Ocupação BVPS Mulheres 2024 | A flâneuse e a imagem, por Giulia Benincasa

Em mais uma atualização, publicamos na Coluna Primeiros Escritos resenha de Giulia Benincasa, mestranda em Teoria Literária no PPCL/ UFRJ, do livro Flâneuse, de Lauren Elkin, publicado no Brasil em 2022 pela Editora Fósforo. Além de fornecer uma visão sobre o livro, a autora realiza uma análise mais detida da obra da cineasta Agnès Varda, dialogando com a proposta de Elkin de resgatar mulheres de diversos tempos e espaços que caminharam pelas cidades.

Na semana do 8M, a BVPS promove pelo segundo ano consecutivo a Ocupação Mulheres, reunindo ensaios, relatos, cartas, conto, entrevista e resenhas que abordam temas, reflexões e dados das mais diferentes ordens sobre mulheres.

Continue acompanhando as publicações da Ocupação BVPS Mulheres 2024. Para saber mais sobre a iniciativa deste ano, dedicada às mulheres e meninas palestinas, clique aqui.

Boa leitura!


A flâneuse e a imagem

Por Giulia Benincasa (PPGCL/UFRJ)

O livro Flâneuse, de Lauren Elkin, começa e termina com fotos. Fotos de mulheres. A primeira delas data da década de 30 do século XX e mostra uma mulher que acende um cigarro diante de um muro em que se lê “Défense d’Afficher et de faire aucun Dépot le long de ce” [Proibido Afixar ou Anunciar o que quer que seja ao longo deste] – o enquadramento interrompe o aviso.

A figura esguia da mulher, coberta por roupas escuras e estruturadas, se irmana com a sombra de um poste de luz da época. Ainda que não haja uma grande revolução no ato de uma mulher fumando no século XX, a fotografia possui um ar transgressor: diante da parede branca, que ordena que sua alvura não seja interrompida, a mulher de preto se detém tranquilamente, retira sua luva, acende seu cigarro. Historicamente, a mulher no espaço público é uma figura instável. No entanto, contra todas as proibições, aqui está ela, tão pertencente à rua quanto um poste de luz, mesmo que em sua sombra.

Essa imagem funciona como um prólogo no livro de Elkin, preparando o leitor para o grande assunto do texto, que é apresentado formalmente no capítulo seguinte: a flâneuse, bem como a polêmica que cerca o termo. Nesse capítulo, a escritora demonstra como, para muitos estudiosos, seria impossível existir um equivalente feminino do flâneur, o homem que caminha pela cidade, uma vez que uma mulher não poderia circular anonimamente, parte integrante desse tipo literário. Elkin, por sua vez, desconfia dessa afirmação categórica que, de alguma forma, tenta colocar mais um muro entre a mulher e a cidade. Assim, afirma que

sem dúvida, sempre houve montes de mulheres em cidades e muitas delas escrevendo sobre cidades, falando da vida, contando histórias, tirando fotos, fazendo filmes, envolvendo-se com a cidade de todas as maneiras possíveis.

A escritora parte, então, em uma jornada interessante. Não apenas recupera escritoras andarilhas de diversos lugares e épocas, como o faz a partir de si própria. O livro se organiza em capítulos nomeados a partir das cidades em que morou – primeiro sua residência de infância, no subúrbio de Nova York, depois Paris (e esta última cidade retornará ao foco em 3 outros capítulos), Londres, Veneza e Tóquio. Neles, Elkin fala sobre o que a levou a cada uma das cidades, suas experiências particulares com cada uma, enquanto as próprias cidades a levam a pensar em mulheres artistas que também caminharam por aquelas mesmas ruas e, a partir delas, criaram.

Em “Paris – Bairro”, nono capítulo do livro, quarto e último sobre a capital francesa, é Agnès Varda que vai conduzir Lauren Elkin pela Cidade Luz. O encontro se dá de forma inusitada: enquanto almoçava com um amigo num café, a autora recebe uma encomenda. Trata-se de uma reunião de colecionador das obras de Agnès Varda, que, além dos filmes, possui também uma série de brindes – “cacarecos”, Elkin diz – em sua maioria postais. A confusão daquelas pequenas cartas a leva a Cléo de 5 às 7, um dos filmes mais importantes da filmografia de Varda, a partir da cena inicial do longa, que começa com uma tiragem de tarô.

Ainda que a(s) cidade(s) seja(m) um tema bastante recorrente nas obras de Varda, Cléo de 5 às 7 se destaca nesse quesito. Nele, acompanhamos Cléo durante duas horas, refletidas no tempo real do filme, que se divide em treze capítulos. Nas cenas iniciais, uma espécie de prólogo, assistimos à consulta de Cléo em uma cartomante. Logo descobrimos que a protagonista está à espera do resultado de um exame – que já conhecemos graças à sentença proferida pela cartomante após a protagonista deixar a sala: é câncer.

O primeiro capítulo começa com a saída de Cléo da cartomante. Ela desce as escadas e para diante de um espelho antes de sair do prédio, onde sua imagem é refletida infinitas vezes.

Espere, bela borboleta: ser feia, esta é a morte. Enquanto eu for bela, sou dez vezes mais viva que os outros” – ela afirma para si. Esta é a apresentação inicial da personagem Cléo: uma mulher que, diante de uma situação complexa e profunda, da imagem da morte, se segura à própria superficialidade, à própria beleza.

Os espelhos são imagens que vão reaparecer com frequência, tanto ao longo deste filme quanto em outros da diretora. Na próxima cena, Cléo se dirige para o café onde Angèle – uma espécie de secretária da mulher, que às vezes se comporta como babá – a espera. Quando perguntada sobre às previsões, Cléo se desespera. O desespero e confusão da protagonista são refletidos no espelho, momento em que ela busca sua própria imagem, como quando saiu da cartomante, mas agora encontra-se deformada.

Esse mesmo espelho serve como moldura na cena seguinte, dividindo-a em dois quadros. Ao lado de Cléo, um casal discute. Nós, telespectadores, ouvimos suas vozes se sobressaindo ao burburinho do estabelecimento. Cléo, por sua vez, ainda que ao lado dos dois, não demonstra curiosidade alguma sobre o assunto. Ela repara no homem apenas quando o mesmo se levanta e fica em seu campo de visão. Cléo, então, checa sua imagem num pequeno espelho de bolsa. Angèle e Cléo saem do estabelecimento e se dirigem a uma loja de chapéus. Cléo se interessa por um chapéu preto na vitrine. Decide entrar, e passa um tempo experimentando quase todos os chapéus da loja, olhando-se no espelho com cada um deles, para, enfim, levar aquele que tinha gostado desde o princípio. Tomam um táxi e voltam para casa. A casa de Cléo parece, ao mesmo tempo, um palco de teatro e uma casa de bonecas, daquelas que abrimos e brincamos nos cômodos cortados – de um jeito ou de outro, é artificial. Assim que adentra o quarto, ela tira os sapatos, dirige-se à penteadeira e retoca a maquiagem diante do espelho. Pelo ângulo da filmagem, ocorre uma ilusão de ótica que faz com que a atriz pareça menor, como se fosse, de fato, uma boneca. 

A mulher acomoda-se na cama vestindo um lindo robe de plumas e recebe a visita de seu amante. Em uma troca de carinhos, o homem sente uma bolsa de água quente e pergunta se Cléo se sentia doente. Diante da resposta afirmativa, reclama que a amante está sempre se queixando de algum tipo de mal-estar e logo a assegura que “a sua beleza é a sua saúde” (argh!). O encontro dos dois dura menos de 3 minutos. Ele não tem tempo para ela. “Não me surpreenderia se fosse casado”, comenta Elkin. Com sua súbita partida em um momento tão delicado, Cléo fica deprimida e põe-se a conversar com Angèle, que a assegura que o homem é um bom partido. Cléo não tem tanta certeza.

Às 17:30, momentos depois, batem à porta Bob e Maurice, músicos responsáveis por compor as músicas de Cléo. Eles entram de maneira divertida e leve, imitando um médico e um enfermeiro, carregando um guarda-chuva como se fosse uma seringa gigante. Arrancam um sorriso de Cléo. Logo os três começam a ensaiar canções, algumas já do repertório de Cléo, outras novas. São elas:

  1. L’allumeuse [A provocadora];
  2. La diverse [A diversa], em que Cléo canta: “Há uma mulher, há dez mulheres, há mil mulheres em mim”;
  3. La Menteuse [A mentirosa];
  4. Moi Je Joue, [Tenho dificuldade em traduzir o título, pois o verbo jouer em francês pode significar brincar, desempenhar (um papel), jogar ou tocar – e é exatamente com esses múltiplos sentidos que a música joga: o eu-lírico fala de um alguém que toca instrumentos, enquanto ela brinca com seu corpo, abaixando as pálpebras, mexendo o quadril: sedutora];
  5. E, claro, Sans Toi [Sem Você], música cantada por Cléo por completo:

Todas as músicas carregam um certo tipo de performance feminina: aqui está, em seu quarto-palco, a Cléo atriz, interpretando diversos papéis a partir do desejo do outro – um outro masculino: ela pode ser uma femme fatale provocadora e dissimulada, mas também pode ser algo tão frágil que, sem a presença do amado, morre “só, feia e lívida”. Tomada por emoção durante a canção, Cléo chora e os homens a chamam de “caprichosa”, palavra já repetida para se referir a protagonista. Ela, então, rebate: “Caprichosa, caprichosa – vivem com essa palavra na boca! Mas são vocês que me fazem caprichosa! Ou uma idiota, uma incapaz, uma boneca de pano!”.

Cléo cancela o ensaio. Tira seu robe de plumas e o aplique que formava seu elaborado penteado e veste-se de preto. Decide sair.

Há uma força na imagem de uma mulher que decide sair. Comprar as flores ela mesma, como a protagonista de Mrs. Dalloway, de Virgínia Woolf. O ambiente urbano aparece em alguns outros textos de Woolf, mas é no pequeno ensaio “Flanando por Londres” que a vivência da rua através da perspectiva feminina é a grande protagonista. Narrado em primeira pessoa, o texto começa com a desculpa da narradora, que diz precisar sair para comprar um lápis. No parágrafo seguinte, no entanto, entendemos melhor o que há por trás da justificativa esdrúxula de um lápis:

[Quando saímos à rua] Não somos mais exatamente o que somos. Quando, num bonito fim de tarde, entre as quatro e as seis horas, colocamos os pés fora de casa, deixamos cair a máscara pela qual nossos amigos nos conhecem e nos tornamos parte desse vasto exército republicano de vagabundos anônimos.

Cléo também quer deixar para trás essa máscara imposta a ela. E toma a mesma decisão proposta: sai à rua. No entanto, o ato de sair não é o suficiente para torná-la uma flâneuse na cidade consagrada por Baudelaire. Ela precisava, ainda, deixar para trás a sua obsessão pelo seu próprio reflexo, sua preocupação em ser vista. A poucos passos de casa, Cléo para diante do anúncio espelhado de um restaurante asiático e reflete diante de sua imagem: “Eu acho que todos me olham. E eu, eu não olho para ninguém além de mim”.

Cléo, então, dá as costas para o espelho e parte para observar a cidade. Atenta ao outro. Agora sim, pronta para flanar.

Sua primeira observação são alguns artistas de rua que engolem sapos vivos. Ela anda mais um pouco. Inicia-se o capítulo 8, às 17:45, quando Cléo adentra um restaurante. O abrir da porta marca uma mudança de perspectiva: deixamos de ver Cléo e passamos a ver como Cléo. A câmera e seus olhos se conjugam no que, roubando os termos da literatura, torna-se uma primeira pessoa. Cléo passa (e nós também) por um estreito e populoso corredor. Vai até a jukebox e coloca uma música cantada por si mesma (La Belle Putain) e caminha pelas mesinhas do estabelecimento ouvindo conversas alheias – a guerra na Argélia (presente por todos os cantos nas margens do filme), o movimento surrealista dos anos 1920, o quão ruim são essas novas músicas. Ela se atenta aos outros que a cercam agora, diferente da cena inicial do café, onde a discussão do casal não lhe despertou nem uma gota de curiosidade. Cléo deixa o café. A vemos agora na rua. A câmera em primeira pessoa mostra pessoas que caminham e a olham (ou nos olham). Mas também ela os vê – as imagens se intercalam com imagens de rostos de conhecidos de Cléo: Angèle, a cartomante, Maurice, o amante…

Cléo não é a imagem da flâneuse de Varda (como C.G. para Baudelaire). Varda sabe das problemáticas (e também das potências) que estão em jogo quando se individualiza uma imagem. Em seu curta Reponse de femmes, de 1975, isso está posto: é impossível definir o que seria uma ‘mulher’; ao mesmo tempo, quando uma mulher tem seu corpo nu utilizado para uma propaganda “é a mim que desnudam”, “é para mim que olham” – completam outras mulheres. Cléo não é a garota-modelo de Varda para o cartaz; é a mulher que caminha a cidade.

Cléo é a mulher que Varda decide perseguir neste caso, ainda assim outras mulheres caminhantes são vistas ao longo do filme. Uma delas é a taxista, que leva Cléo e Angèle da loja de chapéus para a casa da protagonista. “Uma flâneuse de rodas: conhece a cidade e sabe se defender”, define Elkin. Cléo pergunta à mulher se ela não tem medo, se não tem medo à noite, ao que esta responde que não – “medo de quê?”, indaga. É através do carro da flâneuse motorizada que temos as primeiras visões de Paris.

O medo é um ponto central do filme. O câncer. A cidade. O olhar do outro. Para Varda, eles se misturam. Diante da pergunta sobre o que Paris representaria para ela, a diretora francesa responde:

Um medo vago da cidade grande e seus perigos, de me perder, sozinha e incompreendida (…). Esses pequenos medos logo se congregaram no medo do câncer que, nos anos 1960, se enraizou na cabeça de todo mundo.

A outra figura feminina que aparece é Dorothée, amiga que Cléo vai encontrar durante sua caminhada. Dorothée é modelo viva para uma turma de estudantes de arte. O encontro acontece enquanto a amiga posa nua numa sala, cercada por jovens – em sua maioria homens – que esculpem figuras femininas. Cléo circula o espaço devagar, observando. Quando as duas saem, Cléo indaga se a amiga não fica aflita ao posar nua diante de tantas pessoas, se não a assusta ter algum defeito visto pelo outro na inspeção minuciosa do estudo. Aí está, mais uma vez o grande dilema da flâneuse: ser vista.

Interrompemos este texto para um jogo: normalmente, nos almanaques de quadrinhos, deve-se encontrar 7 erros e, apesar de existirem incontáveis, nenhuma semelhança. Mas aqui quero testar as semelhanças.

  1. a rua em um frenético alarido
  2. o vestido preto
  3. mãos suntuosas agarram pedaços de roupa
  4. pernas à mostra
  5. (engraçado, em algumas traduções aparece um “olhar distante” da passante. Nessa, Ivan Junqueira não o colocou. Intrigante, de onde veio o olhar distante que não está no original e alguns tradutores resolveram usar? Tenho algumas suspeitas.)
  6. um homem observa
  7. uma mulher que passa

As duas primeiras “imagens” dispensam apresentações: Cléo, assim que sai de seu apartamento é “A uma passante”, de Baudelaire. Já a terceira, trata-se da foto que fecha o livro de Lauren Elkin. O livro Flâneuse, de Lauren Elkin, começa e termina com fotos. Fotos de mulheres – assim comecei este texto. Fotos de mulheres, e apresentei, então, uma foto que mostra uma mulher acendendo um cigarro. No entanto, “fotos de mulheres” engloba não só fotos que mostram mulheres, como fotos feitas por mulheres. É o caso das duas fotos do livro de Elkin. A mulher com o poste é da autoria de Marianne Breslauer, e não temos grandes informações quanto à modelo. Já a última foi tirada por Ruth Orkin e, em seu centro, mostra Ninalee Craig caminhando por uma rua italiana, enquanto mais de 8 homens a veem passar. É possível ver, através da linguagem corporal de alguns deles, que estamos diante de um assédio.

A foto de Orkin foi a imagem escolhida para estampar a edição brasileira do livro, que saiu em 2022 pela editora Fósforo. Gosto bem mais dela do que da capa original americana, que traz o flâneur baudelairiano com uma sainha rosa desenhada por cima. Há um certo poder na foto, que reafirma melhor aquilo que me parece ser uma das teses de maior importância de Elkin: “A resposta talvez não consista em tentar encaixar a mulher num conceito masculino, mas sim em redefinir o próprio conceito”. Gosto de ter Ninalee na capa, não invisível ao outro, e com essa polêmica palavrinha – flâneuse – em grandes letras amarelas.

A capa da minha cópia brasileira da Flâneuse de Elkin se mistura ao poema de Baudelaire em minha cabeça. As imagens que se constroem, como no jogo, são muito semelhantes. Mas fica esse título dado à mulher: passante. O que a torna passante e não flâneuse? De acordo com a lógica da maioria dos teóricos, a questão central é que a mulher no poema de Baudelaire foi avistada. Elkin cutuca: “é sob o olhar do flâneur que a mulher que ingressaria em suas fileiras se torna visível demais para passar despercebida”. Mas o que acontece quando invertemos a direção do olhar?

Penso agora nos olhos por trás da câmera que fotografou Ninalee Craig, os olhos de Ruth Orkin. Aproximo a capa dos meus olhos: todos os homens parecem observar apenas Ninalee. Ruth Orkin estava invisível? Seria ela, então, a flâneuse? Volto à Réponse de Femmes — quando uma mulher é vista, todas também são. Penso também na sensibilidade de Ruth ao fazer a foto. Será que um homem teria gasto o filme?

*

Por trás das câmeras, Varda também experimentou certa invisibilidade. Em Les Plages d’Agnès, filme documental e autobiográfico, ela rememora toda sua vida até então. Quando conta sobre Cléo de 5 às 7, a diretora recorda sobre como veio a proposta para a filmagem daquilo que se tornou peça fundamental da mítica nouvelle vague francesa, assim como sua celebração no festival de Cannes. Durante a fala sobre o festival, Varda conta que, enquanto todos os olhos e câmeras se voltaram para Corinne Marchand, atriz que viveu Cléo, ela mesma não era reconhecida – teve, inclusive, seu nome trocado durante uma apresentação. Enquanto a voz da agora consagrada senhora narra, nós, espectadores, vemos algumas fotos estáticas da época. Em uma delas vê-se claramente a cena descrita: os olhos se voltam para a Cléo conhecida do público, que cumprimenta um jovem rapaz vestido de marinheiro. No canto da foto, já com seu emblemático corte de cabelo, a jovem Varda ri, cobrindo a boca com a mão.

“Tudo me divertia”, é o seu singelo veredito final.

A dinâmica da dupla Varda e Marchand (ou Cléo) lembra a dualidade da imagem de Orkin e Craig sucitada por Elkin: ao mesmo tempo que o que está em jogo na imagem é o olhar do outro sobre a mulher no espaço público, é através do olhar de uma outra mulher, que na imagem está invisível, que essas cenas são captadas. No entanto, diferente da imagem única da foto capturada por Orkin, os takes de Varda misturam a primeira e a terceira pessoa, ora gravando Cleo/Corinne caminhando enquanto as pessoas em seu entorno a observam, ora gravando a rua, transformando aquilo que a câmera captura no olhar de Cléo. Porém, essa mudança também implica uma mudança de perspectiva dos próprios espectadores, que deixam de ser somente observadores e se tornam também observados. Além disso, uma certa naturalidade na expressão de curiosidade dos transeuntes, que não parecem ser atores, mas, antes, apenas pessoas que passavam durante a filmagem, podem levantar uma outra questão: eles vêem Cleo ou vêem Varda e sua câmera?

Procuro a resposta nos óculos aqueles que passam, mas nenhum deles reflete nada. Varda sabe jogar com espelhos. Eles aparecem em boa parte de seus filmes. Em uma das primeiras cenas de Jane B. par Varda, filme que mescla elementos biográficos e fantásticos para retratar a vida da atriz, cantora e modelo Jane Birken, Varda pergunta a Birken por que ela tem dificuldade de olhar para a câmera. Jane responde que ela se sente envergonhada, pois olhar para a câmera é pessoal demais – “é como olhar alguém nos olhos”. Varda propõe que a câmera seja como um espelho, ao que Jane responde que não, já que no espelho observamos a nós mesmos, e não o outro. Varda então insiste no espelho, dizendo que na câmera Jane se verá, uma vez que se trata de um filme biográfico, mas também verá a câmera e Varda refletidos, ou seja, o outro também estará presente.

A tríade que a câmera acaba por formar, entre persona em cena, diretora e público, é justamente aquilo que causa a dúvida em Elkin e o riso em Varda. Quem caminha por Paris em Cléo de 5 a 7 é, ao mesmo tempo, Cléo, Varda e público, de forma que o conceito de invisibilidade requirida pelo flâneur se torna ainda mais frágil, uma vez que mostra que o ponto de vista é o que determina aquilo que está oculto.

Passei os últimos dias tentando encontrar uma cena de Varda em que ela segura uma câmera diante do espelho e diz algo como: “vocês me veem, mas eu também vejo vocês”. Tinha quase certeza que era de Les Glaneurs et la Glaneuse, quando, bem no início, a diretora apresenta sua câmera digital, filmando-se num espelho. No entanto, ela não diz essa frase. Acho que inventei. Na minha última aula da matéria de “Metodologias de pesquisa”, Heloísa Teixeira (outrora Buarque de Hollanda) contou que também já fez isso, com Deleuze. É algo que acontece depois que a pessoa entra na sua veia, ela disse.

Por isso, vou usar a frase de qualquer jeito – acho que é o lema perfeito para a flâneuserie: Vocês me veem, mas eu também vejo vocês. [Tu me vois, mais je te vois aussi.]


A imagem que abre o post é da artista plástica Lena Bergstein.


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