociologia Política de um tipo especial, cujo problema era explicar a dinâmica do desenvolvimento. Era, pois, uma Sociologia Política do Desenvolvimento.

O golpe militar de 1964 afetou drasticamente a vida universitária e exacerbou as tendências anteriores: o foco na “política” se tornou muito mais importante do que antes. Em função da crise que levou ao golpe, surgiu um conjunto de livros de avaliação crítica do processo de “revolução social” vivido pelo país, do regime político derrubado e do novo que se implantava. Tais trabalhos marcaram um estilo de fazer Sociologia Política que, algo injustamente, foi identificado com o modo da USP fazer Sociologia. Digo injustamente porque, antes disso e paralelamente, produzia-se na USP ótima Sociologia que não era política e que seguia outro estilo. Seja como for, contam-se entre os trabalhos de Sociologia Política uma coletânea de artigos organizada por Octavio Ianni, Política e Revolução Social no Brasil, publicada em 1965, com trabalhos dele mesmo, de Paul Singer e Gabriel Cohn, analisando a atuação das classes dominantes e das esquerdas, e de Francisco Weffort, esboçando uma primeira análise do populismo (Weffort, apesar de ser da Cadeira de Política, era muito vinculado a Fernando Henrique). Ainda em 1965 Weffort publica no sétimo número da Revista da Civilização Brasileira um artigo de grande impacto: “Estado e Massas no Brasil”. Em 1967 aparece, em número especial sobre o Brasil da revista Les Temps Modernes, organizado por Celso Furtado, o importante artigo “Hegemonia Burguesa e Independência Econômica: Raízes Estruturais da Crise Brasileira”, de Fernando Henrique, trabalho depois republicado na Revista da Civilização Brasileira (n. 17). Um ano depois, publica-se a coletânea de Florestan denominada Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento, reunindo artigos escritos depois do golpe militar, e o livro de Otávio Ianni O Colapso de Populismo[12]. Finalmente, em 1969, vem a público, em língua espanhola, Dependência e Desenvolvimento na América Latina, de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto.

Dependência e Desenvolvimento na América Latina foi a realização máxima do estilo de Sociologia Política que surgiu do núcleo de produção intelectual que se desenvolveu ao redor de Florestan Fernandes – e até em competição com ele. Seria injusto, porém, considerá-la seu fruto exclusivo. Talvez o livro tenha tido a dimensão intelectual e política que teve justamente porque refletia não só o universo intelectual da USP, mas a ampliação de horizontes resultante dos novos contatos, informações e indagações, propiciados pela estada de Fernando Henrique no Chile como funcionário da CEPAL. Ainda assim, creio que algumas de suas características principais permitem caracterizar o estilo de Sociologia Política que se praticou na USP na década de 1960.

Como se sabe, Dependência e Desenvolvimento trata de mostrar que a dependência externa, que era julgada essencial na conformação do subdesenvolvimento latino-americano, só o afeta realmente quando absorvida no interior das sociedades nacionais, quando passa a ter uma expressão na sua estrutura social. Converte-se, então, em dependência estrutural. A tese central do livro é a de que a dependência estrutural não impede o desenvolvimento. Apenas lhe dá uma forma especial. Como as situações de dependência são diversas, quer dizer, várias são as formas da dependência estrutural, diferentes são os padrões de desenvolvimento. Na década de 50/60, por exemplo, quando as empresas multinacionais passam a se instalar nos países de industrialização mais avançada da América Latina, produzindo para os seus mercados internos, inaugura-se a fase do que chamavam “desenvolvimento dependente associado”.

Isso constitui, ao mesmo tempo, ataque frontal à ideia, muito difundida na época, de que o “imperialismo” bloqueava o desenvolvimento e à teoria da modernização, que concebia o desenvolvimento como processo linear de mudança. Afirmava-se, pelo contrário, reiterando as concepções da Cepal, que mesmo fazendo parte do sistema capitalista internacional, as sociedades latino-americanas seguiriam ritmos e padrões diversos de desenvolvimento.

Além disso, o livro reforça um intercâmbio que já existia entre marxismo e pensamento cepalino. Dependência e Desenvolvimento “atualiza” o marxismo, na medida em que, efetuando uma análise de orientação nitidamente marxista, absorve a concepção da CEPAL, inexistente em Marx, de que o sistema capitalista se conforma no espaço internacional polarizando-se em países centrais e periféricos. Isso significa que perde sentido analítico estudar as sociedades nacionais como se fossem autônomas. No entanto, embora compreenda as sociedades latino-americanas como parte de um sistema em expansão e tenha sempre presente os impulsos e restrições derivadas do seu centro, o livro mantém o seu foco no plano nacional.

Isto se vincula ao modo como se analisa sociologicamente o processo de desenvolvimento. Explico-me. Embora aceite a periodização cepalina do processo de desenvolvimento – voltado para fora e orientado para dentro – o livro injeta marxismo na análise do processo. Um marxismo não declarado, mas perceptível pelo modo como os processos sociais são analisados. Certamente não se trata de um marxismo dogmático. Trata-se de um marxismo enriquecido pelas discussões do Seminário de Marx. Um marxismo entendido à luz do Sartre da Questão do Método, não objetivista, que pensa a história enquanto práxis transformadora, onde os atores coletivos são capazes de intervir criativamente. De fato, metodologicamente, a tese central do livro é a de que a análise econômica do desenvolvimento é insuficiente para explicar seus resultados. Seria necessário analisá-lo também politicamente, o que significa, para os autores, investigar como os Estados nacionais, e os grupos que participam do seu controle, ajudam a conformar o processo de desenvolvimento.

De fato, ainda que o ponto de partida da Sociologia Política presente em Dependência e Desenvolvimento seja sempre estudar a estrutura socioeconômica de cada sociedade – a dinâmica de acumulação do capital e o processo de diferenciação social – o centro da análise é ocupado pela luta em torno da distribuição e pelo controle político da distribuição do excedente econômico. Daí que o núcleo do livro esteja nas lutas das classes e dos segmentos sociais em torno da divisão do excedente econômico. E já que é no Estado que estão as alavancas que permitem controlar os fluxos econômicos, tornam-se relevantes as disputas em torno das políticas cambial, tarifária, de juros, salarial etc. Nesta Sociologia Política do desenvolvimento, portanto, o foco central da investigação são as relações entre classes e outros grupos e o Estado a propósito da gestão da economia.

Entretanto, mesmo que a política esteja no centro de Dependência e Desenvolvimento, ela é entendida de maneira bastante limitada. Primeiro, o Estado é concebido não apenas como expressão, mas também como articulação e organização das relações de domínio entre classes e outros grupos enraizados na economia. Ainda que o Estado apareça como organizador de classes, a autonomia que isso lhe confere em relação às classes não recebe qualquer justificativa teórica. Simplesmente é atribuída a determinadas “circunstâncias” históricas. Além disso, mal são mencionadas no livro as regras e clivagens político-institucionais que conformam a participação dos diferentes segmentos sociais na luta política. É verdade que, no momento da confecção do livro, no âmbito do marxismo ainda não se dispunha de trabalhos que incorporassem essa questão ao seu padrão de análise política. A tentativa de articular a esfera político-institucional, objeto central dos estudos acadêmicos da política, à análise marxista só veio a público em 1969, com o livro Poder Político e Classes Sociais, de Nicos Poulantzas. Seja como for, o trabalho de Cardoso e Faletto é claramente limitado quanto a esse aspecto. Não se pode deixar de mencionar, ademais, uma outra limitação importante de Dependência e Desenvolvimento: é muito insuficiente e assistemática a análise que se faz das formas simbólicas que “soldam” cada sistema de alianças ou, mesmo, que orientam a luta dos atores coletivos. Essas formas simbólicas aparecem na análise de forma ad hoc, como último recurso explicativo quando os demais se mostram insuficientes. Assim, por exemplo, quando fica difícil explicar em termos de interesses socioeconômicos divergentes as distinções partidárias que faziam parte essencial dos mecanismos de funcionamento político da Colômbia, recorre-se à divergência ideológica, que de fato existia, entre os partidos liberal e conservador.

Apesar das limitações apontadas, Dependência e Desenvolvimento foi um marco, um grande evento político-intelectual. Seu sucesso internacional – e especialmente na América Latina – constitui exceção no mundo acadêmico. É muito raro que dois latino-americanos teorizem com repercussão internacional sobre a América Latina. O que é corriqueiro, especialmente na atualidade, é que os intelectuais latino-americanos colham os dados e, quando muito, interpretem seus países, deixando a teorização da América Latina para os intelectuais dos países centrais.

Dependência e Desenvolvimento e os trabalhos de Sociologia Política produzidos por investigadores ligados à Cadeira de Sociologia I da USP, ou que orbitavam em torno dela, produziram muito conhecimento novo sobre as conexões entre capitalismo, Estado, classes sociais, no Brasil e na América Latina. Ainda assim, a Sociologia Política que se fez naqueles anos era estreita, orientava-se principalmente para a análise do desenvolvimento e concebia a vida política de uma forma teoricamente limitada: tendia a empobrecer a esfera dos símbolos e atribuir pouca eficácia própria às instituições políticas.

Tais limitações deram alguma justificativa para que, por oposição, mas também por assimilação dos impulsos vindos dos Estados Unidos, a Ciência Política se voltasse cada vez mais para a análise institucional. Não creio, porém, que haja razões teoricamente consistentes para substituir um tipo de análise por outro, tal como se observa crescentemente na Ciência Política. A obsessão pela análise endógena das instituições políticas, embora tenha produzido conhecimentos inestimáveis, faz perder de vista as articulações entre política e sociedade. Talvez caiba aos sociólogos a missão intelectual de desenvolver uma Sociologia Política que, ao invés de substituir a que se fazia nos anos 1960 e 1970, possa renovar aquele tipo de trabalho, introduzindo sistematicamente as dimensões institucionais e simbólicas na reconstrução das relações de dominação e das lutas políticas.


Notas

[1] Palestra proferida na abertura do workshop “Sociologia Política: trajetórias e perspectivas”, realizada na UFSC em 04 de abril de 2002. Agradeço às observações de Elisa Reis, Fábio Wanderley Reis, Cláudio Vouga e Eduardo Kugelmas que me permitiram melhorar o texto original.

[2] Refiro-me a Dados – Revista de Ciências Sociais, v. 23, n. 1, Rio de Janeiro, 1980.

[3] Embora fossem poucos os estudos, devem ser ressaltados os trabalhos de Aziz Simão e Oliveiros Ferreira sobre o voto operário em São Paulo realizados nos anos 1950. Consultar sobre o assunto Pereira de Queirós (1976) e Quirino (1994).

[4] Embora a Cadeira de Política tenha desenvolvido desde o início dos anos 1950 pesquisa de sociologia eleitoral, o foco principal da Cadeira era história do pensamento político e história das instituições políticas brasileiras.

[5] O estudo mais completo sobre essas relações acadêmicas encontra-se em Arruda (1995).

[6] Sobre o impacto de Florestan Fernandes sobre seus discípulos e sua liderança intelectual, consultar Cardoso (1987).

[7] Sobre o Seminário de Marx, consultar Schwarz (1999).

[8] Conferir Fernandes (1980).

[9] As concepções iniciais de ciência de Florestan Fernandes constam nos livros Fundamentos Empíricos da Explicação Sociológica e Ensaios de Sociologia Geral e Aplicada.

[10] Sobre tais contatos consulte-se Cardoso (1988) e Pereira da Silva (2002).

[11] Este possível vínculo foi sugerido por Roberto Schwarz (1999) no texto já citado.

[12] Esta inflexão da Cadeira de Sociologia I em direção à política conviveu com muitas investigações em que, a despeito de focalizarem o processo de desenvolvimento, não focalizavam propriamente para a política, estudando padrões de organização empresarial, experiência operária, sindicalismo etc. Além disso, a outra Cadeira de Sociologia existente na Faculdade, a II, orientava-se para outros temas.

Referências

CARDOSO, Fernando Henrique. (1987). A paixão pelo saber. In: D’INCAO, Maria Angela (org.). O Saber Militante – Ensaios sobre Florestan Fernandes. Rio de Janeiro: Paz e Terra/Editora da UNESP. p. 23-30.

CARDOSO, Fernando Henrique. (1988). Memórias da Maria Antônia. In: LOSCHIAVO DOS SANTOS, Maria Cecília. (org.), Maria Antônia: uma rua na contramão, São Paulo: Nobel.

FERNANDES, Florestan. (1980). Em busca de uma sociologia crítica e militante. In: A Sociologia no Brasil, Petrópolis: Vozes.

LAMOUNIER, Bolivar. (1980). Pensamento Político, Institucionalização Acadêmica e Relação de Dependência no Brasil. Dados – Revista de Ciências Sociais, v. 23, n. 1, p. 29-57.

NASCIMENTO, Maria Arminda do. (1995). A Sociologia no Brasil: Florestan Fernandes e a “escola paulista”. In: MICELI, Sérgio (org.). História das Ciências Sociais no Brasil, v. 2, São Paulo: Editora Sumaré.

PEREIRA DA SILVA, Luiz Hildebrando. (2002). O professor Ceccone e a revolução paulista. Pesquisa Fapesp, Edição Especial Fapesp 40 anos.

PEREIRA DE QUEIRÓS, Maria Isaura. (1976). Contribuição para o Estudo da Sociologia Política no Brasil. In:  O Mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios. São Paulo: Editora Alfa-Omega.

QUIRINO, Celia. (1994). Departamento de Ciência Política. Estudos Avançados, v. 8, n. 22.

SCHWARZ, Roberto. (1999). Um seminário de Marx. In: Seqüências Brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras.


Descubra mais sobre B V P S

Assine para receber os posts mais recentes por e-mail.