Ocupação BVPS Mulheres 2024 | 60 Anos do Golpe de 1964: Mulheres, Ditadura e Reconhecimento, por Barbara Goulart

Neste post, trazemos uma nota de pesquisa de Barbara Goulart (IESP/UERJ). Nos 60 anos do golpe, a autora testa o rendimento analítico do conceito de reconhecimento para pensar as lutas das mulheres durante a ditadura militar brasileira.

Na semana do 8M, a BVPS promove pelo segundo ano consecutivo a Ocupação Mulheres, reunindo ensaios, relatos, cartas, conto, entrevista e resenhas que abordam temas, reflexões e dados das mais diferentes ordens sobre mulheres.

Continue acompanhando as publicações da Ocupação BVPS Mulheres 2024. Para saber mais sobre a iniciativa deste ano, dedicada às mulheres e meninas palestinas, clique aqui.

Boa leitura!


60 Anos do Golpe de 1964: Mulheres, Ditadura e Reconhecimento

Por Barbara Goulart (IESP-UERJ)[1]

Este ano, a Ocupação Mulheres do Blog da BVPS coincide com a efeméride de uma data importante para a história recente brasileira e que vale a pena ser lembrada: os 60 anos do golpe militar de 1964. Após os eventos de 8 de janeiro de 2023, vemos que é sempre importante proteger a nossa jovem democracia e, com isso, percebemos que a temática da ditadura continua relevante não apenas nos círculos acadêmicos das universidades, mas também nos debates políticos do país.

As mulheres estiveram entre grande parte dos perseguidos pela ditadura militar. Foram esposas de políticos obrigadas a se exilar com a família e reconstruir suas vidas em outros países; estudantes que protegeram seus amigos e, por isso, foram torturadas pelos militares; irmãs e filhas de homens da luta armada; e também as mulheres que decidiram pegar em armas para derrubar a ditadura – ainda que nem todos os grupos de luta armada aceitassem a presença feminina na linha de frente. Em especial, foram as mulheres que começaram a luta pela anistia, através do Movimento Feminino pela Anistia, após verem seus filhos e maridos torturados pela ditadura militar.

Esse debate já foi feito extensamente em trabalhos de Maria Lygia Quartim de Moraes (2003), Amelinha Teles & Rosalina Santa Cruz Leite (2013), Susel Oliveira da Rosa (2013) e Maria Claudia Badan Ribeiro (2020). No cinema, foi tratado por Susanna Lira, em Torre das Donzelas, e Lucia Murat, em Que Bom Te Ver Viva. Há tantos outros livros e filmes que poderiam ser mencionados, mas me restrinjo aqui para entrar na discussão principal do texto.

A partir disso, gostaria de trabalhar com um conceito sociológico específico que pode ser usado para se falar sobre a luta dessas mulheres: reconhecimento. Este texto se insere dentro de um escopo de análise mais amplo que venho desenvolvendo sobre a utilização do conceito de reconhecimento para se falar sobre perseguidos pela ditadura militar.

Axel Honneth faz parte da terceira geração da chamada Escola de Frankfurt e é autor da obra, já clássica, Luta por Reconhecimento: para uma gramática moral dos conflitos sociais ([1992] 2011). Ela foi comentada por outro sociólogo, Jeffrey Alexander, no artigo intitulado Honneth’s New Critical Theory of Recognition (1996), em que, escrevendo junto com Maria Pia Lara, apresenta o que considera os pontos positivos e negativos da obra a partir da sua teoria da pragmática cultural. Argumento aqui que o diálogo entre os dois autores é frutífero para se pensar a questão das mulheres perseguidas pela ditadura, sendo elas atores políticos que buscam algo que vai além do aspecto econômico, podendo ser vistas verdadeiramente como uma luta por reconhecimento, seja do Estado ou da própria sociedade.

Axel Honneth e Jeffrey Alexander

Axel Honneth defende que a liberdade individual para a autorrealização só é capaz de ser adquirida a partir da interação com outros indivíduos. Inspirando-se no conceito de Outro Generalizado de George Herbert Mead, Honneth explica que são necessárias a aprovação e o encorajamento externo para que o indivíduo seja capaz de se ver como possuidor de traços e habilidades positivas. A percepção desses traços e habilidades e a relação positiva consigo mesmo aumenta à medida que ele é reconhecido pelos outros. Assim, ele adquire autoconfiança experimentando o amor; autorrespeito experimentando o reconhecimento legal; e autoestima experimentando a solidariedade. Portanto, para se ter uma vida bem-sucedida, seria necessário satisfazer essas condições intersubjetivas. É possível dizer então que “o conceito honnethiano de reconhecimento não remete diretamente à cultura, mas às expectativas morais de comportamento sustentadas pelos sujeitos frente a seus parceiros de interação” (Bressiani, 2011: 334).

Enquanto isso, Alexander enfatiza a cultura, vista por ele como performance. Ressalta a importância da linguística e do simbolismo para as instituições contemporâneas e resolução de conflitos. A partir de variados exemplos, ele afirma que pessoas bem-criadas podem ser preconceituosas, enquanto pessoas com infâncias difíceis podem agir de maneira que traga estima e reconhecimento para os outros. Para Alexander, isso pode ser feito a partir das estruturas do simbólico e dos ambientes organizacionais no qual agem. Assim, o que faltaria no modelo honnethiano seria a ideia de mediação.

Seria importante enfatizar, então, o processo de mediação possibilitado pelos ideais culturais e também pelas estruturas sociais ao redor dos indivíduos. Seriam esses novos ideais culturais e novas estruturas sociais que apresentariam oportunidades de aprendizado, transformando sentimentos pessoais de inadequação em comportamentos públicos saudáveis, confiantes e assertivos. A existência de estruturas culturais institucionalmente disponíveis na esfera pública, portanto, se tornaria fundamental. A partir disso, seria possível redefinir essas estruturas para modelos mais universais. Seguindo sua teoria da pragmática cultural, Alexander enfatiza a importância da efetividade performática das lutas por reconhecimento, em vez de sua efetividade psicológica, enfatizada no discurso de Honneth, que pende para o neokantianismo.

Alexander defende intervenções públicas que permitam a reconstrução dos atores, simbolizando a si mesmos de maneira positiva, abrindo espaço para a legitimação de sua luta, ganhando solidariedade pública e reconhecimento. Ganhando reconhecimento, os atores políticos se autoempoderam, revertendo sua imagem de vítima, resultando em maior autoconfiança na sua luta. Porém, como lidar com essa imagem de vítima, mencionada por Alexander?

Vítimas ou Sobreviventes?

Vale notar que, até o momento, escolhi não utilizar a categoria de vítima para me referir a essas mulheres que lutaram durante a ditadura. A categoria de vítima tem dois aspectos a serem considerados. Em primeiro lugar, essas mulheres buscam ser reconhecidas como vítimas da ditadura pelo Estado brasileiro. Sem isso, não é possível receber a anistia, que tem tanto um componente financeiro como um componente moral/emocional de receber desculpas oficiais do Estado brasileiro, que se responsabiliza pelas violências sofridas por essas mulheres.

Por outro lado, algumas mulheres argumentam que não gostam de serem colocadas na posição de vítimas, pois seria um espaço de subjugação e passividade, em que sua luta seria desconsiderada. Esse discurso é particularmente presente no Grupo Tortura Nunca Mais, liderado por duas mulheres que sofreram nas mãos da ditadura: Cecília Coimbra e Victória Grabois. Ao falarem sobre sua luta, nunca utilizam a categoria de vítima.

Como escreveram Alexander & Lara (1996), analisando o movimento feminista, foi necessário que as mulheres saíssem da posição passiva de vítimas e começassem a se verem como figuras de força e relevância política para que o movimento feminista ganhasse tração. Dizem eles: “representando-se como fortes e não como fracas, elas foram validadas e ganharam poder como cidadãs e atores públicos”. Grifa-se, então, o poder da força ilocucionária, em que a escolha das palavras e dos discursos muda a percepção externa e interna dessas mulheres.

Diante disso, é interessante se pensar como a categoria de vítima dialoga com o conceito de reconhecimento. Ao mesmo tempo em que buscam serem reconhecidas pelo Estado como mulheres que sofreram nas mãos de atores estatais, também querem ser vistas de maneira autoempoderada e não como fracas e oprimidas, reconhecendo assim a sua luta e o seu poder.

Mais perguntas do que respostas

Para Alexander, o conceito honnethiano de reconhecimento ainda seria muito abstrato, devendo se tornar mais texturizado, e só poderá sê-lo se for ampliado pela inclusão nele de um conceito como representação simbólica. O reconhecimento num sentido moral e ético é filtrado pelas estruturas representacionais misturadas de vários grupos sociais.

Assim, quais são as estruturas representacionais que devem ser consideradas quando falamos de mulheres perseguidas – ou vítimas – da ditadura militar brasileira? Este é um trabalho ainda em andamento, porém, sinalizo que para além das instituições democráticas formais que organizam o Estado, é necessária uma base cultural comum, onde os grupos até então perseguidos sejam reconhecidos como membros da mesma comunidade política que o restante da nação, onde compartilhem direitos e obrigações, aquilo que a sociologia da cultura de Alexander (2006) nomeia como esfera civil. 

O termo esfera civil se refere a uma esfera de solidariedade, em sentido durkheimiano, onde uma comunidade com características universalizantes é definida culturalmente e reforçada por instituições. Aqui, Alexander chama a atenção para o fato de que o estatuto de cidadão depende não apenas do reconhecimento estatal, encarnado em uma série de disposições legais, mas também de um reconhecimento social, parte da solidariedade de uma comunidade imaginada, dialogando assim diretamente com o conceito honnethiano de reconhecimento.

Com isso, chegamos ao fim com mais perguntas do que respostas. Entretanto, a partir daqui será possível seguir em frente na agenda de pesquisa da qual parte este texto, investigando a relação entre mulheres e ditadura, e como o conceito de reconhecimento pode nos ajudar a compreender melhor essa questão. Aponto que o caminho a ser seguido deve ser o da complexificação do conceito de reconhecimento, abarcando tanto a sua esfera interpessoal como a esfera ilocucionária, havendo dois processos concomitantes: o da construção da autopercepção e o da construção discursiva externa.


Nota

[1] Doutora em Sociologia pelo PPGSA/UFRJ e Pesquisadora de pós-doutorado no IESP/UERJ.

Referências

ALEXANDER, Jeffrey C. (2006). The Civil Sphere. Oxford University Press.

ALEXANDER, Jeffrey C. & LARA, Maria Pia. (1996). Honneth’s new critical theory of recognition. New Left Review, p. 126-136.

BRESSIANI, Nathalie. (2011). Redistribuição e reconhecimento-Nancy Fraser entre Jürgen Habermas e Axel Honneth. Caderno CRH, v. 24, p. 331-352.

HONNETH, Axel. (2011). Luta por reconhecimento: para uma gramática moral dos conflitos sociais. Lisboa: Edições 70.

MORAES, Maria Lygia Quartim de. (2003). Feminismo, Movimentos de Mulheres e a (re)construção da democracia em três países da América Latina. Campinas: IFCH/UNICAMP, Col. Primeira Versão, vol. 121.

RIBEIRO, Maria Cláudia Badan. (2020). Mulheres na luta armada: protagonismo feminino na ALN (Ação Libertadora Nacional). Alameda Casa Editorial, 2020.

ROSA, Susel Oliveira da. (2013). Mulheres, ditaduras e memórias: “Não imagine que precise ser triste para ser militante”.São Paulo: Intermeios; Fapesp.

TELES, Amelinha & LEITE, Rosalina Santa Cruz. (2013). Da guerrilha à imprensa feminista: a construção do feminismo pós luta armada no Brasil (1975 – 1980). São Paulo: Editora Intermeios.

A imagem que abre o post é da artista plástica Lena Bergstein.


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