Ocupação BVPS Mulheres 2024 | Mulheres na ciência: o gênero, o 8 de março e além, por Clara Araújo e Isadora Vianna Sento-Sé

A primeira atualização de hoje traz um texto de Clara Araújo (UERJ) e Isadora Vianna Sento-Sé (UERJ) sobre os desafios enfrentados por mulheres e meninas na ciência. Segundo as autoras, a “Conferência Temática de Mais Meninas e Mulheres nas Ciências: Por uma agenda de equidade e interseccionalidade”, programada para junho deste ano e promovida pelo MCTI, oferece uma oportunidade para colocar em debate público a relação entre mulheres e ciência e discutir novos caminhos para a ciência brasileira.

Na semana do 8M, a BVPS promove pelo segundo ano consecutivo a Ocupação Mulheres. Organizada pela editora Caroline Tresoldi, doutoranda em Sociologia no PPGSA/IFCS/UFRJ, neste ano de 2024 serão publicados cerca de 35 textos. São narrativas distintas: ensaios, relatos, cartas, conto, entrevista e resenhas, que abordam temas, reflexões e dados das mais diferentes ordens sobre mulheres.

Continue acompanhando as publicações da Ocupação BVPS Mulheres 2024. Para saber mais sobre a iniciativa deste ano, dedicada às mulheres e meninas palestinas, clique aqui.

Boa leitura!


Mulheres na ciência: o gênero, o 8 de março e além

Por Clara Araújo (PPCIS/ICS/UERJ) &

Isadora Vianna Sento-Sé (PPCIS/UERJ)

Em março acontece na UERJ a Conferência Livre “Meninas e Mulheres na Ciência e Tecnologia”, que visa tratar de questões relacionadas ao acesso ao conhecimento, progressão nas carreiras das cientistas, políticas de estímulo à entrada de meninas em setores vinculados à ciência e pesquisa, escolhas de carreiras menos pautadas pelos valores de gênero predominantes, a contribuição da ciência para um mundo mais igualitário, e outras questões de gênero implicadas nas trajetórias das mulheres. A Conferência Livre é parte do processo preparatório para a conferência nacional do MCTI, que acontecerá em junho deste ano. E por que isso nos interessa como pesquisadoras e interessa às gerações de mulheres e meninas, inclusive às futuras gerações? Por muitas razões, e aproveitamos este espaço para elencar algumas delas.

Apesar dos avanços na educação das mulheres, persiste a nível mundial uma disparidade significativa de gênero em todos os níveis da ciência, principalmente nas áreas tecnológicas, engenharia e matemática (STEM). Reconhecendo essa questão, por ocasião do “Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência”, o Conselho Internacional da Ciência (ISC) apoiou uma declaração na “9ª Assembleia do Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência”. Nossa presença nesses espaços é fundamental para a redução de desigualdades, umas das metas da agenda 2030 de desenvolvimento sustentável, o que reforça o valor simbólico dessas atividades no “mês de março”.

Há algumas décadas, o mês de março ficou conhecido como “mês das mulheres” e festa dos floristas, e passou a ser associado à gentileza de ofertar flores, sobretudo rosas, às mulheres. Isso, claro, acompanhado de frases como “uma rosa, pois é o que vocês merecem”; “em mulheres não se bate nem com uma rosa” e assim por diante. Há aqueles que podem argumentar pelos benefícios deste “símbolo” ser visto de maneira positiva, indicando que uma data originalmente marcada pelo protesto, denúncia e mobilização ganhou o gosto popular e passou a ser reconhecida. E de fato há este aspecto. Por outro lado, movimentos e ativistas passaram a se preocupar com a perda do sentido original e o apagamento das denúncias que a originaram, o que levou muitas pessoas a ignorar exatamente o quê ou o porquê estava a se celebrar. Ao mesmo tempo, as manifestações de rua e os protestos pareciam, aos olhos de muitas, mas sobretudo de muitos, formas anacrônicas ou sem sentido de marcar a data, coisa de pequenos grupos de feministas fora de seu tempo, ou de um feminismo fora de seu tempo. Sim, há motivos a celebrar quando olhamos em retrospectiva, sobretudo a partir do início do século XX até agora. E flores fazem parte de comemorações. Mas há muito o que denunciar, uma extensa agenda a cumprir e um longo caminho a percorrer. E não tanto em termos de tempo, mas em dimensões dos problemas que enfrentamos.

A percepção de um mundo ainda pautado por enormes gaps de oportunidade, chance, respeito e equidade de gênero, voltou, ainda bem, a se disseminar nas comemorações da data. O que vimos, sobretudo a partir da década de 2010, foi a retomada e o espraiamento de um movimento feminista de massa, agora não mais circunscrito a grupos históricos das últimas décadas do século XX, mas integrado também por amplas camadas de jovens e meninas que têm ido às ruas, não só no 8 de março, dizer com todas as letras e criatividade: “não queremos viver nesse mundo machista e ainda patriarcal”, “nós mulheres podemos ser o que quisermos”. Junto com manifestações do 8 de março cada vez mais coloridas e diversas, embora sem abrir mão do roxinho tradicional, assistimos à ampliação de iniciativas nas escolas, nas instituições acadêmicas, nos sindicatos, nos ambientes de trabalho e na política, entre outras arenas. Estas manifestações são pautadas por conteúdos informativos e formativos, voltados para debates, conferências, cursos, workshops, entre outras ações, nas quais são ofertados dados, informação e subsídios para sensibilizar e mostrar que faz ainda muito sentido exigir igualdade na prática e na vida. No Brasil, com um ambiente político mais esperançoso inaugurado no início de 2022, há um significado maior do que em vários lugares que não viveram as ameaças democráticas recentes.

Tudo isso importa, não é detalhe, e tem razão de ser. Ameaças democráticas e guerra aberta ao que reacionários do mundo denominam de “ideologia de gênero” passaram a ser sinônimos. E, por que não dizer, é hoje uma das bases centrais da ideologia da extrema direita. O último e mais recente exemplo próximo de nós foi o discurso do ex-presidente Bolsonaro em manifestação pública chamada em sua defesa por tentar dar um golpe de Estado. Formas messiânicas de acionar argumentos religiosos se mesclaram com alguns itens privilegiados, entre os quais o combate àquilo que chamam de ideologia de gênero estava lá. E tem estado em todos esses momentos. O que a ciência tem a ver com isso?

Os ataques ao gênero compõem, nos últimos anos, um cardápio do pânico moral mobilizado para tentar barrar avanços e impedir que conhecimentos que desnaturalizem os papéis de gênero cheguem aos jovens e à população em geral. A narrativa religiosa sobre sexualidade, ainda que seja uma questão moral, de crença, é acionada constantemente como dado da natureza, na figura da família tradicional, impedindo que se ceda lugar aos dados e fatos inexoráveis da vida social. Entre estes fatos estão o caudal de registros e evidências no século XXI sobre a diversidade familiar existente no mundo, no tempo e no espaço (nas culturas); as várias faces da sexualidade reveladas nos estudos históricos e antropológicos; o fato concreto de que as mulheres não aceitam há muito ficarem circunscritas ao papel da reprodução social, associado com a maternidade e o trabalho doméstico, e querem trabalhar e se envolver no e com o mundo em suas múltiplas dimensões: podem ser atletas e corredoras, pilotar aviões, olhar o mundo microscópico e serem também mães, se quiserem, mas não obrigatoriamente. A ficção reacionária esconde que tais reações são também analisadas como aquilo que representam: respostas graves a esse movimento de mudança, e a violência contra mulheres ou de gênero são registros – consistentes, embasados e bem analisados – sobre como esses fenômenos se manifestam. Não bastasse isso, novos aspectos da produção de conhecimento vieram se somar e fundamentar as denúncias de que essas e outras discriminações, preconceitos e violências possuem um padrão de gênero, e se manifestam com nuances e diferenças a depender da classe e da raça à qual essas mulheres pertençam. São, portanto, reações não só morais, embora pautadas por moralidades duvidosas. Refletem a renitência aos processos sociais, aos estudos sistemáticos, ao conhecimento produzido com seriedade e aos avanços sociais conquistados.

E aqui chegamos ao ponto central deste breve artigo: a conexão entre a guerra da extrema direita e as ameaças que vê sobre os sagrados pilares das instituições, apresentadas como a-históricas e baseadas em valores cristãos, sequer incluindo aí outras crenças religiosas. A reação é também à (in)capacidade de responder à trajetória de um conhecimento sistemático que historicamente mostra ser nada natural toda essa narrativa; e, vale o registro, é reconhecido também por importantes correntes religiosas que não aderem ao reacionarismo em curso. Antagoniza, portanto, com a ciência e toda a sua contribuição para a compreensão sobre o que é “Gênero”. Disseminar a ideia de uma ideologia de gênero é disseminar a ideia de que nada há ali de conhecimento, sejam os dados coletados sobre violência (e que embasaram a criação de leis como a Maria da Penha ou a do feminicídio), sejam os estudos sistemáticos sobre corpos e força muscular que mostram como estes se moldam e quão plásticos podem ser ou, ainda, aqueles no campo da Psicologia e das Ciências Sociais que demonstram como pessoas do sexo masculino podem ser tão boas cuidadoras de crianças como as sexo feminino. Isto para não falar de questões que ficaram para trás há mais de um século, como a (hoje hilária) ideia de que o tamanho do cérebro determinaria a capacidade política das mulheres ou a de que (a ausência do) prazer sexual seria intrínseco à constituição feminina.  

Chegamos, pois, ao ano de 2024 com reconhecimentos importantes sobre as capacidades de as mulheres desempenharem os papéis que quiserem e serem o que desejarem não só entre movimentos sociais ou na Academia, entre aquelas e aqueles que produzem conhecimento, mas como algo disseminado e reconhecido socialmente. Apesar das reações, as mulheres separaram prazer de reprodução na vida prática e isso também vem sendo estudado. Coletamos as taxas de natalidade e divórcio, sistematizamos as informações sobre o tempo gasto em trabalho doméstico e mostramos objetivamente como, em jornadas de trabalho de 8 horas, um pouco mais ou um pouco menos, que esse tempo, sequer considerado ao longo de séculos, é tempo de trabalho: ele é hoje visível, de forma inequívoca. Fica, portanto, a pergunta: o que gestores e políticos querem fazer com isso? E o que as mulheres querem fazer com isso?

Há, contudo, outros dois aspectos que seguem como elementos de preocupação e queremos aproveitar o restante desse artigo para comentá-los. O primeiro é que o ataque à ciência não para e as oportunidades são várias para que isto se repita. O ataque ao gênero é um deles, mas o exemplo eloquente foi a pandemia e a guerra de narrativas e a reação às vacinas. Assim, estudos que preservem as ciências também tenderão – e é isso que vem acontecendo – a revelar as camadas de crenças e narrativas criadas por diversas circunstâncias históricas e que podem ser reveladas como isso que são: circunstâncias e crenças, ambientes da cultura que podem ser alterados. Já o segundo aspecto, embora de outra natureza, não afeta apenas uma resposta necessária à desconstrução dessa narrativa reacionária da ideologia de gênero; o transcende, e precisa ser enfrentado fora e dentro do campo dos reacionários, ser trabalhado socialmente e, ainda, ser disputado e dialogado no próprio campo daqueles que praticam e defendem a Ciência. Seu enfrentamento como política pública, como vontade política e como compromisso acadêmico irá reverberar nas atitudes, nas escolhas, nos valores e no que será feito e produzido como conhecimento para um mundo mais justo e igualitário. Referimo-nos aos dados ainda assustadores associados à presença das mulheres em parte das profissões atualmente consideradas como garantidoras de emprego e renda, à presença na condição de produtoras de conhecimento e, sobretudo, à presença nos espaços nos quais se decide como, para que e para quem esse conhecimento será produzido.


No interior desse próprio campo de conhecimento, revelaram-se números, agregações, segregações e ausências que alertaram às e aos comprometidos com a igualdade de gênero. E é nesse sentido que, retomando o início do texto, salientamos a importância das mobilizações deste já famoso mês de março que se voltam para refletir sobre esse problema. E, esperamos, não fiquem apenas neste mês. Assim, vamos a alguns desses dados que justificam nossa preocupação e a própria existência de uma conferência específica sobre meninas e mulheres nas ciências. Segundo a UNESCO, as mulheres representam 33,3% dos cientistas no mundo, e apenas 12% delas são membros de academias científicas nacionais. Quando consideramos os setores de tecnologia e inovação, este número é ainda menor, apenas uma a cada cinco cientistas são mulheres, ou seja, apenas 20% em área tão relevante.

Muito se avançou na escolarização de meninas desde o início do século XX e, no Brasil, os dados mostram taxas mais altas de escolarização de meninas em comparação aos meninos. As mulheres têm 10,1 anos de estudo, enquanto os homens, 9,6 anos (IBGE, 2023)[1]. Ainda, o abandono escolar (fato muito grave e triste) é de 58,8% homens e 41,2% mulheres entre jovens a partir de 15 anos. Entre os homens, 51,6% declararam como motivo de abandonar a escola a necessidade de trabalhar e 26,9% a falta de interesse em estudar. Já para as mulheres, o principal motivo foi também a necessidade de trabalhar (24,0%), seguido de gravidez (22,4%) e não ter interesse em estudar (21,5%). Além disso, 10,3% delas indicaram realizar afazeres domésticos ou cuidar de pessoas como o principal motivo de terem abandonado ou nunca frequentado a escola. Ou seja, as tarefas domésticas e de cuidados (num total de 37,4%) somadas figuram os principais obstáculos para aquelas que não integralizam os estudos (IBGE, 2023).

O alto grau de escolarização das mulheres não se converteu em maior acesso aos estratos mais altos da carreira acadêmica. Dessa forma, a segregação das mulheres nas ciências pode ser vista a partir de dois eixos: o vertical e o horizontal. O primeiro, trata de um tipo de efeito que impede que as mulheres acessem os postos mais altos em suas trajetórias, e pode ser denominado como “efeito tesoura”, ou seja, está representado pela diminuição no contingente de mulheres à medida que as carreiras progridem. A segregação no eixo horizontal, dá conta das áreas temáticas nas quais as mulheres cientistas mais atuam, a maioria na saúde e nas ciências sociais. Ou seja, áreas temáticas, associadas aos cuidados e às humanidades. Algumas informações a seguir são reveladoras desse quadro.

Dados da Capes mostram que as áreas de nutrição, serviço social, enfermagem, educação e psicologia, por exemplo, são aquelas com maior presença de mulheres[2]. Dos beneficiários das bolsas de produtividade do CNPq, a série temporal disponibilizada no site da instituição[3] mostra que, ainda que as bolsas nesta modalidade tenham aumentado de 2005 até 2023, as desigualdades entre homens e mulheres permaneceram quase intactas. Em 2005, a proporção de beneficiários era de 66,5% de homens para 33,5% de mulheres, enquanto em 2023, dezoito anos depois, 64,2% são homens e 35,8% são mulheres. A título de exemplo, dentre as 9.757 solicitações submetidas durante o processo de seleção do edital CNPq Universal em 2023, 28,2% foram aprovadas. Tanto homens quanto mulheres registraram taxas de êxito praticamente idênticas. A aparente igualdade, contudo, não se traduz na distribuição equitativa dos recursos: aos projetos com requerentes do sexo masculino foi concedido, em média, R$ 101.831 por projeto, enquanto as solicitantes do sexo feminino receberam uma média de R$ 92.275 por proposta[4].

Ainda, os números refletem vários aspectos dessas mediações de gênero e uma delas diz respeito à socialização, posto que carreiras científicas são fundamentadas no reconhecimento pelos pares. Um artigo intitulado I forgot that you existed: role of memory accessibility in the gender citation gap, publicado recentemente na revista American Psyhcologist, mostra que, apesar de representarem dois terços dos docentes em psicologia, as mulheres são menos citadas do que os homens em um hiato de 30%. Essa sub-representação, segundo os autores, foi impulsionada pelos homens: as mulheres citaram colegas homens e mulheres na mesma proporção, enquanto os pesquisadores homens citaram majoritariamente outros homens (Yan & Muenks & Herderson, 2024).

A dinâmica da produção do conhecimento científico é também uma das expressões da desigualdade de gênero, o que nos leva a questionar algumas concepções, pois a universalidade da posição social masculina como parâmetro tende a se refletir também na universalidade de ideias, revelando, inclusive, vieses de gênero naquilo que é considerado um problema de pesquisa relevante, nos métodos a serem utilizados, nas análises e interpretações dos dados, ou seja, nas pesquisas que valem a pena serem feitas e nos resultados delas decorrentes.

Carreiras, escolhas, socialização, em parte pautadas pelo tempo (ou falta dele), permeiam esse fazer científico perpassado por hierarquias e desigualdades de gênero. A experiência recente da pandemia e o que a Ciência ou seu combate nos mostrou foi um momento expressivo desse processo, pois, ao lado de muitos aspectos, colocou em evidência esse trabalho de “fazer ciência” e deu visibilidade inesperada e ampla ao seu traço de gênero. Durante a pandemia da Covid-19, muito se falou sobre a redução de submissões de artigos em periódicos científicos por mulheres[5] e a penalização que as mães cientistas viveram neste período. Um levantamento[6] mostrou que, entre março e maio de 2020, as submissões de artigos científicos em periódicos da International Studies Association aumentaram 343% em comparação ao incremento de 17% no mesmo período no ano anterior. Apesar disso, o número de trabalhos com pelo menos uma mulher autora ou coautora caiu em quase todos os periódicos, como, por exemplo, o International Studies Prespectives, onde o volume de artigos escritos por pelo menos uma mulher caiu 19%, comparado ao mesmo período do ano anterior.

As balizas entre casa e trabalho ficaram ainda mais turvas neste período e não é difícil compreender o porquê de as mulheres terem sido mais penalizadas neste processo. Um estudo realizado com pesquisadores brasileiros mostrou que as mulheres sentiram mais o efeito do “estigma da flexibilidade” ao voltarem de licenças, em comparação aos homens, revelando que o efeito do viés da parentalidade é sentido de maneira mais radical pelas mulheres (Staniscuaski et al., 2023). Dados da PNAD contínua de 2002 sobre as tarefas domésticas, nos ajudam a compreender essa imbricação e seus impactos também nas profissões escolhidas pelas mulheres e também nas carreiras: a população com mais de 14 anos realiza em média 17 horas semanais de trabalhos domésticos, sendo que essa média é de 21,3 horas semanais para mulheres, e 11,7 horas para os homens. A diferença entre homens e mulheres na divisão do trabalho doméstico persiste quando estratificados por raça/cor, sendo as mulheres pretas as que mais realizam trabalhos domésticos em comparação às brancas. Quando analisadas as taxas de realização de tarefas de cuidado, a desigualdade entre homens e mulheres também prevalece, sendo 34,9% das mulheres e 23,3% dos homens declararam realizar este tipo de tarefa, o que revela que a divisão sexual do trabalho reprodutivo ainda impõe uma rotina mais intensa e longa para as mulheres, o que, como diversos estudos vêm mostrando, reflete-se nas escolhas profissionais que fazem e no tempo que podem se dedicar a outras atividades fora de suas obrigações familiares.

Logo, as desigualdades de gênero na ciência não devem ser tratadas como fatos atípicos, pontuais, ou como um problema exclusivamente das mulheres. Pelo contrário, as barreiras de acesso à ciência, às progressões de carreira, às bolsas de produtividade etc., só serão vencidas à medida que noções meritocráticas sejam repensadas e incorporem essa realidade em termos de uma política científica com perspectiva de gênero. Mulheres compõem metade da humanidade, são metade dos eleitores e, no Brasil, são praticamente metade da população economicamente ativa. Logo, as demandas para que se considere dimensões de gênero na análise da distribuição dos recursos não podem ser encaradas como um pleito por “tratamento especial” ou por condições privilegiadas de concorrência. Algumas medidas já poderiam ser implementadas por universidades e agências de fomento, tais como a adoção de critérios que considerem a maternidade (como já vem sendo feito em alguns editais do sistema de ciência e tecnologia e em algumas universidades); o investimento e oferecimento de infraestrutura como creches em universidades ou auxílios creche/educação infantil; bolsas e financiamentos específicos para mães cientistas; além de medidas que estimulem mudanças de atitudes de homens e contribuam para uma cultura mais igualitária, inclusive com efeitos sobre a jornada reprodutiva dos homens, fato ainda pouco tratado. Um olhar com perspectiva de gênero sobre pesquisa e inovação poderá ter impactos, também, sobre uma vida social mais equilibrada, desde o cotidiano até as decisões sobre as guerras. Quanto a isso, um exemplo interessante de inovação relatado por estudiosas do campo de gênero: na Inglaterra, há algumas décadas, quando se discutia políticas de transporte que contemplasse a perspectiva de gênero, os estudos de acadêmicas junto com a militância feminista mostraram como ônibus estreitos dificultavam o acesso de carrinhos de bebês ou de cadeirantes; e isso tinha enorme impacto sobre a autonomia e a mobilidade das mulheres, afinal elas eram as principais responsáveis por levarem as crianças à escola, ao médico etc.

Por tudo isso, no esteio das conferências livres propostas pelo Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), a “Conferência Temática de Mais Meninas e Mulheres nas Ciências: Por uma agenda de equidade e interseccionalidade” será uma oportunidade importante de agendar e pautar a relação entre mulheres e ciência, discutir o futuro das escolhas e da autonomia econômica das mulheres, debater como pesquisas podem impactar na redução de seus encargos domésticos (como foi o caso do impacto da máquina de lavar roupa sobre o tempo das mulheres), tanto quanto estratégias possíveis para estimular mulheres a entrarem em carreiras nas áreas tecnológicas e nas ciências exatas. Trata-se de um espaço privilegiado de debate público, onde as envolvidas poderão cooperar com as discussões que resultarão na 5ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, cujos seis eixos estão distribuídos pelas áreas temáticas do conhecimento: (i) Popularização da Ciência e/ou Educação Científica; (ii) Tecnologias Sociais; (iii) Economia Solidária; (iv) Tecnologias Assistivas; (v) Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional e (vi) Mulheres na Ciência. Afinal, há que se sonhar com um futuro mais equânime para mulheres e meninas; e em como esses momentos podem servir como retomada dos espaços políticos participativos, algo tão caro aos processos democráticos.


Notas

[1] Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/17270-pnad-continua.html?edicao=36982&t=resultados. Acesso em março de 2023.

[2] Disponível em: https://dadosabertos.capes.gov.br/. Acessado em março de 2023.

[3] Disponível em: http://bi.cnpq.br/painel/fomento-cti/. Acessado em março de 2023.

[4] Disponível em: http://dados.iesp.uerj.br/desigualdade-de-genero-propostas-cnpq/. Acessado em março de 2023.

[5] Disponível em: http://dados.iesp.uerj.br/pandemia-reduz-submissoes-de-mulheres/. Acesso em março de 2023.

[6] Disponível em: https://www.duckofminerva.com/2020/05/journal-submissions-in-times-of-covid-19-is-there-a-gender-gap.html. Acesso em março de 2023.

Referências

STANISCUASKI, F. et al. (2023). Bias against parents in science hits women harder. Humanities and Social Sciences Communications, v. 10, n. 1, p. 201.

YAN, V. X.; MUENKS, K.; HENDERSON, M. D. (2024). I forgot that you existed: Role of memory accessibility in the gender citation gap. American Psychologist.

A imagem que abre o post é da artista plástica Lena Bergstein.


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