O golpe de 1964, a ditadura e a historiografia, por Rodrigo Patto Sá Motta

No Especial BVPS sobre os 60 anos do Golpe de 1964, publicamos ensaio de Rodrigo Patto Sá Motta (UFMG). No texto, o historiador afirma a necessidade de remoer, lembrar e revirar os eventos de 1964 e da ditadura militar até que eles sejam menos presentes.

Boa leitura!


O golpe de 1964, a ditadura e a historiografia

Por Rodrigo Patto Sá Motta (UFMG)

Nos dias que correm é impossível fazer uma análise sobre o golpe de 1964 e a ditadura militar sem observar que o tema se tornou mais presente e atual, além de mais polêmico e perigoso, por isso mesmo, essencial.

Há algumas décadas, a teoria da história tem questionado as visões tradicionais (que vem da historiografia moderna) sobre o tempo e os fenômenos da temporalidade, que se baseavam em perspectiva linear sobre as relações passado-presente-futuro, como se elas configurassem uma sequência perfeita e unidirecional. Citando Chris Lorenz, nem sempre as linhas divisórias entre as temporalidades são nítidas. Nas palavras desse filósofo e historiador, muitas vezes elas são opacas, ou borradas, de forma que o que passou pode seguir presente de diferentes maneiras. Para usar uma metáfora instigante proposta pelo mesmo autor, o passado não é necessariamente frio e morto, mas pode continuar bem quente no nosso presente. O tema da presença persistente do passado aparece em expressões muito usuais hoje, como passados que não passam, ou passados presentes, porque eles seguem marcando nossas vidas, nossas percepções sobre o tempo e, sobretudo, continuam impactando os debates políticos atuais.

Essas reflexões teóricas, que têm implicações mais complexas do que seria possível discutir agora, aplicam-se de modo intenso à história recente ou história do tempo presente, e particularmente à história do golpe de 1964 e da ditadura militar. Retomando a metáfora de Lorenz, para usá-la de maneira hiperbólica, no nosso caso o calor desse passado é intenso ao ponto de parecer que nos queimará. Certamente, tal presença da memória e do legado das ditaduras recentes é visível não apenas no Brasil, mas em todo o Cone Sul, e mesmo em outras partes da América Latina e do mundo.

Entretanto, mesmo que não seja uma jabuticaba, a presença da ditadura é singularmente aguda por aqui, especialmente devido a dois fatores. O primeiro deles envolve o arranjo de acomodação que caracterizou a transição à democracia no Brasil. Acordos entre militares e civis foram realizados em outros países, mas é difícil encontrar um caso como o brasileiro, em que as velhas e novas elites dirigentes se acertaram de maneira harmônica, forjando um novo regime político que buscou se afastar da ditadura sem rupturas, o que incluiu a tentativa de apagar a memória sobre o período autoritário. Tal política deliberada de esquecimento promovida pela chamada Nova República dificultou a educação da população sobre as virtudes da democracia e os males do autoritarismo. Além disso, permitiu que a corporação militar se mantivesse intocada, unida em torno de uma memória positiva da ditadura, e, com isso, mais propensa a embarcar em novos projetos autoritários.

O segundo fator essencial para entender a presença intensa da ditadura foi a guinada à direita na última década, que gerou e foi gerada pelo fenômeno bolsonarista. Haveria muito a dizer aqui, mas comentarei apenas o essencial: o contexto que levou à ascensão da direita autoritária implicou o retorno dos militares à cena pública e a revalorização da memória da ditadura, o que foi possível devido ao caráter da transição já mencionado. O cenário ficaria incompleto sem uma menção a duas questões essenciais: a crise política gerada pela Lava Jato, que desfigurou o sistema político brasileiro desmontando todos seus componentes, em especial as forças de direita moderadas; e o quadro transnacional, igualmente marcado pela ascensão de radicalismos de direita em vários quadrantes.

O movimento de revalorização da memória do regime militar se tornou mais grave nos anos do bolsonarismo no poder, quando o próprio capitão usava suas redes (e as da presidência da República) para divulgar uma memória positiva sobre 1964. Poucos meses após o início de seu governo, no dia 31 de março de 2019, ele aproveitou a data para exaltar a ditadura e aprofundar sua guerra cultural contra a esquerda, determinando que os quartéis comemorassem o evento. Nos anos seguintes, Bolsonaro e seus comandantes militares voltaram ao tema diversas vezes, principalmente na data de 31 de março, sempre insistindo em defender um legado positivo de 1964 que passava pela negação de que houve um golpe e uma ditadura; ao contrário, tais eventos foram apresentados como ações democráticas para salvar o país do comunismo e da desordem. Os seguidores da direita autoritária faziam movimento semelhante nas redes sociais e mídias digitais, alcançando ampla divulgação.

Um dos desdobramentos dessa politização à direita da história recente foi empurrar os historiadores (e demais pesquisadores do tema) para o centro do furacão, tornando-os alvos da extrema direita. É importante registrar que no sistema escolar os efeitos disso foram mais graves, já que muitos professores perderam o emprego devido à perseguição ideológica. Já os historiadores integrantes do sistema universitário raramente perderam o emprego, pelo menos no setor público. Mesmo assim, foram alvo de críticas (deixem os historiadores para lá), de ameaças nas redes sociais, e mesmo de tentativas de censura, por exemplo, quando uma lista de historiadores “inconvenientes” (estudiosos da ditadura ou dos movimentos LGBT) foi enviada ao CNPq no final de 2019, numa tentativa de pressionar pelo corte de financiamento à pesquisa.

Portanto, no contexto recente aumentaram os riscos para quem pesquisa a temática da ditadura, assim como a responsabilidade acadêmica e cívica. Mobilizar-se contra as ameaças autoritárias passou a ser um imperativo cívico, em defesa da democracia, mas, também, em favor do livre exercício profissional e da historiografia acadêmica. Daí a intensificação da atuação pública dos historiadores que, para além do trabalho habitual nos sistemas de ensino básico e superior, ampliaram o ativismo na mídia tradicional, nas mídias digitais e nas redes sociais, tentando contrapor-se à avalanche de desinformação, fake news, negacionismo e outras formas de distorção do conhecimento. Difícil avaliar o resultado dessa mobilização de setores da comunidade acadêmica, se seus objetivos foram alcançados e com que eficácia. Arrisco-me a dizer que não foi tempo perdido, e que é preciso continuar os esforços de divulgação pública, para alcançar além dos muros escolares.

Entretanto, o esforço para atuar nos espaços públicos deve ser compatível com o devido investimento na produção de conhecimento original. Afinal, o que distingue a história acadêmica das outras formas de representar o passado é o cuidado com os procedimentos metodológicos, o respeito às fontes, a disposição crítica frente às evidências, e o embasamento em reflexões teóricas. Pode-se objetar que os manipuladores da história às vezes mobilizam a retórica acadêmica também, em busca de credibilidade. Mas cabe mostrar que os discursos dos negacionistas e demais falsificadores são falaciosos e não merecem crédito do público. E isso passa necessariamente pela defesa dos procedimentos de base científica, que são essenciais para a produção de histórias marcadas pela qualidade e credibilidade, além de serem um ponto de partida para a batalha da divulgação e para o enfrentamento dos embates públicos.

A propósito do conhecimento acadêmico sobre 1964 e a ditadura militar, é importante destacar que esse campo não é frequentado apenas por historiadores. Na verdade, cientistas sociais e jornalistas têm oferecido contribuição importante, e desde o início. Nos anos 1970-1980, os primeiros estudos sobre a ditadura foram realizados por cientistas políticos e sociólogos, que buscaram explicar aspectos da ditadura com base em observação direta ou na aplicação de modelos teóricos. Em alguns casos, sociólogos e cientistas políticos produziram também ensaios de história recente, na maioria escritos no final dos anos 1970 e 1980. Tais estudos geraram interpretações sobre o autoritarismo que se tornariam clássicas, mobilizando construções teóricas como populismo, teoria da dependência e modernização conservadora para enfocar temas como as corporações militares, a burocracia estatal, o sistema político e as transformações econômicas da ditadura. Também foram pesquisados os movimentos sociais, que foram revigorados ou criados na fase final da ditadura, especialmente os trabalhadores (urbanos e rurais), o associativismo urbano e o movimento estudantil.

Abordagens sobre o período da ditadura produzidas por historiadores começaram a aparecer na segunda metade dos anos 1980, seja porque o distanciamento temporal em relação aos eventos foi se ampliando, seja porque os departamentos de História das universidades e respectivos cursos de pós-graduação foram se consolidando e diversificando as pesquisas. Desde então, a produção acadêmica aumentou e se diversificou, tanto do ponto de vista dos objetos enfocados como das perspectivas teóricas e métodos adotados. Se nas primeiras pesquisas sobre a ditadura predominaram a história política, a história social clássica (com foco nos trabalhadores) e a história econômica, a partir dos anos 2000 a marca da história cultural passou a ser mais visível, indicando a perda de influência da perspectiva marxista tradicional, mas, por outro lado, a incorporação de traços do pensamento gramsciano.

Nessa linha, vale destacar estudos sobre os intelectuais e os artistas, próximos ao conceito de resistência cultural, assim como pesquisas enfocando memória, cultura visual, religiosidade, gênero, imaginário, cultura política, rituais cívicos, práticas esportivas, propaganda, entre outros. A expansão de trabalhos sobre história recente foi possível também devido à maior disponibilidade de fontes. Se a transição pós-autoritária no Brasil apresenta pontos negativos, no que diz respeito ao acesso a arquivos e fontes de informação houve conquistas importantes (resultado da mobilização de pesquisadores e ativistas sociais), como a abertura de acervos sigilosos das forças de repressão e a aprovação de uma legislação liberal para regular o acesso a tais documentos.

Aprofundando o olhar sobre as linhas de pesquisa emergentes na virada do milênio, vale a pena destacar duas tendências que seguem influentes hoje. Primeiro, o surgimento de estudos sobre as direitas autoritárias e conservadoras, que se deu paralelamente à ampliação de pesquisas sobre valores e ações dos militares. Tais pesquisas basearam-se em história oral e em acervos documentais recém-abertos à consulta, gerando melhor conhecimento sobre os valores conservadores e autoritários que fundamentaram a ditadura, especialmente nacionalismo, anticomunismo, moralismo religioso e defesa da família tradicional. A historiografia dedicada às direitas ampliou-se nos anos seguintes, com estudos sobre entidades femininas, partidos políticos, organizações cristãs e intelectuais.

A segunda tendência, emergente a partir dos anos 2000, gerou pesquisas visando a entender por que alguns grupos sociais apoiaram a ditadura. Para escapar do maniqueísmo implicado no par antético colaboração x resistência e entender outros comportamentos e atitudes sociais diante do Estado autoritário, tais pesquisas têm utilizado conceitos como zona cinzenta e acomodação. As pesquisas sobre a adesão e participação de civis no regime autoritário geraram disputas interpretativas acerca da melhor denominação para a ditadura (militar ou civil-militar?), polêmicas que seguem abertas, embora me pareça que chegamos a um ponto limite no debate sobre a melhor adjetivação, já que independente das expressões utilizadas ninguém duvida que a participação de civis no golpe e na ditadura foi essencial (aliás, como duvidar disso tendo em vista do que ocorreu recentemente com o bolsonarismo? Nesse caso, o presente ajuda a compreender o passado).

No entanto, nessa linha de pesquisa sobre as atitudes sociais frente à ditadura, que é sem dúvida essencial e inovadora, não deveríamos exagerar nas tópicas da adesão e da acomodação, sob o risco de subestimar tanto a relevância da resistência como o caráter violento da ditadura, que, afinal, apenas conseguiu durar duas décadas devido ao uso da coerção. Nesse caso, como em outros, a pesquisa e a reflexão acadêmica transitam no fio da navalha, buscando o equilíbrio entre o desejo de compreender adequadamente os fenômenos autoritários e o cuidado de evitar a manipulação do tema pelos nostálgicos da ditadura.

Tal expansão e diversificação das pesquisas sobre a história da ditadura nos últimos anos, descrita aqui em breve traços, envolve outras linhas de pesquisa, como, por exemplo, questões de gênero, que, além da temática feminina passaram a enfocar os movimentos LGBTQ, as relações entre a população negra e a ditadura, bem como os povos indígenas no contexto ditatorial. Os estudos transnacionais constituem mais uma linha original em formação. Nos últimos anos foram produzidos estudos de caráter transnacional de diversos tipos, com abordagens teóricas distintas (histórias conectadas, globais, transnacionais etc.), e com foco em diferentes aspectos como repressão, organizações femininas, grupos de esquerda, instituições de direita, intelectuais, movimentos de solidariedade transnacional, organizações de trabalhadores, políticas de memória, processos econômicos, entre outros. De fato, esses estudos ocupam um lugar de destaque na fronteira da historiografia atual, para utilizar uma imagem antiga e fazer uma pequena ironia, já que se trata de uma linha de pesquisas dedicada a ultrapassar as fronteiras.

Oxalá nos próximos anos veremos essa área de estudos se ampliar e se consolidar, de preferência no mesmo passo em que as forças autoritárias atuantes na nossa região e em outras partes do globo sejam contidas, e a democracia seja fortalecida e aperfeiçoada, alcançando densidade social para além da simples institucionalidade.

Nesse sentido, creio que o governo atual erra ao desestimular a memória e a reflexão sobre 1964, buscando com isso, mais uma vez, uma rota de acomodação com os militares. Trata-se de um equívoco estratégico. Apaziguar os militares não é caminho para a estabilidade: Juscelino Kubitschek anistiou os responsáveis pelos levantes de Jacareacanga e Aragarças, e alguns anos depois eles deram o golpe de 1964; política semelhante foi aplicada na Nova República, e os militares voltaram ao proscênio após o (e por meio do) impeachment de 2016, tornando-se peças centrais dos governos Temer e Bolsonaro. Se a perspectiva do governo Lula é que esquecer 1964 pode facilitar a punição dos golpistas atuais, acho um equívoco também, porque os golpistas de hoje se inspiram em 1964 (no que diz respeito ao antiesquerdismo, sobretudo), portanto, os dois golpes estão conectados, é um erro achar que podem ser desvinculados.

É certo que a política é feita de acordos, e não apenas de conflitos. Mas acomodar demais pode gerar novos problemas no futuro. O governo Lula está perdendo uma oportunidade histórica para mudar o eixo das relações com os militares, que precisam deixar de se ver como guarda pretoriana da República, sempre prontos a entrar em cena quando acharem necessário. A corporação militar precisa ser ensinada a ver-se como o que deveria ser, uma força armada do país para defender-se de eventuais inimigos externos, e não uma corporação vocacionada para imiscuir-se nas disputas políticas internas. Mas uma adequada integração dos militares à democracia passa por enfrentar a memória de 1964, de modo a deixarem de olhar com nostalgia para aquele tempo.

Assim, para que a democracia se consolide, e para que um dia o passado da ditadura seja menos presente, é preciso lembrá-lo. Os eventos de 1964 e da ditadura militar não podem ser esquecidos. Não será apagando o passado que alcançaremos estabilidade democrática, e sim estudando-o, expondo-o. Sem maniqueísmos, sem esquemas simplistas e binários, mas enfrentando o tema.

É preciso remoer a ditadura, revirá-la, lembrá-la, até o dia em que esses eventos não sejam mais relevantes – nem ameaçadores – e seja possível deixá-los repousar nas páginas dos livros e nos registros digitais.


A imagem que abre o post é uma foto de manifestação contra o golpe de 64. Fonte: Arquivo Nacional. A imagem faz parte do ensaio visual de Lilia Moritz Schwarcz que pode ser conferido aqui.


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