Desassossegos | Coluna de Alcida Rita Ramos

Publicamos hoje o sexto texto de Alcida Rita Ramos (UnB) na coluna Desassossegos: “Entre crânios e mentes”. A autora compartilha suas memórias de seus anos de formação em antropologia – da especialização no Brasil ao mestrado e doutorado nos Estados Unidos – e divide com seus leitores e leitoras duas fotos da marcante experiência que teve em 1960, quando foi aluna do primeiro curso de especialização em antropologia social no Museu Nacional/UFRJ, ministrado por Roberto Cardoso de Oliveira. 

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Boa leitura!


Entre crânios e mentes

Por Alcida Rita Ramos (UnB)

Na gafieira
Segue o baile calmamente
Com muita gente dando volta no salão
Tudo vai bem
Mas, eis, porém que de repente
Um pé subiu
E alguém de cara foi ao chão
………………………………………………….. (Billy Blanco, Piston de Gafieira)

1960. Um corredor comprido, ladeado de pesados armários envidraçados abarrotados de crânios e outros rastros humanos de antanho, formava parte do ambiente de trabalho de antropólogos físicos e sociais. Estamos no Museu Nacional, na divisão de antropologia. Meu berço antropológico cheirava a formol. O odor impregnava o ar e dava ao lugar uma certa aura de sobriedade científica. Foi lá que finquei as bases do que viria a ser meu modo de vida, a vida de antropóloga.

Num delicioso clima de semi-internato, seis alunos viajam de várias partes do estado do Rio de Janeiro ‒ vinham de Niterói, Petrópolis e diversos bairros da cidade ‒ à Quinta da Boa Vista, onde passavam cerca de seis horas de segunda a sexta absorvendo os ensinamentos transmitidos por Roberto Cardoso de Oliveira, uns mais embevecidos, outros menos. Participávamos do curso “Teoria e Pesquisa em Antropologia Social”, financiado pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Brasil. A carga de leitura era grande, intimidadora, mas nunca rejeitada. Aulas expositivas semanais quebravam a rotina da concentração coletiva que, longe de ser um oximoro, era a prática corriqueira: comentários individuais animavam as leituras também pontilhadas de gracejos e fofocas. Foi o grupo mais coeso de que já participei. Com maior ou menor grau de compreensão e entusiasmo, lemos os estrutural-funcionalistas ingleses, emulamos a verve de Evans-Pritchard, a aparente leveza de Radcliffe-Brown, as análises políticas de Gluckman. Também aprendemos a apreciar a densidade de franceses como Balandier, que pavimentou com ideias, como o conceito de situação colonial, o caminho que Roberto Cardoso trilharia para construir a noção de fricção interétnica. Lévi-Strauss também compareceu, principalmente com as estruturas elementares do parentesco, intrincado labirinto que eu, ao menos, tive a temeridade de tentar desvendar. La pensée sauvage só viria dois anos depois.

Aquele primeiro curso de especialização em antropologia social no Museu Nacional durou um ano inteiro de convivência diária e muito intensa. No primeiro semestre, a formação básica foi feita com leituras, seminários e aulas expositivas. Na segunda fase, nos meses de junho a agosto, alunos, professor e assistente fizemos o primeiro teste dessa formação em campo. Luxo dos luxos, o curso nos levou todos a Mato Grosso do Sul, ou, melhor dizendo, ao sul de Mato Grosso (o novo estado só seria criado nos anos 70). Tivemos o privilégio singular de usufruir de um treinamento em pesquisa de campo, no campo! A intenção era levantar dados sobre indígenas Terena urbanizados. Dividimo-nos em três grupos de dois. Como a turma era equilibrada em gênero, cada grupo era formado de um homem e uma mulher. A mim me coube a parceria com Roberto DaMatta.

Palmilhamos a periferia de Campo Grande e Aquidauana, encontramos pessoas solícitas, amáveis, mas também mostrando nos corpos e no modo de vida o peso da colonização impiedosa. Experimentamos algo para mim inesperado: um frio insólito, especialmente pelos descampados de Aquidauana. Agasalhados até o pescoço, saíamos em busca de indígenas perdidos nas dobras de uma sociedade indiferente, quando não hostil. De casa em casa, de bairro pobre a bairro pobre, enchemos diários de campo que eram lidos em voz alta no hotel ao fim de cada dia. Era aí que vinham as aulas sobre técnicas de pesquisa, relevância das perguntas, como “abordar um informante”…

De volta ao Museu, veio a terceira etapa do curso: organizar dados e redigir relatórios. E assim, nós, os seis noviços intelectuais, contribuímos alegremente para o doutorado de Roberto Cardoso de Oliveira. Sua tese se transformou no livro Urbanização e Tribalismo, publicado em 1968, onde o autor se dá por satisfeito: “Todos realizaram com o maior empenho, lealdade e eficiência os variados procedimentos de investigação. … Ocioso será dizer da utilidade desse trabalho de equipe, que veio reduzir sobremaneira a nossa consulta ao material bruto referente aos Terena citadinos” (p. 10). Foi talvez o curso que mais se assemelhou ao modo peripatético do aprendizado grego. Há momentos que só apreciamos quando passam.

Por fim, a prova final. Era novembro, dezembro? Já não me lembro. Prova longa, horas e horas de concentração, cada um fechado na sua própria mente. Num dado momento, alguém abriu a porta estilo saloon e avisou que me chamavam ao telefone, lá no fundo do corredor-tumba. Assustada, interrompi minha concentração e fui atender, seguida de Roberto Cardoso. Incrédula, ouvi uma voz macia, melodiosa, senão melosa, que me convidava para jantar. A voz do paleontólogo, homem de meia-idade, cientista de renome, parecia vir do fundo do macro tempo. Bufando, disse-lhe meia dúzia de impropérios que mereceram a advertência de Roberto Cardoso, algo como “não seja mal-educada!”. Verdade, não fui exatamente sutil ao bater o telefone. Voltei à nossa sala de exame vociferando contra o Don Juan de guarda-pó. Cinco pares de olhos pasmados perguntavam o que foi. Indignada ao extremo, fiz um relato sucinto e voltei à prova que, aliás, acabou sendo a melhor da turma! Cresceu ali a minha fama, já consolidada por Roberto Cardoso, de ter um “gênio de cão”!

Depois do mini show que propiciei aos colegas, a magnífica Hortência Caminha, que aparentava uma extraordinária maturidade perto de nós, pouco mais do que pós-adolescentes, cultuava a cantora Maysa e era dona de uma imaginação incontrolável, aproveitou o affair do telefone e compôs uma letra que acoplou ao samba de gafieira de Billy Blanco, deixando-me a lembrança indelével de sua figura saudosa. E o samba ficou assim:

Lá no Museu
Ia a prova calmamente
Com muita gente numa grande bolação
Mas eis porém que todavia de repente
Chamam Alcida ao telefone da seção
……………………………………………………..

Ainda ouço ao longe o eco da musiquinha, pois a primeira gafieira a gente nunca esquece!

Quem não teria saudades desse jeito de aprender antropologia?

Os seis primeiros alunos de Roberto Cardoso de Oliveira nos jardins do Museu Nacional, 1960. Da esquerda para a direita: Roberto DaMatta, Alcida Rita Ramos, Edson Diniz do Pará (já falecido), Hortênsia Caminha, de Niterói (já falecida), Roque Laraia, Onidia ???, de Petrópolis.

Dois anos depois, fui para os Estados Unidos, mais precisamente, para a Universidade de Wisconsin, em Madison. Fui por um ano, fiquei seis ou sete, contando o retorno depois da pesquisa de doutorado na Amazônia. Misturado ao frio cruel do inverno de 1963, veio o primeiro amor; depois, o encanto da primavera irradiando sonhos e, mais além, o desconforto de hay fever no verão. Subjacente a todas essas experiências sensoriais, estava a frustração inicial da falta de fluência em inglês, a sensação de que tanto aparato material na universidade não merecia a mediocridade das ideias que o ocupavam e a consciência ‒ sem dúvida, falsa ‒ de que o que aprendia não chegava aos pés do meu treinamento no Museu Nacional.

Creio que deixei transparecer o meu desagrado e, provavelmente, afetava um certo esnobismo ao interagir com colegas, mas, principalmente, com professores, porque suas reações eram, em geral, agressivas e defensivas. Nunca acertei com orientador, depois de várias tentativas. Percebia a maioria das aulas como simplórias, ingênuas, senão mesmo equivocadas, enfim, aquele era, para mim, um departamento de terceira categoria. Ter sido intelectualmente mimada como fui no Museu Nacional não me preparou para isso e nem para ser rotulada de fêmea latina, propensa a ser excitable, como um dos ditos orientadores me descreveu numa carta de apresentação. (Com orientadores assim, quem precisa da palmatória de outros tempos?).

Mas, em retrospecto, reconheço as vantagens de um departamento que abriga os quatro campos da antropologia. Aprendi arqueologia, que me estendeu o olhar para a diacronia e enriqueceu a sincronia da antropologia malinowskiana; aprendi muito sobre os complexos meandros da evolução humana e cheguei a admirar de olhos vidrados uma pélvis guardada a sete chaves, atribuída a Lucy, a ancestral das ancestrais. Fui além do departamento de antropologia e mergulhei na linguística, que me valeu muito na pesquisa com Yanomami.

Ao fim e ao cabo, valeu muito a pena fazer o mestrado e o doutorado naquele lugar. Agora, graças ao método infalível do pillow talk, deslizo pelo inglês como segunda língua, eduquei-me o bastante para apreciar os trabalhos arqueológicos do México, do Peru, da Amazônia etc. e passei a valorizar o detalhe, o pequenino que pode desnudar o gigante, como, décadas depois, esmiucei numa disciplina chamada Do Micro ao Macro.

De quebra, assisti à virada da consciência política dos jovens universitários americanos: atos políticos no campus, invasão da polícia, guerra do Vietnã, sit-ins, manifestos, marchas, o movimento free speech, Joan Baez, Pete Seeger, os Beatles e muitas festas! Os anos 50 morreram, viva os anos 60! Foi uma década privilegiada naquele país, o que também me deixa um sabor amargo, sabendo que, no Brasil, a ditadura (des)grassava pelo país afora, fazendo um estrago tal que, a cada dia que passa, está se mostrando irreversível.

Em 1971, defendi a tese de doutorado sobre a organização social dos Sanumá, subgrupo Yanomami, uma tese que renego até o fim dos tempos! Engessada na escrita, engessada nas ideias, em consequência, engessou a vida dionisíaca dos meus anfitriões na Amazônia profunda. Foi mais um recurso para apaziguar o orientador, ser aprovada e me livrar do jugo professoral, do que o gosto pela escrita críptica, ensossa e infiel do estilo acadêmico. Era verão, eu vestia vermelho e, terminado o rito sádico da defesa, desci a colina do campus como que voando e fui me lambuzar de sol e alívio no Student Union à beira do radiante Lago Mendota.

Logo depois, voltei ao Rio de Janeiro para dar uma disciplina no novo PPGAS do Museu Nacional como professora visitante. Regresso a casa, mas, sem aqueles ingredientes básicos que me embalaram uma década antes ‒ meus colegas de descobertas intelectuais e afetivas ‒, muito do encanto se esvaiu. Hoje somos três sobreviventes: Roque Laraia, Roberto DaMatta e eu, cada um trilhando um daqueles caminhos que se bifurcam, à moda de Jorge Luis Borges.

Os sobreviventes daquela turma do Museu de 1960

Quando, em setembro de 2018, as labaredas que comiam o prédio do Museu Nacional invadiram as telas de TV, recusei-me a prantear, porque não acreditei no que via em duas dimensões. O que ruía em chamas aparecia apenas como uma casca oca. As coleções, os livros, os documentos raros, as exposições, as longas décadas de trabalho de gerações de cientistas, tudo desmoronou longe das câmeras. Mas o sentimento de perda tinha a sua contrapartida: nada, ninguém, nem todos os elementos juntos num acesso de fúria são capazes de destruir o que está guardado no cérebro de quem viveu o que nós vivemos. Entre crânios e mentes, o ano de 1960 está intacto na minha memória, a salvo de reveses, a salvo do esquecimento.

Se não fosse o sonhar sempre, o viver num perpétuo alheamento, poderia, de bom grado, chamar-me um realista, isto é, um indivíduo para quem o mundo exterior é uma nação independente.

Bernardo Soares, ou melhor, Fernando Pessoa

Livro do Desassossego (p. 223)


A imagem que abre o post é de Joana Lavôr e a foto de Alcida Rita Ramos é de autoria de André Aquere


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