Coluna MinasMundo | Trilhas de uma geração de sociólogos mineiros, por Elisa Reis

A BVPS publica hoje texto apresentado por Elisa Reis (UFRJ) no Seminário MinasMundo, Ouro Preto (2024-1924), realizado no final de março.

Na mesa Minas e os Mundos, tomando como fio condutor a ideia de viagens por mundos diversos, Elisa Reis refletiu sobre os caminhos trilhados pela geração que viveu a experiência do curso de graduação em sociologia e política que funcionou de 1953 a 1967 na Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG. A socióloga também abordou o processo de socialização na faculdade, as experiências de treinamento no Chile e nos Estados Unidos, e as diversas opções profissionais no período de institucionalização do ensino de pós-graduação no Brasil.

Boa leitura!


Trilhas de uma geração de sociólogos mineiros

Por Elisa Reis (UFRJ)

Minas Mundos é uma ideia que me faz viajar por relatos épico-líricos bem diversos! Por um lado, Drummond e seu coração mais vasto que o mundo. Por outro, Ciro Alegria com seu “mundo ancho e ajeno”, que nos remete à história de Clarimundo, cidadão de Peçanha-MG, que convidado para um batizado na vizinha São João Evangelista, selou seu cavalo, montou e atingindo o cume das montanhas que abraçam a cidade desistiu de continuar viagem. Ante a surpresa de todos com seu súbito regresso, Clarimundo expressou assim seu mal-estar cósmico: esse mundo é muito grande! depois do morro vem mais morros….E reza a lenda que nunca mais saiu de Peçanha.

 Já que nessa sessão vamos falar de mundos no plural, peço licença para um breve crônica/relato pessoal. Meu próprio mundo começou com muita vontade de ver além daquele morro alto. Minha mãe contava que ainda bem pequena, no quintal, eu brincava de viajar em cabo de vassoura com minha irmã mais velha, que sempre dizia que estava indo para a fazenda da vovó, enquanto eu sempre dizia Ciao, estou voando para Paris, cidade desconhecida pela família que, aliás, nunca tinha saído de Minas. Naquela época, nem sabia eu que as bruxas é que voavam em cabos de vassouras. Mais tarde, quando aprendi a montar um cavalo, me encantava a vertigem da velocidade da viagem que me permitia sonhar com terras distantes. Sonhos a parte, o que eu queria mesmo quando o medo do escuro da noite batia firme era sempre o que estava bem perto: mamãe na cozinha, papai no alpendre, bico na boca e picolé de guaraná no boteco da esquina.

Mas, pouco a pouco, fui descobrindo os outros mundos. Primeiro, nos livros e nas histórias das freiras no colégio, sobretudo quando narravam a migração da França para o Brasil, na época da guerra. Mas, depois muito além, nos filmes de Hollywood que duas vezes por semana chegavam na cidade em latas redondas inoculando aspirações modernizantes. Sim, minha geração foi inoculada com esse vírus, com a ânsia de ver o que havia mais longe. Daí, certamente, se origina meu processo de migração por etapas. Primeiro Uberaba, depois BH, depois Santiago do Chile, Rio de Janeiro, Cambridge Massachusetts, e outros tantos lugares dos muitos mundos que Minas abriu para mim. O teste essencial foi quando me introduziram como “Elaiza Ris”, from South America! Isso aconteceu quando cheguei no MIT e o estranhamento que aquilo me causou reconfirmou minha identidade como mineira forever!

Deixando de lado as recordações pessoais, quero conversar com vocês sobre um capítulo das ciências sociais em Minas Gerais e seus desdobramentos. Claro, nenhuma história é um fio único. A das ciências sociais mineiras naturalmente tem muitos veios. Aquele que vou seguir aqui nasce na rua Curitiba 832, BH, então sede da Faculdade de Ciências Econômicas, a FACE, estabelecida em 1941. Em 1953, começou a funcionar ali um novo curso, o Curso de Sociologia e Política. Já havia estudos de ciências sociais na FAFICH, criada no final da década de 1930. Mas o novo Curso de Sociologia e Política tinha um modelo bem distinto, funcionava em um ambiente no qual a economia e a administração pautavam um perfil profissional distinto dos cursos abrigados na Faculdade de Filosofia. Com a perspectiva de tempo é fácil identificar características que conferiram marcas distintivas aos então jovens que passaram pela FACE. Já começávamos (e aqui fica claro que sou parte do grupo formado na FACE) compartilhando em grande parte algumas características importantes: éramos quase todos oriundos de cidades do interior de Minas, quase todos éramos os primeiros de nossas famílias a ingressarem em uma universidade, muitos de nós já marcados pela politização que ocorria no meio estudantil secundarista, e tantos outros se politizando rapidamente no diretório acadêmico da FACE. Mas havia também a forte pulsão socializadora no dia a dia na Faculdade. A grande biblioteca do sexto andar foi peça importante desse processo, juntando a seu notável acervo de livros e de periódicos brasileiros e estrangeiros, um layout extremamente amigável. O manuseio direto que tínhamos dos livros nas estantes, as duas amplas salas de leitura que, com suas mesas de quatro lugares, tudo propiciava interação face a face tanto para embates acadêmicos como para estabelecer laços sociais. Também eram peças dos mecanismos de socialização o sistema pioneiro de bolsas de estudos que inspiraram a criação mais tarde do Programa Nacional de Iniciação Científica, o bar restaurante do segundo andar cujas mesas testemunhavam o surgimento de amizades, namoros e tantos debates acalorados sobre o presente e o futuro do país. Também palco de grandes discussões era a sede do diretório acadêmico que, além de publicações ocasionais, conseguira até implantar seu próprio sistema de auxílio a alunos com base no mérito. Por fim, havia o auditório do térreo usado para uma programação intensa dos então chamados filmes de arte ou de palestras.

Talvez todos esses instrumentos de socialização que mencionei tenham sido magnificados em minha mente dada minha condição de imigrante recente em BH. Sem família ou contatos sociais prévios, a Faculdade era para mim uma espécie de instituição total. Mas, como eu, havia muitos outros recém-chegados, inclusive alguns alunos de outros países da América Latina, que tínhamos na universidade nossos mundos de estudo, lazer e atividade política. Um aspecto deveras importante na nossa formação intelectual e acadêmica.

O Curso de Sociologia e Política desvelava uma forte influência da sociologia francesa, mas já na minha coorte passou também a incorporar, e com muito vigor, a influência da sociologia americana. Com o treinamento de jovens professores, eles próprios ex-alunos da FACE, em cursos no Chile e nos Estados Unidos, a ênfase no treinamento em pesquisa empírica foi infundida com grande peso na grade curricular. Ao lado das disciplinas de sociologia, tínhamos matemática, economia I e II, planejamento econômico, história econômica, estatística I e II, direito constitucional, direito internacional etc.

É importante observar que a grade curricular que mencionei já refletia a influência de outras mundos acadêmicos. O grupo de professores da FACE que cursou no Chile a pós-graduação de dois anos oferecida no programa da Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (FLACSO), financiado pela UNESCO, foi o grande salto inicial de abertura para outros mundos. Pouco depois começou o fluxo de sociólogos mineiros para a obtenção do doutorado em universidades americanas. Harvard, MIT, Michigan, Berkeley e Stanford foram os principais programas cursados, quase sempre com bolsas concedidas pela Fundação Ford. Esse movimento lançou as bases para o primeiro programa de pós-graduação especificamente em Ciência Política do Brasil na UFMG.

Essa história como qualquer outra tem muitos fios, mas faço aqui um esforço de não traçar o desenho com demasiados detalhes. Meu próximo passo é ressaltar como esse núcleo inicial da sociologia e política da FACE foi berço de trajetórias sociológicas diversos, porém fundadas em uma experiência socializante comum. No Chile, onde a presença de outros latino-americanos era muito forte, diversos de nós fomos expostos não apenas a novas influências acadêmico-intelectuais, mas também à nossa herança Ibérica comum. Depois, nossas diversas experiências em um pequeno número de universidades americanas consideradas top, nos propiciaram imersão em programas que guardavam muita comunalidade.

O que veio depois foram, naturalmente, novos fronts. Voltando a Minas, Fabio Wanderley Reis e Antônio Octavio Cintra alicerçaram a construção do primeiro programa de pós-graduação em Ciência Política no Brasil a que já me referi. Também de Minas, abriu-se a trilha que trouxe para o Rio de Janeiro Edmundo Campos, Amaury de Souza, José Murilo de Carvalho, Simon Schwartzman, Renato Boschi, Olavo Brasil e eu mesma. Todos nós participamos da institucionalização dos cursos de pós-graduação de ciência política e mais tarde de sociologia no IUPERJ, pioneiro na institucionalização de programas de mestrado e doutorado nessas duas áreas no Rio. Para São Paulo foram Bolivar Lamounier e Vilmar Faria ainda nos primórdios do CEBRAP. Certamente a memória traiçoeira não me deixa lembrar outros nomes que fizeram parte dessas histórias. Mas preciso mencionar também o fluxo de outros mundos para Minas. As mesmas estradas que nos levaram, também trouxeram muitos que fazem parte da história das ciências sociais de Minas. Professores europeus, americanos e latino-americanos que passaram pelo pioneiro Departamento de Ciência Política da UFMG são também parte importante da experiência que retraço aqui.

Mas o que buscávamos e ainda buscamos todos enquanto cientistas sociais em nossas viagens, mineiros ou não, brasileiros ou não? Todos somos naturais de algum lugar e no arcabouço do mundo contemporâneo pertencemos a uma sociedade nacional. Nesse sentido, as estradas traçadas pelos sociólogos e politólogos dos quais tratei aqui levam e trazem o Brasil.

Mas não podemos esquecer que ciência (social ou natural, dura ou mole) não tem pátria, ela é uma pátria. Portanto, praticar ciência é exercer dupla nacionalidade. E daí para habitar muitos mundos é um passo.

Para nós cientistas sociais, creio, o ponto de partida é a necessidade de buscar chaves que nos permitam decifrar estruturas sociais, buscar nos arranjos de poder, de ideias e de interesses os alicerces dos problemas sociais e políticos, e par cause das injustiças a serem confrontadas. Pois bem, para fazer isso não podemos ignorar jamais que pertencemos aos dois mundos que mencionei simultaneamente: somos cidadãos de nossa sociedade nacional, marcados por nossas origens locais expressas em heranças socioculturais. Mas somos também cidadãos da República da Ciência. Ela é uma pátria de que participam todos os que compartilham o objetivo do conhecimento norteado pela ética da liberdade e da responsabilidade social. É claro que a sociedade nacional em que estamos inseridos nos fornece os ingredientes básicos para pensar sobre relações, causalidades, determinações, quaisquer que sejam os termos que invoquemos para elaborar pressupostos, hipóteses, interpretações, explicações e críticas. Mas também é verdade que ser parte do contexto obscurece muito dele. Não preciso aqui invocar o argumento da dupla hermenêutica. Basta lembrar que decifrar a singularidade de uma experiência demanda demonstrar sua diferença frente a outras singularidades. E é desse exercício comparativo que podemos extrair generalizações que ao fim e ao cabo são o que fazem de nosso mister de produtores de conhecimentos sobre o social, produtores de ciência. Ser leal simultaneamente a cada uma dessas duas pátrias nos impõe ser sempre nacional e universal. Essa é uma das muitas lições que Minas me ensinou sobre os muitos mundos.

Março, 2024

A pintura que abre o post é de Alberto da Veiga Guignard. Paisagem Imaginária Noturna, 1950, óleo sobre madeira, 110 x 180 cm.


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