Desassossegos | Coluna de Alcida Rita Ramos

Publicamos hoje o quinto texto de Alcida Rita Ramos (UnB) na coluna Desassossegos. Nas lembranças da autora de 1960 surge a barca Rio-Niterói, quando diariamente atravessava a Baía de Guanabara para frequentar o curso de especialização em antropologia social no Museu Nacional/UFRJ, ministrado por Roberto Cardoso de Oliveira. Seus companheiros de travessia mais frequentes são o professor Luiz de Castro Faria e o jovem estudante, como ela, Roberto DaMatta. As memórias revelam os princípios da antropologia do Museu Nacional e uma nova fase da antropologia brasileira. “E la nave va (sem Fellini)”.

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Boa leitura!


E la nave va (sem Fellini)

Por Alcida Rita Ramos (UnB)

Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida

Bernardo Soares, aliás, Fernando Pessoa – Livro do Desassossego

A barca da Cantareira compõe o conjunto de elementos que formaram o meu Bildung. Graças a ela, guardo memórias preciosas sobre um pouquinho de como se foi fazendo a antropologia contemporânea no Brasil.

Em estilo showboat do Mississippi, as grandes barcaças cruzaram a Baía de Guanabara entre o Rio de Janeiro e Niterói, pelo menos, até a década de 1970. Tornadas obsoletas pela construção da ponte Rio-Niterói e pelos velozes “aerobarcos” do tipo Catamarã, elas encheram de nostalgia e saudade a era da maravilhosa e ainda algo cristalina baía, que os descobridores portugueses, talvez num arroubo de saudades da foz do Tejo, tomaram por um grande rio ao aportar no mês de janeiro. Nascia aí o que se transformou na cidade do Rio de Janeiro, assim batizada por um erro hidrográfico de gente mais acostumada ao mar-oceano.

A travessia levava de 30 a 40 minutos. Em horários de pico, despejava centenas de pessoas que iam e vinham de Niterói ou do Rio. O ritmo da barca era como um freio no frenesi urbano: lia-se jornal, ouvia-se rádio, conversava-se. E muitas conversas eu tive com pessoas que, como eu, moravam em Niterói e trabalhavam ou estudavam no Rio, mais especificamente, no Museu Nacional da Quinta da Boa Vista no bairro de São Cristóvão.

Meus companheiros habituais de travessia eram o Professor Luiz de Castro Faria e o jovem estudante que, tempos mais tarde, passou a ser conhecido ‒ e muito conhecido ‒ como Roberto DaMatta. Também de Niterói, Hortência Caminha era uma jovem universitária muito imaginativa que emulava a cantora Maysa e se apresentava como mulher vivida no meio dos seus colegas criançolas. Em 1960, frequentávamos o curso de especialização em antropologia social ministrado por Roberto Cardoso de Oliveira no Museu Nacional.

Hortência-Maysa raramente viajava conosco. Era comum chegar ao Museu contando episódios dramáticos da travessia que, aparentemente, só aconteciam na sua barca: alguém que caiu no mar, tempestades ferozes sacudindo as águas da Baía de Guanabara e quase levando a barca a pique, brigas homéricas a bordo, enfim. Parecia-nos que a sua presença agia como um ímã a atrair aventuras e fazer o cotidiano menos rotineiro. Era de dar inveja aos jovenzinhos do curso.

A jornada Niterói-Rio a bordo da Cantareira ensejou inúmeras ocasiões para os jovens ‒ DaMatta e eu ‒ tecerem as proverbiais diatribes contra o sempiterno professor autoritário. Não faltaram, inclusive, algumas inusitadas intrigas de alcova com desdobramentos inesperados e íntimos demais para um relato público como este. Especialmente marcante era a maneira com que Castro Faria tentava se comunicar comigo. Era mesmo comigo?

A antropologia brasileira vivia um momento de transição e eu e meus colegas do curso de especialização fomos apanhados nessa dobradiça que fechava o velho culturalismo norte-americano e abria o estrutural-funcionalismo inglês. Castro Faria, ainda seguidor do primeiro, aproveitava a meia hora de travessia marítima para alfinetar a posição de Roberto Cardoso Oliveira alinhada ao segundo. Alcida, a neófita providencial, audiência cativa no veículo fechado, ouviu poucas boas como se fosse porta-voz de RCO, como chamávamos o Mestre. Tratava-se de uma disputa à distância que me atingia como a um para-raios. Para ilustrar a infantilidade de abraçar novidades e dar as costas à tradição, um dia, Castro Faria fuzilou: “Por acaso você já leu Memórias de um Sargento de Milícias?”. Encolhida no banco como um verme peçonhento, balbuciei um “não”. Relatado o episódio à nossa mini comunidade aprendiz, inaugurou-se na turma uma fase de chistes e o livro de Manuel Antônio de Almeida passou a ser a senha para gracejos grandes e pequenos. Confesso que, freudianamente, até hoje, não o li.

A disputa amistosa entre dois gigantes da antropologia da época mostrou-nos que a diferença de opiniões e posturas, em vez de dividir, pode muito bem somar. Enquanto mergulhávamos em profundas leituras de mestres ingleses, uns com notáveis talentos literários, como E.E. Evans-Pritchard, outros com uma precisão conceitual soporífera, como S.F. Nadel, também ouvíamos falar de Oliveira Viana, Oracy Nogueira, Sérgio Buarque de Holanda, Curt Nimuendajú, Herbert Baldus, Wilhelm Schmidt, Franz Boas e tantos outros que representavam para nós naquele momento leituras um tanto ou quanto antiquadas, ultrapassadas, sem relevo, ou relevância, epistemológico. Muito mais tarde, exposta a outros ambientes intelectuais, passei a dar valor aos autores que precederam aquela nova moda teórica, o que agigantou ainda mais o vulto de Luiz de Castro Faria na minha memória. Lembro-me como se fosse hoje daquele homem imponente, jornal embaixo do braço, se acomodando na barca, provavelmente, esperando não ser incomodado na sua leitura diária de 30 minutos.

Quando se aposentou, Castro Faria foi homenageado no número de 1985 do Anuário Antropológico. Tive a honra de participar. Lembrei mais uma vez daqueles momentos mágicos na sua franqueza catedrática: “Longas travessias na barca de Rio a Niterói foram preenchidas ao som de relatos sobre suas vivências, experiências, conhecimento ou, simplesmente, opiniões. … Ouvíamos, através da erudição apaixonada de Castro Faria, a advertência de que a Antropologia no Brasil não nascera ontem e que, afinal, santo de casa também pode fazer milagres” (p. 231).

De segunda a sexta, nós, alunos, sob o olhar e os ouvidos de RCO, passávamos manhãs e tardes numa ala vetusta do vetusto Museu, absorvendo como esponjas o mundo encantado das novidades acadêmicas. O almoço, nada vetusto, era degustado ou, melhor dizendo, engolido sempre a contragosto, na Cantina cujo dono exibia uma total inabilidade culinária. A alimentação do corpo em nada condizia com a alimentação do intelecto. Quase uma década mais tarde, sofrendo, como todos, uma fase de penúria numa aldeia Yanomami, cheguei a sonhar com o prazer indescritível que a comida da cantina do Museu me dava. Ou a fome era muito grande, ou aquela comida, afinal, não era assim tão miserável.

De volta a Niterói, barca abarrotada de gente que trabalhava no Rio, retomávamos, quase sempre só Roberto DaMatta e eu, a nossa catarse de aprendizes, geralmente, Roberto falando e eu ouvindo. As decepções declaradas nunca eram tão fortes, ao menos para mim, quanto a sensação de crescimento profissional, embora, já naquela época, o campo da antropologia aparecia a Roberto como estreito demais para a sua ambição.

Nada disso distraía os sentidos do espetáculo do pôr-do-sol com que a paisagem carioca nos brindava. De veras, as duas horas de locomoção de casa ao Museu e outras tantas de volta tinham na travessia da Baía de Guanabara o refrigério de que outros passageiros terrestres não gozavam. Toda aquela exorbitante beleza mistura-se em mim à imensa gratificação de encontrar a vocação na antropologia e alimentá-la com fartura de nutrientes intelectuais. A semente plantada por Luiz de Castro Faria vingou, cresceu, amadureceu e continua viva e ativa.


A imagem que abre o post é de Joana Lavôr e a foto de Alcida Rita Ramos é de autoria de André Aquere


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