1964 e o Pensamento Político-Social Brasileiro, por Bernardo Ricupero

Publicamos no Especial BVPS sobre os 60 anos do Golpe de 1964 ensaio do cientista político Bernardo Ricupero (USP). O autor discute como o golpe e a nova ordem que ele inaugurou impactou e modelou as ciências sociais brasileiras, em particular a sociologia e a ciência política. 

Boa leitura!


1964 e o Pensamento Político-Social Brasileiro

Por Bernardo Ricupero (USP)

1964 não foi propriamente “um raio caído em céu azul”. Antes do golpe havia expectativas de tal desenlace, fosse ele favorável à direita ou à esquerda. Mesmo assim, consumada a ruptura, ela teve um profundo impacto. Tratou-se geralmente de início de procurar entender o que aconteceu. Consolidada a nova ordem social e política, buscou-se interpretar a sua natureza. Tal preocupação tinha uma dupla dimensão; analítica e normativa, teórica e política, tendo afetado particularmente as ciências sociais, das quais muito de seus pesquisadores eram ou haviam sido militantes políticos.

Pode-se até dizer que as ciências sociais brasileiras, tais como as conhecemos, são fundamentalmente um produto do golpe de 1964. Por um lado, buscam explicar o acontecimento e a ordem que ele inaugura. Por outro lado, são também beneficiárias de iniciativas do regime, como o sistema de pós-graduação que ele estabelece, cujo marco principal é a Reforma Universitária de 1968.

Muito da motivação logo depois do golpe é de entender o que é visto como uma derrota. Na nova situação passa a haver mais espaço para visões críticas da política anterior da esquerda e que eram até então marginais. Sinal disso é a Revista da Civilização Brasileira – principal publicação esquerdista entre 1965 e 1969 –, em que são frequentes as contribuições de cientistas sociais da Universidade de São Paulo (USP), como Octávio Ianni (membro do conselho editorial), Francisco Weffort, Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso (Czajka, 2005). Nas suas páginas abundam os balanços sobre a “derrocada de abril”.

Numa orientação diferente, o golpe e a nova ordem que inaugura acaba estimulando mesmo os contornos que assumem disciplinas como a ciência política e a sociologia (Forjaz, 1997; Keirnet & Silva, 2010; Lessa, 2010). Exemplo da nova perspectiva é a afirmação que abre a tese de Wanderley Guilherme dos Santos, The calculus of conflict: impasse in Brazilian politics and the crisis of 1964, defendida em 1979 na Universidade de Stanford: “a tomada de poder militar em 1964 foi uma surpresa para muitos, um choque para outros e um alívio para aqueles que acreditavam que o presidente João Goulart havia comprometido seriamente seu governo em uma aventura populista de tipo radical”. Nessa referência, o autor de Quem dará o golpe no Brasil? convida “aqueles que estão insatisfeitos com suas avaliações anteriores a repensarem a política do período e a buscar uma explicação mais aprofundada para este evento decisivo” (Santos, 1979: v).

Em outras palavras, o golpe acaba representando até uma oportunidade para se afirmar a autonomia da política diante de outras esferas, como a social e a econômica. Na afirmação da especificidade da política e, junto com ela, da ciência política, muitos dos praticantes da disciplina voltam-se especialmente contra perspectivas influentes antes de 1964, como a sociologia e o marxismo. Ou seja, há uma disputa no campo das ciências sociais brasileiras, em que, usando a linguagem de Pierre Bourdieu, ingressantes, frequentemente jovens, ligados à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e ao Instituto Universitário do Rio de Janeiro (IUPERJ) que fizeram pós-graduação em ciência política nos EUA, voltam-se contra os antigos dominantes, sociólogos e marxistas. Entre cientistas políticos, especialmente o tema do autoritarismo ganha força para se entender o pós-1964.

Em contraste, o antigo catedrático de Sociologia I da USP, Florestan Fernandes, procura entender 1964 no quadro da forma que assume a revolução burguesa no Brasil, combinando dominação burguesa e transformação capitalista. A implantação do capitalismo monopolista e do imperialismo total no Brasil ganharia força na década de 1950, abrindo caminho para o golpe, quando a dominação burguesa se revelaria como ela realmente é no país: uma autocracia burguesa. A autocracia, da qual fala em A revolução burguesa no Brasil (1975), é, entretanto, diferente do autoritarismo. Ela corresponderia, como indica Gabriel Cohn, a “uma forma de exercício do poder e não de sua organização”. Nesse sentido, a autocracia burguesa deve ser entendida como “a concentração exclusivista e privatista do poder” (Cohn, 1999: 404), que se poderia manter para além do regime autoritário.

Significativamente, Florestan, depois de afastado da universidade pelo AI-5 e de um período de exílio, assume posição marginal na universidade e se radicaliza politicamente. Não por acaso, volta-se contra o clima intelectual que passa a prevalecer no ambiente universitário brasileiro, onde, segundo o autor, abandona-se “o uso do conceito de dominação burguesa, a teoria de classes e, especialmente, a aplicação da noção de revolução burguesa à etapa da transição para o capitalismo industrial nas nações capitalistas da periferia” (Fernandes, 1978: 203).

As interpretações de Florestan Fernandes e de Wanderley Guilherme dos Santos de 1964 podem ser identificadas com o que Marcos Napolitano (2016) chama da tese do “colapso do populismo” e  tese do “colapso institucional” (o autor fala também da tese da “grande conspiração”, que nos interessa menos neste trabalho). Os textos identificados com a primeira linha de análise seriam estruturalistas, tendo principalmente uma orientação sociológica ou marxista, que teria prevalecido durante a década de 1960 e 1970. A obra paradigmática entre eles seria O colapso do populismo (1968), de Octávio Ianni, seguindo a orientação também “Associated-Dependent development: theoretical and practical implications” (1973) e Autoritarismo e democratização (1975), de Fernando Henrique Cardoso, A economia brasileira: crítica da razão dualista (1972), de Francisco de Oliveira e A revolução burguesa no Brasil (1975), de Florestan Fernandes.  Já os textos identificados com o “colapso institucional” dariam mais atenção à agência dos atores, sendo principalmente obra de cientistas políticos, como as teses de doutorado de Alfred Stepan, Patterns of civil-military relations: the Brazilian political system (1969), de Wanderley Guilherme dos Santos, The calculus of conflict: impasse in Brazilian politics and the crisis of 1964 (1979), e de Argelina Cheibub Figueiredo, Political coalitions in Brazil 1961 – 1964: democratic alternatives to the political crisis (1987). Pensariam a crise política que precedeu a 1964 fundamentalmente como crise institucional.

Em sentido diferente, uma investigação de pensamento político-social brasileiro a respeito de 1964 deve ser tanto mais ampla como mais restrita do que o trabalho de Napolitano (2016) e outras revisões bibliográficas. Em primeiro lugar, não será uma revisão bibliográfica, apesar deste ser um momento importante na pesquisa. Além disso, não tratará apenas do golpe, mas do momento pós-1964, que pode ser identificado com o que foi chamado de autoritarismo, que antecede a “transição democrática”. Interessa investigar, em especial, o papel de 1964 e da ordem social e política instituída pelo golpe nos contornos que assumem a sociologia e a ciência política brasileiras neste período. Mais ainda, se quer entender como se dá a ligação entre essas disciplinas acadêmicas e a política, característica especialmente forte da ciência política e da sociologia brasileiras.

Por outro lado, independente da explicação de Napolitano (2016) poder auxiliar na análise, seu propósito – e, de maneira geral, a das outras revisões bibliográficas – não é de prestar atenção às nuances dos argumentos, reconstituindo como foram elaborados, mas tomá-los como representativos de certas linhas interpretativas a respeito de 1964. Vale, em sentido oposto, historicizar interpretações que aparecem congeladas, prestando atenção em como foram formuladas e modificadas ao longo do tempo. Como trabalho de pensamento político-social brasileiro, deve-se especialmente ajudar a tornar mais complexa a maneira de tratar as interpretações a respeito do golpe e suas consequências, destacando como funcionaram como armas de disputas teóricas e políticas, além de chamar a atenção para as possíveis e, muitas vezes, não evidentes interseções entre elas.

Ou seja, apesar de poder identificar a maior parte das interpretações a respeito de 1964 e da ordem social e política saída do golpe com as teses que Napolitano chama de “colapso do populismo” e de “colapso institucional”, nem todos os trabalhos se enquadram numa ou outra linha. Este é, por exemplo, o caso de Autoritarismo e democratização (1975), livro de Fernando Henrique Cardoso – sociólogo que ganhara em 1968 o concurso para a cadeira de Política da USP – em que, mantendo a linguagem dependentista, preocupa-se especialmente com a “ativação da sociedade civil” que poderia abrir caminho para a democratização.

Nesse sentido, também não se deve imaginar uma oposição rígida entre a suposta postura estruturalista da sociologia e a mais preocupada com a intenção dos agentes da ciência política. Na verdade, a identificação com uma ou outra visão é, em grande parte, o produto de disputas que se dão no interior das duas disciplinas ao longo do período estudado e mesmo posteriormente. As interpretações de 1964 funcionam, assim, também como instrumentos de disputa no interior da sociologia e da ciência política. Nessa referência, é sugestivo como Fernando Henrique Cardoso, depois de escrever, junto com Enzo Faletto, Dependência e Desenvolvimento na América Latina (1969), livro de grande impacto, volta-se, em “O regime político brasileiro” (1972), contra as análises do pós-1964 de autores consagrados como Celso Furtado e Hélio Jaguaribe. Torna-se progressivamente um “um intelectual que lidera intelectuais” (Lahuerta, 2001: 65), o que fornece legitimidade para sua futura carreira política.

Mais especificamente, ao historicizar as interpretações a respeito de 1964, deve-se procurar entender nas disputas teóricas e políticas referentes às análises particularmente as “formas de pensar” subjacentes às diferentes posições; seus pressupostos, como são formuladas e transformadas ao longo do tempo (Brandão, 2008).

O desafio é, em boa medida, comparável ao do tempo presente, as jornadas de Junho de 2013, o golpe parlamentar de 2016 e a eleição de Jair, tendo imposto a revisão da maneira como se pensa a sociedade e a política brasileira. É verdade que os dois contextos são muito diferentes, até porque o fato dominante quando ocorre o golpe de 1964, a Guerra Fria, não existe mais. No entanto, de maneira mais profunda, nosso problema, assim como o do pós-1964, é a democracia, questão que, na verdade, não era evidente para os diferentes atores políticos antes do golpe, mas que se tornou, durante o autoritarismo, decisiva. Nesse sentido, é possível dizer que há um quadro comum entre estes a(u)tores já distantes historicamente de nós: as preocupações de depois do golpe chegando até nós. Até porque, como indica Pierre Rosanvallon (2003: 17), “mais do que dizer que a democracia tem uma história, é preciso considerar, de maneira mais radical, que a democracia é uma história”.

Em outras palavras, deve-se tomar nas primeiras interpretações de 1964 a história tanto como objeto como abordagem. Trata-se, em especial, de investigar um momento decisivo na constituição da democracia brasileira, a da busca da compreensão do chamado autoritarismo, o que era entendido então como esforço necessário para se poder enfrentar a ordem social e política criada pelo golpe. Este esforço, realizado basicamente nos anos 1960 e 1970, abre caminho para uma nova ordem, cujo marco é a Constituição de 1988, fortemente questionada nos últimos anos.

Referências

BRANDÃO, Gildo M. (2008). Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: HUCITEC.

CARDOSO, Fernando Henrique. (1975). Autoritarismo e Democratização. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

COHN, Gabriel. (1999). A revolução burguesa no Brasil. MOTTA, Lourenço Dantas. Um banquete nos trópicos. São Paulo: SENAC.

CZAJKA, Rodrigo. (2005). Páginas de resistência: intelectuais e resistência na Revista Civilização Brasileira.Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Sociologia da Universidade de Campinas.

FERNANDES, Florestan. (1975). A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1975.

FERNANDES, Florestan. (1978). Respostas às intervenções: um ensaio de interpretação sociológica crítica. Encontros com a civilização brasileira, n. 4.

FORJAZ, Maria Cecília Spina. (1997). A emergência da ciência política no Brasil: aspectos institucionais. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 13, n. 35, p. 1-35.

KEIRNET Fábio & SILVA, Dimitri. (2010). A gênese da ciência política brasileira. Tempo Social, v. 22, n. 1, p. 79-98.

LAHUERTA, Milton. (1999). Intelectuais em transição: entre a política e a profissão. Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo.

LESSA, Renato. (2010). O campo da ciência política no Brasil: uma aproximação construtivista”.  In: MARTINS, Carlos B. (ed.). Horizontes das ciências sociais no Brasil: ciência política. São Paulo: Barcarolla.

NAPOLITANO, Marcos. (2016). Roteiro de leituras para o estudo do golpe civil-militar de 1964. Guia bibliográfico da FFLCH. São Paulo: FFLCH.

ROSANVALLON, Pierre. (2003). Pour une histoire conceptuelle du politique. Paris: Éditions du Seuil.

SANTOS, Wanderley Guilherme dos. (1979). The calculus of conflict: impasse in Brazilian politics and the crisis of 1964. Tese doutorado, Universidade de Stanford.


A imagem que abre o post é uma foto do desfile de 7 de setembro em 1972. Fonte: Arquivo Nacional. A imagem faz parte do ensaio visual de Lilia Moritz Schwarcz que pode ser conferido aqui.


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