Ocupação BVPS Mulheres 2024 | Notas inquietas sobre “Anatomia de uma queda”, por Felícia Picanço

Em mais uma atualização, publicamos uma análise crítica de Felícia Picanço (UFRJ) sobre o filme A anatomia de uma queda, que conquistou ontem o Oscar de Melhor Roteiro Original. Dirigido por Justine Triet, o filme narra a história de um homem encontrado morto nos arredores do chalé onde vivia com a esposa Sandra, uma escritora alemã, e seu filho de 11 anos com deficiência visual. O caso é tratado como uma morte suspeita e a viúva indiciada. Para Picanço, o filme aborda o patriarcado e coloca no centro do debate o “tempo generificado”.

Na semana do 8M, a BVPS promove pelo segundo ano consecutivo a Ocupação Mulheres, reunindo ensaios, relatos, cartas, conto, entrevista e resenhas que abordam temas, reflexões e dados das mais diferentes ordens sobre mulheres.

Continue acompanhando as publicações da Ocupação BVPS Mulheres 2024, que vão até amanhã. Para saber mais sobre a iniciativa deste ano, dedicada às mulheres e meninas palestinas, clique aqui.

Boa leitura!


Notas inquietas sobre Anatomia de uma queda

Por Felícia Picanço (UFRJ)

O patriarcado, antes de ser uma categoria histórica, é uma noção utilizada para expressar ao mesmo tempo a essencialização e hierarquização dos gêneros, que atravessam contextos, situações e experiências, e fazem perdurar a desvantagem das mulheres nas oportunidades e a sujeição a múltiplas violências.

Para falar sobre ele, a sociologia traça duas rotas. Na primeira, busca discuti-lo como um conceito com validade epistemológica, fenomenológica, teórica e metodológica – e, em algumas perspectivas, chega até mesmo a abandoná-lo. Na segunda, assume uma definição e o operacionaliza a partir da mensuração, descrição e análise das desigualdades de gênero na distribuição das tarefas domésticas e de cuidados, na família, no uso do tempo, na educação, no trabalho e nas carreiras, na renda, na violência e na participação política.

Já a arte, entre os inúmeros recursos que tem para abordá-lo, em muitas obras opta por subvertê-lo, embaralhá-lo ou retirar dele todos os elementos distratores para torná-lo tão agudo que demonstre sua violência inescapável ou para que se torne patético. Embora não sejam novas, estas são as escolhas de filmes recentes e premiados.

Não sou crítica de cinema, sou apenas uma socióloga estudiosa das desigualdades, em especial as de gênero, impactada pelo caminho cada vez mais bem sedimentado. E penso isso, não deixando para trás uma filmografia marcante na história do cinema, tampouco desconsiderando que a linhagem recente está inserida na indústria cinematográfica de massa, não cabendo na categoria “filme de arte”.

É assim que me deparei com Anatomia de uma Queda, filme dirigido por Justine Triet, após ter assistido Adoráveis Mulheres, com direção e roteiro de Greta Gerwig, baseado no livro de Louisa May Alcott; História de um Casamento, direção e roteiro de Noah Baumbach; Tàr, direção e roteiro de Todd Field; Entre Mulheres, direção e roteiro de Sarah Polley, baseado no livro de Miriam Toews; e Barbie, dirigido por Greta Gerwig e roteiro escrito por ela em coautoria com o marido Noah Baumbach. Ainda que não sejam só mulheres as diretoras e roteiristas, todas essas me pareceram obras em busca de subversões, embaralhamentos e críticas ao exercício da dominação masculina, uma temática na qual as mulheres estão ocupando espaço. Sujeitos a métricas diferentes de análise, os filmes foram avaliados com graus diferentes de sucesso na empreitada.

Diferente dos demais filmes, Justine Triet, na direção do longa, e roteirista ao lado do marido Arthur Harari, produz uma obra na qual a culpa, a devoção à casa e aos cuidados, a falta de tempo para si, as frustrações de uma carreira não deslanchada, descortinada gradualmente em diferentes momentos e cenários do filme, cabem ao membro masculino de um casamento heterossexual de classe média intelectual europeu. Ser de classe média europeia é fundamental para que se retire da narrativa as desigualdades estruturais intransponíveis de partida. Há, portanto, um estado de bem-estar mínimo ainda em operação: o filho do casal tem acesso à escola, e a opção pela frequência parcial está na escolha e não na restrição de recursos financeiros.

Culpa, cuidado e frustrações, atributos do feminino, estão no banco dos réus no filme, sem distratores de classe, num julgamento moral, porque dessa vez a vítima é o homem. Por meio das matérias, entrevistas com a diretora e análises críticas, sabemos que o filme guarda relações diretas e provocativas com o filme História de Casamento, com a história real da morte da artista plástica Ana Mendieta, bem como com filmes de julgamento nos quais os espectadores assumem o papel de juízes, sendo a ambiguidade um elemento central para esse tipo de trama.

No julgamento de Anatomia de uma queda, o presente e o passado são narrados de forma a confundir-se em uma só narrativa repleta de camadas que vão sendo desfeitas uma por uma até chegar ao núcleo duro da questão: o tempo generificado. Quanto vale e como deve ser gasto o tempo da mulher e do homem? Qual o custo quando se subverte a lógica patriarcal de como as mulheres devem gastá-lo? Quais as mediações possíveis entre os membros do casal, qual língua falar?

Em uma metáfora, provavelmente já feita nas inúmeras análises críticas, o leitmotiv do filme reside na subversão dos papéis tradicionais de gênero, onde o que está sendo julgado é a queda da hegemonia do patriarcado na sociedade contemporânea. O advogado de acusação é outro homem que sentiu o impacto da queda e recorre à estratégia de reconstruí-la a partir da tese do crime de assassinato. Com isso, busca restabelecer a ordem: uma mulher não pode gozar da sua autonomia e sucesso sem estar cometendo algum crime. “Cortem-lhe a cabeça”, grita a Rainha de Copas. Ao fim, com a absolvição, como diz Sandra, a personagem feminina do casal, espera-se uma recompensa, mas não há; é apenas sinal de que aquele julgamento acabou. A sentença, portanto, é dada independente do veredito.


A imagem que abre o post é da artista plástica Lena Bergstein.


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