A questão racial e a sociologia de Florestan Fernandes, por Elide Rugai Bastos

Na segunda atualização do dia, publicamos texto da socióloga Elide Rugai Bastos (Unicamp) sobre a questão racial e a sociologia de Florestan Fernandes. A autora mostra como A integração do negro na sociedade de classes marca um novo momento da discussão sociológica sobre a questão racial no Brasil, central para compreender a “questão nacional”. O texto foi originalmente publicado em 1987 no livro O saber militante: ensaios sobre Florestan Fernandes, organizado por Maria Angela D’Incao.

Há sessenta anos, poucos dias após o golpe militar, Florestan Fernandes defendia sua tese para o concurso da Cadeira de Sociologia I da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. A integração do negro na sociedade de classes é um extenso estudo sobre a formação e consolidação do regime de classes no Brasil do ângulo das relações raciais, cujos resultados são decisivos para entender os dilemas materiais e morais não só da democratização das relações raciais, mas da própria sorte da democracia no Brasil.

Agradecemos ao colega Lucas Carvalho, membro de nosso conselho editorial, pela lembrança da efeméride. Para conferir o primeiro post sobre A integração, clique aqui.

Boa leitura!


A questão racial e a sociologia de Florestan Fernandes

                                             Por Elide Rugai Bastos (Unicamp)

As pesquisas de Florestan Fernandes a respeito da temática do negro, em especial a análise apresentada em A integração do negro na sociedade de classes (1965), marcam um avanço no pensamento sociológico sobre a questão racial e representam um rompimento em relação à reflexão sociológica brasileira que a precedeu. Destaco apenas alguns pontos desse livro que indicam como seu estudo difere radicalmente das interpretações prevalecentes sobre essa questão.

Fixo como ponto de partida para a comparação o momento em que as discussões sobre o tema chegam à década de 1930, representadas pela contribuição de Gilberto Freyre em Casa-Grande & Senzala (1933), Sobrados e Mucambos (1936) e Nordeste (1937). Trata-se de uma época privilegiada, quando ocorre uma transição nas abordagens sobre a questão racial, a partir da recusa desse autor de aceitar os fundamentos da sociobiologia, incorporando o discurso culturalista de Franz Boas. O escritor pernambucano, ao discutir os estudos dos autores racistas ou a teoria de branqueamento proposta por Oliveira Vianna, formula uma interpretação do Brasil apresentado uma sociedade constituída em sua base pela democracia racial, resultado da combinação de várias etnias e culturas em harmonia. Essa articulação teria sido conseguida graças a uma organização social desenvolvida no trópico, tendo por base o patriarcalismo, sustentáculo de relações sociais não marcadas pelo antagonismo, ou mais precisamente, pelos antagonismos em equilíbrio.

Florestan questiona essa afirmação e adiciona elementos novos à questão, caracterizando rompimento e salto qualitativo em relação a essas reflexões, que haviam sido incorporadas não só pelo pensamento social brasileiro, mas implementara visão compartilhada de reconhecimento da sociedade brasileira como expressiva dessa posição vista como democrática. Em outros termos, a obra A Integração do Negro na Sociedade de Classes (1965) representa uma recusa à visão conservadora que se apoia em ótica sobre a ordem social e política que recusa reconhecimento da presença de conflitos sociais, marcando o debate não somente sobre a questão racial, mas também sobre a existência de uma pax que desconhece a presença da situação desigual que atinge a população do país.

Escolhendo como unidade de investigação a cidade de São Paulo, a partir do estudo da integração do negro, Florestan Fernandes analisa as transformações sofridas pela população como um todo, face ao processo de industrialização e urbanização do Brasil. A escolha circunscreve o polo onde é possível perceber de forma mais ampla os fundamentos de uma organização social onde, por suposto, impera a ordem social competitiva. É o lócus “que apresenta um desenvolvimento mais intenso, acelerado e homogêneo quanto à elaboração socioeconômica do regime de classes”, onde “a revolução burguesa se processou com maior vitalidade”. É nela que “o ‘negro’ só adquire importância econômica real tardiamente e sofre, em condições sumamente adversas, os efeitos concorrenciais da substituição populacional” (Fernandes, 1965, v. 1: XII).

São Paulo, em seu processo de expansão urbana, não reproduziu o padrão brasileiro típico da cidade que cresceu em conexão com o progresso do mundo agrário. Sua inclusão na economia colonial exportadora ocorre tardiamente. O desenvolvimento, num momento de crise do sistema escravocrata – que restringe a reposição da mão de obra escrava e acolhe o imigrante europeu como presença nova e atuante –, faz dela um campo de pesquisa por excelência para o teste da tese integração/não-integração na sociedade competitiva.

Trata-se de um espaço privilegiado da constituição da sociedade burguesa, embora Florestan Fernandes reconheça a incompletude dessa formação, tese que desenvolverá posteriormente no livro A revolução burguesa no Brasil (1975). Define-se como centro urbano tipicamente burguês, onde impera uma nova visão de trabalho, marcada pelo contrato, ligada à concepção de “nação civilizada”. Por isso, investigar essa constituição torna-se fundamental para ilustrar diferentes fases de transformação da sociedade burguesa. Essa reconstituição compreende o período de desagregação do regime servil, a emergência da ordem social competitiva e sua consolidação, a partir de uma concepção tradicionalista que se estende do final do século XIX a 1930, bem como a afirmação dessa ordem dentro de um quadro tipicamente capitalista, entre 1930 e 1960.

Com referência ao processo como um todo, Florestan Fernandes busca a explicação da realização das condições históricas peculiares que envolvem a população da cidade. Ao mesmo tempo que define como objeto de análise a situação do negro na sociedade de classes, mostra que esta não pode ser descolada da reflexão sobre a ordem escravocrata e senhorial. Não só porque se trata do mais vasto período da história de constituição da sociedade brasileira, mas também porque marca em sua substância as relações comunitárias e societárias que se desenvolvem a partir dela. Da crise dessa ordem surgem os novos personagens da história do Brasil (Fernandes, 1976 a: 45-46).


O princípio da análise é a afirmação de que a ordem escravocrata é a base da qual surge um regime de trabalho e de organização social que funda a vida social, econômica, política e cultural brasileira, exemplificando com São Paulo, o espaço onde se articulam o velho e o novo. Mais do que uma combinação “natural” decorrente da ênfase no tradicionalismo, sua análise enfatiza o papel da manutenção de elementos tradicionais como garantia do desenvolvimento do processo de modernização. No ponto de inflexão dessa articulação encontra-se o negro. Refletir sobre sua situação social significa desvendar as relações entre o macrocosmo e o microcosmo sociais.

Assim, a definição das unidades empírica e analítica de seu estudo sobre a integração do negro na sociedade de classes já representa um rompimento com a sociologia brasileira marcada pela tradição conservadora. A unidade empírica sobre a qual arma sua argumentação é a formação econômica-social – o capitalismo periférico –, e não somente o grupo social formado pelos negros[1]. A partir dessa circunscrição, desloca o debate, fundado no campo da cultura, para o campo da estrutura social e da possibilidade de agência. A definição envolve a crítica às investigações mais significativas feitas anteriormente, citando particularmente Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Nestor Duarte e Fernando de Azevedo. Aponta sua unilateralidade, nascida “da redução do macrocosmo social inerente à ordem estamental e de castas ao microcosmo social inerente à plantação ou ao engenho e à fazenda” (Fernandes, 1976: 36). Visando uma análise sociológica referida à totalidade, afirma que a economia de plantation está ligada a um contexto histórico estrutural do qual é componente central e determinante, levando o analista a considerar o macro e o micro em conjunto.

Portanto, temos de considerar a economia de plantação em dois níveis simultâneos e interdependentes: todo um complexo de relações comunitárias e societárias que a articulava a várias estruturas econômicas, sociais e de poder, ou seja, a várias formas de dominação (Fernandes, 1976 a: 37).

A participação dos personagens é desigual nos dois níveis: de um lado, o lar senhorial e a senzala que ocupavam lugar especial na localidade e nas vilas circunvizinhas; de outro, a cidade, entreposto comercial, núcleo das instituições religiosas, jurídicas, administrativas e políticas. A este segundo patamar só tinham acesso os senhores, a família senhorial e alguns prepostos. Dar conta desse complexo de relações e de dominação exigia do estudo sociológico não só o aprofundamento da pesquisa em cada um dos níveis, mas análise articulada de ambos.

A própria crítica constitui-se na colocação de algumas teses fundamentais: Florestan recusa os limites de uma reflexão sobre a questão racial apoiada numa visão de sociedade como ordem social autorreguladora decorrente da análise independente do microcosmo social, que impede a percepção das dissociações que ocorrem principalmente nas situações antagônicas, entre a visão de mundo dos segmentos sociais marginalizados e a dos setores dominantes.

A superposição de estamentos de uma “raça” dominante e de castas de “raças” dominadas punha a ordem societária sobre um vulcão. A força bruta, em sua expressão mais selvagem, coexistia com a violência organizada institucionalmente e legitimada pelo “caráter sagrado” das tradições, da moral católica, do código legal e da “razão de Estado”. O mítico paraíso patriarcal escondia, pois, um mundo sombrio, no qual todos eram oprimidos, embora muito poucos tivessem acesso, de uma maneira ou de outra, à condição de opressores (Fernandes, 1976 a: 38).

Em outros termos, aponta o fato de a visão conservadora abrir espaço para a idealização do passado que se opõe a um presente que se quer negar. Desvenda o modo pelo qual tal perspectiva, ultrapassando o nível de análise, ganha espaço sociopolítico, constituindo-se em obstáculo ao processo de integração do negro à sociedade de classes[2].

O trabalho livre e a ressocialização do escravo

O ponto de partida para a reflexão de Florestan sobre as relações raciais é a peculiaridade da revolução burguesa brasileira, cujas raízes estão na escravatura[3]. Desse modo, mesmo estando em espaço marcado por relações sociais modernas, nas primeiras décadas após a abolição o negro livre acaba por viver em condições de existência social não tipicamente capitalistas. Nessa constatação, o autor enfatiza um aspecto: a ausência de um processo de ressocialização do negro para a nova ordem estabelecida. Socializado para viver num sistema social específico – a ordem escravocrata –, não encontra no projeto abolicionista, dimensionado prioritariamente para derrubar as barreiras que constituíram obstáculo ao progresso econômico, espaço para empreender uma nova inserção social. A transição ao exercício dos novos direitos não supõe uma correspondente organização social. Cria-se, então, um impasse definido pela dualidade igualdade perante a lei/desigualdade real. À nova condição jurídico-política dos ex-escravos não correspondeu imediatamente o exercício das prerrogativas sociais que a situação deveria propiciar.

A precariedade da ressocialização impediu que o negro fosse imediatamente inserido na ordem social competitiva e, assim, encontrasse sua identidade de classe. Essa situação o levou a uma existência ambígua, restringindo as condições sociais, econômicas, políticas, culturais e mesmo psicológicas de integração ao novo sistema.

A socialização é vista como um processo abrangente, ligado ao modelo de sociedade, definidor da identidade e do lugar do indivíduo no sistema social. Sua referência à ordem social competitiva não significa que Florestan Fernandes a considere como solução do dilema racial brasileiro. É antes a constatação de uma situação de fato do que um modelo aspirado de organização social. Assim, mostra que a associação urbanização/europeização reflete-se na morfologia da cidade, alterando os quadros de absorção do negro como agente de trabalho. Mais ainda, é em torno do fazendeiro e do imigrante que se desenvolverá a ordem social competitiva, excluindo-se o negro e o mulato como agentes sociais significativos. A socialização num quadro de organização social de base rural impediu que, num processo crescente de urbanização e competição, o negro encontrasse, de maneira geral, ajustamento econômico, político e social[4].

À medida que a cidade de São Paulo se desprende das matrizes rústicas da sociedade agrária, cujo sentido é comunitário, coletivo, tradicional, desenvolve-se um estilo de vida individualista e competitivo. Essas características tornam-se adversas à assimilação do negro e do mulato ao processo de urbanização. Em sua maioria condenado a viver na periferia da cidade por condições de habitação, pelo não acesso geral à educação, transforma essa situação numa estratégia de sobrevivência; é a partir desse lócus que se apega às oportunidades residuais do sistema de trabalho[5]. De outro lado, o imigrante aparece nesse quadro como o agente natural do trabalho livre, esperança de progresso por saltos e, nessa condição, ligado aos setores articulados à dinâmica do novo mundo econômico.

Assim, nas condições em que se forma e se consolida inicialmente a ordem social competitiva em São Paulo, os negros ficam restritos às ocupações marginais ou acessórias do sistema de produção capitalista. Não se trata, pois, de um traço comportamental que o levaria a não conseguir romper totalmente os liames culturais de sua formação, a se apegar a ocupações tradicionais, mas sim de uma construção social que se estrutura a partir de um forte controle sobre a mudança social[6]. Florestan busca o sentido dessa situação no sistema como um todo.

A exclusão da estrutura de trabalho vinculada às novas formas econômicas faz com que a mobilidade social, no período de transição do antigo regime, tenha se tornado difícil ao negro e ao mulato, barrada por condicionamentos econômicos, sociais, políticos e culturais, embora a ascensão social, por hipótese, esteja aberta a todos, através do processo competitivo. Se o comportamento deles pode parecer irracional frente a um processo “racional” de mobilidade, ele é explicado pelo desalento diante da constatação de que a mudança não acarretou na “redenção da raça”, multiplicando-se os exemplos de discriminação por parte da sociedade envolvente. Apenas duas formas de sobrevivência lhes foram oferecidas no novo sistema logo após a abolição da escravidão: ou a incorporação gradual à escória do proletariado urbano, ou o ócio. Mais ainda, o protecionismo oficial à imigração operou como obstáculo à sua ascensão social e assimilação pela sociedade moderna.

Ao lado de barreiras estruturais à sua integração, o negro, não recebendo o benefício da ressocialização, não foi preparado para as mudanças na sociedade inclusiva, introduzindo elementos morais no contrato e percebendo os direitos de trabalho segundo critérios pré-capitalistas[7]. A dificuldade de dissociação do contrato de trabalho de transações que envolvem a pessoa humana indica bem os limites que enfrentou para efetuar a passagem das formas de vida comunitárias às societárias.

Nesse ponto, a discussão sobre a socialização ultrapassa o nível explicativo meramente psicossocial. A pesquisa mostra como a ordem social competitiva se impôs de forma abrupta. A ausência de gradações impediu que o negro e o mulato, através de um processo educacional, redefinissem imediatamente[8] seus papéis sociais na sociedade de classes. Nessa constatação está embutido o questionamento sobre o destino a ser dado à ordem social competitiva e à sociedade de classes no Brasil. Mostrando que naquelas primeiras décadas depois da abolição o negro foi expulso não apenas da estrutura de trabalho tipicamente capitalista, mas do sistema contratual como um todo, Florestan Fernandes aponta os obstáculos à conquista dos direitos de cidadania. Consequentemente, chega à conclusão de que o novo sistema se enfrentou com uma dificuldade fundamental, na medida em que é impossível a existência de uma sociedade fundada em relações contratuais quando não se ancora na cidadania. Desse modo, estão indicados os limites do liberalismo brasileiro. E, também, colocadas as condições em que se dá a emergência do povo na história do Brasil, uma vez que esse procedimento não democrático atinge a sociedade como um todo.

As ocupações do imigrante não são substitutivas do escravo. Este veio para ocupar um lugar novo, em nova estrutura de trabalho, numa sociedade organizada em novas formas. No momento da abolição, o negro ocupava posições na organização da economia e da sociedade que não foram imediatamente colocadas sob a égide do contrato que se ancora na relação direitos/deveres. Assim, na nova ordem, desenvolveram-se estratégias que reproduziram e recriaram aquelas situações do escravo e/ou liberto na sociedade agrária, a partir de ajustamentos que o integraram ao setor agrícola e não ao urbano: transformou-se em morador, arrendatário, parceiro. A situação apresenta-se de forma diferenciada em diferentes regiões; onde o capitalismo avançou mais lentamente, abriram-se espaços para relações de trabalho que não se subordinam direta e imediatamente ao capital[9]. Nesse sentido, a posição social do negro e do mulato foi definida pelos interesses imediatos da incompleta revolução burguesa. Sem dúvida, houve uma articulação entre interesse conservadores e liberais; e o ajuste do negro na sociedade de classes é a ilustração por excelência dessa ligação.

Abolição e imigração constituem, assim, elos de um processo amplo, revolucionário porque transformador das relações sociais. Ao mesmo tempo, consagra-se a abolição do cativeiro e a ordem contratual na sociedade brasileira. Mas, se do ponto de vista legal ficam estabelecidos esses princípios,

deixou-se ao curso natural das relações humanas a determinação do que isso poderia significar, em situações concretas, como democratização efetiva dos direitos e deveres fundamentais dos indivíduos, garantidos juridicamente. Se isso foi prejudicial aos trabalhadores brancos, estrangeiros ou nacionais, e se corrompeu pela base os próprios fundamentos jurídicos e morais da ordem contratual (…) para o negro as consequências foram piores. (…) A abolição equivalia – nas zonas de vitalidade da lavoura cafeeira – a condená-lo à eliminação no mercado competitivo de trabalho ou, no mínimo, ao aviltamento de sua condição como agente potencial de trabalho livre (Fernandes, 1965, v. 1: 24).

Em outras palavras, o negro não foi equiparado ao trabalhador assalariado branco, sendo assim levado à regressão ocupacional. Na instauração e evolução da ordem social competitiva, acabaram imperando modelos de comportamento, formas de vida e hábitos de dominação patrimonialistas. Por isso, o processo de democratização das relações sociais foi lento. A sociedade só vai ser “igualitária” e “aberta” naqueles estratos sociais que foram e serão dominantes. Os instrumentos de ascensão social só serão acessíveis a alguns indivíduos.

Nesse quadro de exclusão, sem meios claros de se afirmar como categoria à parte e sem instrumentos para se integrar nas categorias abertas à participação, o negro defrontou-se com uma dupla luta: tinha que forjar ao mesmo tempo sua alocação na estrutura econômica e os quadros de organização de sua vida social. Todas as formas possíveis de organização, como, por exemplo, a família, estavam comprometidas pelo regime escravocrata, dissolvente de unidades básicas da sociedade, com exclusão da família patriarcal.

Assim, a primeira luta do negro liberto consistiu em definir o espaço social onde ocorreria sua ressocialização. Sendo impossível desenvolvê-la nos quadros da sociedade inclusiva, realizar-se-á no seio do próprio meio negro. Ali vai gestar-se a integração do negro na sociedade de classes, através do modo pelo qual organizou sua vida social e forjou sua personalidade como trabalhador. Esse percurso segue um duplo caminho: é ao mesmo tempo criador e destruidor. Ressocializar-se para uma nova realidade, urbana e industrial, significa simultaneamente destruir aquelas formas de organização elaboradas em um quadro de acomodação ao passado e articular nova rede de ocupações. O ajuste concomitante apresenta-se como conflituoso. Por exemplo, a mulher negra e mulata encontra rapidamente um lugar na nova estrutura de trabalho, em geral, atuando como “empregada doméstica”, continuando a exercer as mesmas atividades desempenhadas no “antigo regime”, “sobrevivências” na nova ordem, apesar das alterações provocadas pela urbanização e industrialização. Porém, este elemento aparentemente integrador funciona ao inverso, uma vez que opera como fator de desajuste da unidade familiar. A família completa, de organização recente no meio negro, perde, em parte, seu poder socializador.

Além disso, no desenvolvimento da urbanização e da industrialização há uma quebra dos antigos costumes. O negro, de origem rural, cuja identidade social foi elaborada em um universo tradicional, tem que definir seu espaço na cidade que deve ser culta, moderna e civilizada. Nesse processo entra em crise a própria cultura popular. A perda de uma autêntica herança cultural não permite a reorganização integrada e autônoma do meio negro. Assim, a urbanização, por operar a integração de forma individual, não impulsionou para uma direção criadora, no sentido de alteração conjunta das condições de existência social. O que se reforçou e recriou no meio negro foi um “tradicionalismo tosco e inoperante” que repete fórmulas de ajustamento e acomodação com raízes no passado (Fernandes, 1965, v. 1: 46). Aqui serão os movimentos negros que atuarão na quebra dessa espécie de “circuito fechado” reprodutor de um cenário característico do período escravagista. Florestan mostrará a ação das diferentes mobilizações, apontando as características que marcam a situação até 1930 e o momento posterior no qual se configuram com mais força política os coletivos negros.

No primeiro período, o bloqueio ao processo de ressocialização impediu que o negro imediatamente modernizasse seu estoque de ideias, comportamentos e valores em áreas vitais a uma participação vantajosa no processo de urbanização. O acesso aos mecanismos de socialização permitiu que os brancos já detentores de privilégios sociais aumentassem a distância em relação àqueles que sempre foram excluídos. Em outros termos, o negro, pelos motivos já apontados, não entrou imediatamente no processo de urbanização, de mobilidade social e de secularização da cultura. O que persistiu de sua herança cultural, o que foi valorizado pela sociedade inclusiva, reforçado pelas relações sociais e pela produção do pensamento social, foram aqueles elementos culturais que regulavam os ajustes em que o negro aparecia como equivalente ou substituto do escravo na nova ordem econômica e social (Fernandes, 1965, v. 1: 47).

Recriou-se, de certo modo, um caldo cultural negativo para o desenvolvimento da ressocialização, procedimento enfraquecedor da situação política do negro, de sua afirmação como cidadão, na medida em que impulsionou à projeção no passado das causas e soluções de seus problemas. No período posterior a 1930, as reações coletivas a essa exclusão operaram como lócus de enfrentamento daquelas restrições.

O mito da democracia racial

O mito da democracia racial está assentado na afirmação de que não se forjaram barreiras, de modo consciente, à ascensão social do negro. Germinado longamente na história do Brasil por meio de afirmações que apontavam o tratamento concedido ao escravo como “suave”, “cristão” e “humano”, só vai ganhar sentido e objetivar-se com a Abolição e a implantação da República.

No passado, o conflito insanável entre os fundamentos jurídicos da escravidão e os mores cristãos não obstou que se tratasse o escravo como coisa e, ao mesmo tempo, se pintasse a sua condição como se fosse ‘humana’. No presente, o contraste entre a ordem jurídica e a situação real da ‘população de cor” também não obstruiria uma representação ilusória, que iria conferir à cidade de S. Paulo o caráter lisonjeiro da democracia racial (Fernandes, 1965, v. 1: 198).

Florestan Fernandes aponta o caráter hipócrita da formulação, mostrando que o mito se baseia na afirmação de que a ordem social competitiva é aberta a todos igualmente, forjando-se a crença de que há um paralelismo entre a estrutura social e a estrutura racial da sociedade brasileira. Formulação vazia, não fundada na situação concreta.

Ninguém atentou para o fato de que o teste verdadeiro de uma filosofia racial democrática repousaria no modo de lidar com os problemas suscitados pela destituição do escravo, pela desagregação das formas de trabalho livre vinculadas ao regime servil e, principalmente, pela assistência sistemática a ser dispensada à ‘população de cor’ em geral (Fernandes, 1965, v. 1: 198).

Incorporada ao senso comum como elemento necessário à “respeitabilidade” do brasileiro, não se lhe desnuda o caráter impositivo, garantia da “normalidade” institucional e da “ordem” social. Nem se percebe o caráter de técnica de dominação de uma classe sobre outra.

O mito da democracia racial, que na pesquisa dirigida por Roger Bastide e Florestan Fernandes para o estudo UNESCO/Anhembi foi denunciado pelos vários componentes dos coletivos negros consultados, funda uma consciência falsa da realidade, a partir da qual “acredita-se” que o negro não tem problemas no Brasil, já que não existem distinções raciais entre nós, e as oportunidades são iguais para todos. O preto vive satisfeito com sua situação, pois, sendo livre, os problemas sociais serão resolvidos com o passar do tempo. Não se trata de uma formulação sem sentido. Serve a uma constelação de interesses, entre os quais isentar as elites de culpas e evitar a realização efetiva da integração racial democrática. É a forma pela qual as elites exorcizam e reprimem a ameaça apresentada pelos movimentos sociais.

Nesse sentido, sua discussão não pode ser descolada da reflexão sobre a socialização do negro na sociedade de classes. Aproximando as duas questões, Florestan Fernandes rompe o círculo vicioso das interpretações sobre a formação nacional. Não são elementos de ordem cultural as causas da não-integração do negro na sociedade de classes, mas as condições engendradas e mantidas pelo processo de anomia e pauperização, resultantes da exclusão do mercado de trabalho e da desorganização social geradora do difícil ajustamento às condições urbanas.

A associação anomia e pauperização neutraliza as tensões criadoras, remetendo a questão da situação do negro na ordem social competitiva a uma solução individual. Assim, corroem-se as bases morais da associação, inibindo-se a ação transformadora dos movimentos sociais. Inviabilizada a emergência do agente coletivo, caracteriza-se a apatia como forma de reação e de protesto social. Nesse sentido, a apatia preenche uma função histórica: acaba por configurar-se, quando os movimentos sociais negros ainda são fracos, como a única resistência possível ao negro face à exclusão social. Apontando esse traço, Florestan Fernandes rompe com as interpretações tradicionais que caracterizam o negro pela sua “bondade inata”, ressaltando a cordialidade das relações sociais no Brasil, a suavidade do tratamento concedido ao escravo ou ao liberto, e explicam a “harmonia” imperante na sociedade através de um intercâmbio racial. Mostra a face não-acomodatícia da apatia, que tem em si o germe da negação dos arranjos sociais imperantes, representando a recusa à aceitação dos valores impostos pela classe dominante.

Com isso, Florestan Fernandes desnuda a ambiguidade da sociedade burguesa: o isolamento do negro na sociedade competitiva, por princípio aberta e democrática, é aberrante. O preconceito social não se explica por si próprio. Não cria a situação de isolamento do negro, mas garante uma distância social que preserva as estruturas arcaicas da sociedade. Nessa direção, podemos ler a crítica feita ao emprego do conceito preconceito como base da comparação entre as várias regiões estudadas no projeto UNESCO sobre relações raciais no Brasil (Fernandes, 1976b: 285-313). São apontados como limites à investigação tanto o emprego não uniforme da noção de “preconceito social”, como a expectativa de comparação da situação paulista com outra realidade social na qual o conceito utilizado foi concebido. O primeiro item, com reflexos importantes no segundo, define as críticas à visão não histórica dos processos sociais, à aplicação naturalizada do conceito preconceito racial, à aceitação da universalidade da diferenciação entre as noções de preconceito e discriminação. Florestan, ao tomar como pano de fundo a perspectiva da constituição da sociedade brasileira, articula dois pontos fundamentais para sua compreensão: a trajetória simultânea do escravismo e da formação de uma sociedade de classes no Brasil. A integração é um dilema que não pode ser analisado como um caminho retilíneo, pois tem como limite as fronteiras em que se forma o regime de classes na sociedade brasileira[10]. Em outros termos, se as classes não estão plenamente constituídas, é equivocado identificar-se o preconceito como sendo “de classes”, como alguns analistas fizeram[11].

O mito da democracia racial tem sua justificativa no fato de os setores dominantes, originários da aristocracia rural, não estarem acostumados a lidar com movimentos sociais autônomos. Veem a pax social como algo monolítico. Portanto, não podem permitir nenhuma “rachadura” no todo social. Transforma-se em ideologia que sustenta a negação de existência da questão social, amplamente ilustrada pela afirmação corrente nos meios políticos: a questão social é uma questão de polícia. Engendrado no seio da escravatura, formulado no momento da abolição e no da Proclamação da República, ganha força na década de 1930, com a incorporação da rejeição ao racismo. Sua reformulação, associada à discussão da família patriarcal como unidade básica da formação nacional, ganha um sentido novo. Nesse momento, a obra de Gilberto Freyre[12], que articula democracia étnica/social e patriarcalismo, torna-se elemento importante para a consolidação das alianças políticas expressas no pacto agrário-industrial. Não se trata apenas da discussão da democracia racial: o debate torna-se peça fundamental para apontar a importância não apenas da família, mas das forças oligárquicas que, naquela conjuntura, deveriam ser incorporadas ao projeto urbano-industrial por serem a única garantia da ordem social e da unidade nacional. É a partir da família que Freyre propõe a articulação do velho e do novo. É, ainda, a partir da família que coloca a questão do tradicionalismo e do modernismo, forma pela qual aponta a debilidade política e social da burguesia industrial que, para impor seu projeto, uma nova ordem social, necessita do apoio dos setores tradicionais, só eles capazes de compreensão e manutenção da velha ordem da sociedade. Assim, o discurso sobre a democracia racial operado pelos setores dominantes, numa ordem social marcada pelo autoritarismo, coloca-se como político. Transforma-se na garantia de uma forma de encaminhamento da revolução burguesa que legitima a articulação “pelo alto”.

As reflexões de Florestan Fernandes sobre a questão racial, ao apontarem o aspecto político do mito denunciado pelos coletivos negros, constituirão, ao lado dos movimentos sociais que eclodem no final da década de 1950 e início de 1960, um elemento questionador do pacto de 1930. Ao colocar em debate, no campo sociológico, o mito da democracia racial, mostrará como a questão racial é um dos elementos fundamentais da questão nacional. Ao concluir a exposição de A integração do negro na sociedade de classes, o sociólogo paulista afirma que, se não tivermos uma democracia racial, não teremos uma democracia. “Por um paradoxo da história, o negro converteu-se, em nossa era, na pedra de toque de nossa capacidade de forjar nos trópicos este suporte da civilização moderna” (Fernandes, 1965, v. 2: 394).


Notas

[1] Aliás, a noção de grupo como unidade analítica carece de fundamento na abordagem de Florestan Fernandes, uma vez que seu ponto de partida supõe a heterogeneidade social, econômica e cultural presente na população negra e mulata. A pesquisa leva em consideração os diferentes grupos representados pelos movimentos negros, por mulheres negras e pela população residente na periferia.

[2] Já está aqui presente a ideia de que a formação de classes é paradoxal, embora a análise da incompletude da revolução burguesa esteja aprofundada em A revolução burguesa no Brasil, de 1975. A construção das classes requer uma edificação em conjunto. Se um setor populacional se encontra limitado, tendo extremamente restrita sua liberdade de afirmação social e política, prevalece um conflito impeditivo do processo de formação. Persistem, então, regras do período que Florestan Fernandes denomina “o velho regime”.

[3] O autor acentua a manutenção de traços estamentais presentes na sociedade brasileira.

[4] O trabalhado rural foi mantido com a permanência das formas de prestação social: trabalho gratuito como pagamento de moradia, cambão.

[5] O espaço “aberto” para o negro liberto foi principalmente o setor de serviços, que continuou por longo tempo fora das regras do contrato.

[6] Florestan mostra, em vários textos, o “cuidado” com que os setores dominantes criaram instrumentos jurídicos, econômicos e sociais para deter o controle sobre a mudança social. Mostrará, enfaticamente, que o planejamento econômico, conferindo primazia aos elementos técnicos, torna-se ambíguo, selecionando parte restrita da população que se apropria dos resultados positivos desse processo.

[7] Aliás, o setor de serviços até hoje, independentemente serem os trabalhadores negros ou brancos, carrega esse traço, representado pela falsa familiaridade e pela noção de fidelidade.

[8] Esse papel socializador será assumido pelos movimentos sociais e pelas associações que reúnem os coletivos negros.

[9] O próprio imigrante alocado como colono na agricultura cafeeira ficou sujeito a condições precárias em termos de contratação.

[10] Discuto essa questão no livro em término de edição A terceira margem da sociologia.

[11] Florestan refere-se aos estudos de Donald Pierson sobre o negro na Bahia.

[12] Refiro-me especialmente a Casa-grande & senzala (1933) e a Sobrados e mucambos (1936).

Referências

FERNANDES, Florestan. (1965). A Integração do Negro na Sociedade de Classes. São Paulo, Dominus/EDUSP, 2 vols.

FERNANDES, Florestan. (1976). A revolução burguesa no Brasil. Ensaio de interpretação sociológica. 2ª ed., Rio de Janeiro: Zahar Editores.

FERNANDES, Florestan. (1976a). Circuito fechado, São Paulo: Hucitec.

FERNANDES, Florestan. (1976b). A sociologia numa era de revolução social. Rio de Janeiro: Zahar.

FREYRE, Gilberto. (1933). Casa-grande & senzala. Formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. Rio de Janeiro: Maia & Schmiidt Ltda.

FREYRE, Gilberto. (1936). Sobrados e mucambos. Decadência do patriarcado rural no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional.


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