Simpósio BVPS | Essa tal classe média (IV)

No quarto post do simpósio sobre classes médias no Brasil temos como convidadas/os Cesar Barreira (UFC), José Alcides Santos (UFJF), Marcelo Seráfico (UFAM) e Maria Laura Cavalcanti (UFRJ).

Organizado por Celi Scalon (UFRJ), André Botelho (UFRJ) e João Mello (PPGSA e NEPS/UFRJ), o simpósio ouviu especialistas de diferentes áreas das ciências sociais, humanas e literaturas, bem como de várias especialidades dessas áreas, sobre a relevância e a atualidade do tema. O diálogo multidisciplinar entre especialistas e não especialistas em classes médias tem o objetivo de promover trocas teóricas, históricas e empíricas e também investigar a possível multidimensionalidade e transversalidade do tema que discutimos.

Para ler a apresentação escrita pelos coordenadores do simpósio, basta clicar aqui. Os posts anteriores podem ser acessados aqui, aqui e aqui. Continue acompanhando o simpósio nas próximas quartas-feiras!

Boa leitura!


Sobre as/os convidadas/os:

Cesar Barreira é professor de Sociologia na Universidade Federal do Ceará. Autor, entre outros, de Ciências, interdisciplinaridade e utopias – lições de estudos avançados (Org., 2021) e Questões de Segurança: políticas governamentais e práticas policiais (2004).

José Alcides Santos é professor aposentado da Universidade Federal de Juiz de Fora e professor convidado do Centro de Pesquisas Sociais da UFJF. Autor, entre outros, de Estrutura de Posições de Classe no Brasil: mapeamento, mudanças e efeitos na renda (2002) e Questões de Classe: teorias e debates acerca das classes sociais nos dias de hoje (2004).

Marcelo Seráfico é professor de Sociologia na Universidade Federal do Amazonas. Autor, entre outros, de Formação Socioeconômica do Estado do Amazonas (2015) e Globalização e empresariado: estudo sobre a Zona Franca de Manaus (2011).

Maria Laura Cavalcanti é professora de Antropologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autora, entre outros, de Rivalidades e afeição: Ritual e brincadeira no bumbá de Parintins (2022) e Carnaval sem fronteiras: as escolas de samba e suas artes mundo afora (2020).

1. O que a seu ver identifica/define uma pessoa de classe média? Esses elementos mudaram ou se mantiveram ao longo das últimas décadas?

Cesar Barreira: O conceito de classe média tem uma marca da indefinição ou imprecisão. Agrega indivíduos que não possuem bens suficientes para serem enquadrados na classe alta, ao mesmo tempo não podem ser considerados de classe baixa. Nesta perspectiva vai se configurando um leque de classificações intermediárias: classe média baixa, classe média média e classe média alta. O critério ideológico é também utilizado como referência na definição da classe média que pode oscilar em suas definições políticas. É importante destacar que a classe média ocupa um lugar de formação de opinião, principalmente política, incorporando costumes sociais. A classe média carrega, de forma ambígua, valores da classe alta e da classe baixa. Este aspecto deixa clara a indefinição de seu lugar e visão de mundo. Pode-se, então, dizer que o capital econômico e a oscilação de valores culturais da classe média dificultam uma conceituação definitiva. Nos últimos anos ocorreu uma melhoria no capital econômico da população, como um todo, podendo afetar a mobilidade de uma parte da classe baixa, gerando novas oscilações na definição do conceito de classe média. No entanto, não implicando mobilidade para fazer parte das classes médias.

José Alcides Santos: A conformação mais típica ou central da classe média na sociedade contemporânea envolve uma diferenciação entre os assalariados em empregos cujas vantagens são baseadas em conhecimentos peritos ou credenciais educacionais (profissionais) e em funções gerenciais ou de autoridade notadamente abaixo do núcleo dirigente superior das organizações empregadoras. Existem diferenciações na classe média associadas à participação no poder organizacional, à defesa da autonomia profissional e à lógica de trabalho e orientação de lealdade, porém estes grupos relativamente privilegiados estão em melhor posição para defender e transmitir vantagens.

Empregos assalariados ou autônomos que obtenham vantagens apoiadas em processos de reserva de oportunidades podem ser aproximados em função do mecanismo empregado de uma composição estrita ou ampliada de classe média. Reserva de oportunidades diz respeito ao controle de recursos valiosos por uma categoria delimitada cujo benefício obtido depende da restrição do acesso a terceiros. Mudanças nos empregos ou emergências de novos empregos podem gerar situações fronteiriças e ambíguas que se aproximam da classe média ao ser considerado o critério de ordem de dominância.

Mudanças que alteram a estrutura do emprego e a distribuição da renda afetam a dimensão, a composição e a vantagem relativa da classe média. O empregado especialista é o maior segmento do núcleo da classe média. O especialista autônomo representa hoje um grupo ponderável. Houve certa redução dos empregos gerenciais e diminuições dos retornos econômicos da educação superior que impactaram na vantagem relativa dos filhos de origem privilegiada do grupo branco. Deve ser notado, por outro lado, no entendimento da possível formação de blocos sociais, que a posição diferenciada de pequeno empregador no país se aproxima da renda de gerentes e especialistas.

Marcelo Seráfico: São dois os critérios mais importantes: a função no processo de produção e a renda, podendo ou não estar articulados entre si. O critério funcional corresponde aos “white collars”, profissionais liberais cujas atividades principais envolvem posições intermediárias entre o trabalho operacional em empresas privadas ou instituições públicas e a propriedade/controle de meios de produção. Quanto ao segundo critério, a classe média é composta por trabalhadores de renda média ou alta, vista como fruto de relações de assalariamento em instituições públicas ou privadas.

Maria Laura Cavalcanti: Preciso começar com um reparo. Nunca utilizei a expressão “classe média”, singular ou plural, em minhas pesquisas, cursos e trabalhos. Daí a dificuldade de respostas às 4 perguntas enviadas. Como eventual conceito, o termo – muito usado no senso comum sem maiores problemas – se torna mais complicado do ponto de vista analítico. Vira uma espécie de guarda-chuva confuso que invisibiliza distinções socioantropológicas importantes. Sempre utilizo “camadas”, de modo a enfatizar a sua grande heterogeneidade interna. Vou tentar reunir ao menos parte das respostas na breve reflexão que segue.

Minha graduação foi em história, na PUC-Rio. Na época, o marxismo dominava a visão sociológica do mundo e não havia muito espaço para uma visão mais complexa da vida social nos cursos de sociologia do currículo. A visão mais complexa de sociedade chegou para mim embutida em alguns dos bons cursos de história que fiz com Francisco Falcon, Ilmar Matos e Ricardo Benzaquen de Araújo. Minha familiarização mais efetiva com o mundo conceitual e imagético das ciências sociais se iniciou de fato com o mestrado em antropologia, cursado entre 1978 e 1982. Vale dizer que, na época, doutorados na nossa área se iniciavam. O curso de doutorado do PPGAS/MN/UFRJ, onde me encontrava, estava iniciando sua primeira turma – não me lembro exatamente o ano, mas foi nessa época. O mestrado durava 4 anos e se estudava muito. Tive excelentes professores, e para o assunto em pauta cabe destacar Gilberto Velho, com quem fiz dois cursos marcantes: Antropologia urbana e Indivíduo e sociedade.

Gilberto é, além de sua notável obra, o introdutor de vertentes do chamado interacionismo simbólico e das pesquisas de campo em antropologia em ambiente urbano, ou do que ele denominava também como antropologia das sociedades complexas.  Com esse último termo, ele enfatizava a grande heterogeneidade interna de formação das sociedades nacionais modernas, particularmente evidenciadas nas cidades, cujo dinamismo e trânsitos internos caracterizavam-se pela fluidez de fronteiras entre níveis diferenciados de cultura, esferas de atividades distintas e domínios simbólicos. Em suma: fronteiras econômicas, políticas, religiosas, ideológicas, étnicas, culturais que distinguiriam grupos, segmentos e camadas sociais não coincidiam na dinâmica da vida concreta. Essa perspectiva trazia a abertura para as pesquisas muito inovadoras sobre o vastíssimo – e até então muito pouco pesquisado – universo das camadas médias urbanas. Utopia urbana é um marco na antropologia e nas ciências sociais brasileiras. O tema da cidade emergia como abrigo de distintos modos de vida que coexistem e, com isso, a capacidade dos atores sociais de cruzarem fronteiras entre modos de vida distintos. Camadas médias então, com toda a sua heterogeneidade interna – econômica, política, religiosa, cultural etc. – desdobram-se em grupos, setores e segmentos que circulam por entre distintas esferas de atividades e províncias de significado, bem na linha de Alfred Schutz e Georg Simmel (um autor muito valorizado nessa vertente da antropologia). Inúmeros conceitos se desdobravam: cultura como campo de possibilidades; trajetória e carreiras; os mediadores, artífices dos trânsitos entre distintos domínios sociais; fragmentação, projeto, metamorfose etc.

A possibilidade de estranhamento da familiaridade trazia consigo o interesse pelo cotidiano vivido; a percepção de que os processos de mudança social acontecem na dinâmica sutil do dia a dia, produzindo efeitos muito distintos dependendo da visão de mundo que os requalifica e absorve. Temas tabus, desvios e divergências (a estreita interlocução com Howard Becker), questões de gênero, feminismo e antropologia, a experiência da velhice, da maternidade, garotas de programa, subúrbios cariocas, a chegada da psicanálise e dos valores individualistas, o cultivo de si, o uso de drogas entre distintos setores geracionais, elites políticas e a formação militar compunham o amplo espectro de pesquisas incentivadas. Todo esse campo de possibilidades intelectuais se abriu para mim nos cursos do Gilberto Velho e no ambiente da troca e amizade com tantos colegas de então.

2. Como o tema aparece no seu campo de pesquisa e qual a relevância dele para os fenômenos que estuda?

Cesar Barreira: O meu tema de investigação sobre violência, conflitos sociais e crime é afetado, em princípio, por dois aspectos. O primeiro pode ser constatado no uso de práticas desviantes, por parte das classes média, visando a obtenção de privilégios e mudanças de status. O segundo aspecto, diretamente relacionado ao primeiro, refere-se as identificações, por parte das classes médias, de comportamentos pertencentes à classe alta. Nessa perspectiva se enquadram os matadores de aluguel que relatam que o dinheiro obtido na efetivação de homicídios possibilitaria “uma vida tranquila, com regalias, uma vida de luxo”. Essa vida não seria possível com ganhos obtidos em um trabalho regular ou honesto, a exemplo dos salários dos operários (um salário mínimo). Outro exemplo, são as riquezas obtidas por meio de grandes assaltos, criando um “comportamento falso ou uma vida fantasiosa”. Com essa configuração, observa-se que os grandes assaltantes ou os chefes de facções criminosas, quando são presos, aparecem em cena grandes mansões e luxuosos carros importados. A máxima do mundo do crime é a possibilidade de “dinheiro fácil” e quem não entra neste mundo é “otário” ou “não esperto”.

José Alcides Santos:  A questão da classe média assumiu um destaque no campo de pesquisa devido ao esforço sociológico em conceituar, entender e investigar a complexidade adquirida na sociedade contemporânea pela estrutura de classes nos países mais desenvolvidos e suas consequências. As duas principais vertentes interpretativas que foram se formando a partir da década de 1980 podem ser agrupadas, de modo sintético, em abordagens de relações de emprego e de controle de ativos ou recursos valiosos. Na abordagem de controle de ativos de Erik Wright, usada como referência, as localizações de “classe média” são pensadas como localizações contraditórias e localizações privilegiadas de apropriação entre os empregados. Nesta mesma direção, o conceito de reserva de oportunidades de Charles Tilly, como já foi ponderado por Erik Wright, pode ser pensado como o mecanismo central que diferencia os empregos de classe média da classe trabalhadora.

A classe média ou o seu núcleo fundamental representa a parte mais densa do topo social dos empregos mais privilegiados no Brasil. Pode ser diferenciada em categorias unívocas, baseadas na especificidade do processo gerador de vantagens, que são o empregado especialista, o gerente e o especialista autônomo. Nos estudos realizados as categorias são analisadas de modo específico, visando expressar determinantes diferenciados e captar diferenças, ou são agregadas no topo social com a categoria de capitalistas, menor em tamanho, porém com mais vantagens, sempre quando necessário ou escolhido para estimar efeitos de conjunto. São marcantes e robustas as vantagens da classe média que se manifestam em renda, saúde e mobilidade social. As análises de interações, além disso, revelam a capacidade da categorização de classe em condicionar ou modular os efeitos ou retornos de outros fatores em diferentes resultados sociais.

Marcelo Seráfico: Meu campo de pesquisa é a sociologia do desenvolvimento capitalista, especificamente no contexto da globalização. O interesse em torno da estrutura de classes tem a ver, de um lado, com o modo pelo qual se dão a apropriação e o uso da riqueza socialmente produzida; de outro lado, ajuda a entender as articulações transnacionais que, estruturando o processo de produção, contribuem para a emergência de padrões de consumo propriamente globais. Dessa perspectiva é possível pensar a existência de uma classe capitalista transnacional, como propõe Leslie Sklair, mas também uma classe média transnacional e uma classe trabalhadora transnacional. Ainda que todas possam se investir de características singulares decorrentes da historicidade das sociedades de que se originam, há um ponto de convergência, que é o processo de produção que as articula.

Maria Laura Cavalcanti: Coordenamos, Maria Luiza Heilborn, Bruna Franchetto e eu, a precursora coleção – que editou 4 volumes com a antiga Zahar – “Perspectivas Antropológicas da Mulher”, no ambiente da chegada do feminismo nas camadas médias brasileiras no final dos anos 1970 e início de 1980, onde se abriam as possibilidades de um rico diálogo antropológico com o assunto. Essa perspectiva vem marcar também tanto uma dimensão básica de meus trabalhos de formação como os demais trabalhos realizados desde então. O Mundo Invisível: cosmologia, sistema ritual e noção da pessoa no Espiritismo (1982), fruto de minha dissertação de mestrado, mostrou como, justamente dentro do universo de camadas médias letradas e instruídas, coexistiam fronteiras simbólicas que se queriam bem demarcadas quando se tratava de distinguir esse sistema de crenças daqueles bem próximos. As mesmas fronteiras, no entanto, inexistiam quando nos situávamos desde outro ponto de vista. Desde então, sempre me surpreendo com a quantidade de colegas e mesmo amigos, familiares e afins kardecistas! A forma discreta como essa adesão e vivência se realiza se coaduna perfeitamente com o ethos (outro conceito muito valorizado por Velho) anti-proselitista dessa religião. No trabalho resultante do doutorado, Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile, editado originalmente em 1994, o que se desvela é um processo ritual que atravessa inúmeras fronteiras sociais, étnico-raciais e simbólicas da população urbana; e articula desde as camadas populares, às camadas médias e a segmentos de elite no desfile festivo das escolas de samba: um ritual anual no qual a complexidade da cidade do Rio de Janeiro – com todas suas redes de cooperação, cheias de tensões e conflitos – se desvenda à análise antropológica.

3. Como você vê o protagonismo político desses grupos, especialmente, nas últimas duas décadas?

Cesar Barreira: Tendo como um dos seus papéis ser formadora de opinião pública, as classes médias têm ocupado fortemente o universo de formação, não necessariamente de sedimentação, das ideologias. Veiculam um protagonismo político baseado em valores conservadores ou de direita, oscilando para valores progressistas ou de esquerda. Essas posturas opostas demarcam esse lugar ambíguo e típico das classes médias. Nas últimas décadas as classes médias estiveram presentes nos grandes embates políticos. Nas “diretas já”, no impeachment do presidente Collor de Mello, com os caras pintadas, nas manifestações de rua de 2013, no impeachment da presidente Dilma Rousseff, na eleição de Jair Bolsonaro e atualmente no governo de Lula. Os movimentos da classe média podem expressar rupturas, mas também continuidades. Destaca-se ainda a negação dos partidos e da própria prática de fazer política, incluindo lutas classificadas como conservadoras, a exemplo das manifestações contra o aborto, casamento homoafetivo etc. Em outras ocasiões, as manifestações incluem valores progressistas ou “revolucionários”, reforçando e denunciando os escândalos de pedofilia que ocorreram no interior da Igreja católica, bem com as denúncias de trabalho escravo ou o desmatamento da floresta amazônica.

José Alcides Santos: Não pesquiso diretamente comportamento político, nem me propus a refletir a partir de revisão ampla dos estudos existentes. Por isso, vou explorar a proposição colocada por Erik Wright de que as categorias de “classe média” representam localizações contraditórias e localizações privilegiadas de apropriação e à luz desta ideia refletir sobre o protagonismo desses grupos no período mais recente. John Goldthorpe, por sua vez, formulou a tese influente de que a nova classe média seria essencialmente um elemento conservador e orientado ao status quo. Trata-se aqui de um exercício de imaginação sociológica usando o potencial heurístico de um conceito. De um lado, essas localizações ostentam orientações conservadoras no sentido específico de possuírem vantagens ou privilégios a preservar ou expandir. Isto condiciona uma inclinação potencial que se traduz ou se condensa em comportamento político em circunstâncias incentivadoras ou precipitantes. Por outro lado, como assalariado subordinado à organização empregadora, a relação de troca de trabalho por recompensas depende de resultados, as vantagens se associam mais à posição do que ao seu ocupante, sendo que oportunidades e constrangimentos dependem de forças fora do seu controle.   

Mudanças que vinham ocorrendo nas vantagens relativas de classe, com destaque para a queda dos retornos da educação superior, ganhos de segmentos populares associados a medidas governamentais, quadro econômico desfavorável, processos de reversão ou confirmação de expectativas a depender do julgamento precedente, campanha generalizante contra a corrupção como instrumento político, ambiente aguçado de disputa com foco no poder central, deslegitimação de lideranças consagradas no campo político, todo um conjunto de fatores podem ter convergido e influenciado amplos segmentos da classe média no sentido de intensificar e dar forma mais abertamente política à inclinação conservadora (ou mesmo evolução disruptiva) e de defesa urgente de interesses contrariados e reafirmação do seu lugar especial na representação do mundo social.

Marcelo Seráfico: A mobilização política desses grupos é notável e parece se dar em torno de dois eixos: economicamente, nasce da tendência à proletarização decorrente do aumento do custo de vida que dificulta a manutenção ou incremento de padrões de consumo que aproximem os membros da classe do status de classe alta; ideologicamente, é desdobramento do forte apego à meritocracia como explicação para a posição social – herdada ou conquistada – que ocupa. Há nisso ambiguidades evidentes, todas elas relacionadas à progressiva precarização das condições de vida decorrentes das políticas de contrarreforma do Estado em curso desde o início dos anos 1990.

Maria Laura Cavalcanti: Creio que, no século XXI, o arco da diversidade interna das camadas médias só fez se ampliar, com o acesso maior aos bens de consumo e a expansão das redes sociais, mídias etc., mas não sou uma especialista nesse assunto.

4. Como você vê a relação das classes médias com as políticas públicas (educação, saúde, habitação, por exemplo)?

Cesar Barreira: As classes médias ficam fora de diversas políticas públicas, que só atingem os setores mais pobres e vulneráveis da sociedade, criando um vazio de políticas estatais voltadas para esses segmentos. Essa não cobertura aparece claramente nas políticas públicas de saúde, habitação e educação. Um aspecto a ser destacado é que a precariedade dos serviços de saúde pública, por exemplo, leva a alguns setores das classes médias, principalmente os mais vulneráveis, a um grande impasse de não aceitarem esses serviços, mas, por outro lado, não terem condições econômicas de arcarem com as despesas de planos privados de saúde. A dificuldade aplica-se também para os serviços de educação e habitação. A educação pública é bastante criticada pelo seu descompasso ou desequilíbrio frente às escolas particulares e o déficit habitacional afeta fortemente as classes médias. É nessas circunstâncias que alguns movimentos, por ampliação de demandas e melhoria de serviços públicos, podem unificar classe média e setores populares.

José Alcides Santos: Coloco aqui reflexões mais analíticas. Políticas públicas dependem dos potenciais e constrangimentos existentes à capacidade fiscal do Estado e naturalmente da orientação do gasto público e do suporte que esta orientação recebe. À medida que a atitude dos grupos para as políticas públicas varie conforme os custos de oportunidade, os retornos esperados e os interesses materiais, o suporte da classe média seria potencialmente mais problemático ou limitado em comparação com grupos abaixo do topo social.  Expansão econômica mais robusta, geração de empregos almejados pela classe média, reduções nas incertezas de reprodução social, contextos que favoreçam a percepção dos benefícios indiretos de ganhos coletivos, podem contrabalançar ou influenciar as orientações diante das políticas públicas.

Por outro lado, parte relevante dos empregos profissionais e gerenciais está no setor de serviços sociais que envolvem saúde, educação e atividades múltiplas que atendem necessidades e demandas coletivas. Estes empregos estão distribuídos no setor público, privado e outros tipos de organizações. Isto significa que, em termos potenciais, ao nível deste segmento da classe média, existe certa conexão destes empregos com a expansão, operação e suporte de políticas públicas.

A elevação na base da distribuição educacional teria um maior impacto na redução da desigualdade educacional e suas implicações. Já a expansão do ensino superior, como foi se dando no país, mostra-se emblemática ou ilustrativa da relação da classe média com as políticas públicas. O ensino superior é parte fundamental da transmissão intergeracional das vantagens de origem para a classe média. A combinação de expansão de vagas, universidades públicas, retornos econômicos elevados serviram bem a este processo. Entretanto, limites na expansão de empregos mais vantajosos, certa inflação relativa de credenciais, quedas de retornos da educação superior e políticas de cotas em universidades públicas vieram agregar dificuldades ou introduzir incertezas de modo a alimentar orientações reativas no universo da classe média.

Marcelo Seráfico: São relações igualmente ambíguas. Em momentos em que o status profissional e a renda são suficientes para satisfazer as necessidades de reconhecimento público e consumo privado de padrão relativamente alto, essa classe de indivíduos se revela apenas tangencialmente preocupada com as políticas públicas. Isto é, enquanto é possível comprar no mercado serviços educacionais, médicos e de moradia sem que isso impacte o poder de compra de outros bens e serviços (lazer, automóveis, “esportes de distinção” etc.) e, com isso, manter certo status social, as políticas públicas são de interesse secundário. Todavia, quando os rendimentos não acompanham os custos do bem-estar e do status, essa classe vê ameaçada sua própria posição na estrutura social e passa a se engajar politicamente. A natureza desse engajamento, porém, em geral tem em vista apenas a restituição das condições de reprodução dos padrões de consumo e do status da própria classe. Daí se tratar de um engajamento de cunho conservador, quando não reacionário.

Maria Laura Cavalcanti: Não respondeu.


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