Série Nordeste | Rachel de Queiroz & mais: conversa com Heloisa Buarque de Hollanda, por Caroline Tresoldi

Na atualização de hoje da Série Nordeste BVPS, publicamos uma entrevista com Heloisa Buarque de Hollanda, ensaísta, professora e pesquisadora que acaba de ser eleita para a Academia Brasileira de Letras. A conversa, conduzida por Caroline Tresoldi (UFRJ), gira em torno da figura de Rachel de Queiroz, uma das principais escritoras do Nordeste.

Série Nordeste BVPS é uma iniciativa que une a vocação do Blog da BVPS – formação de editores/as, autores/as e leitores/as de comunicação pública das ciências sociais, literaturas e artes – aos propósitos pedagógicos da disciplina Sociologia Política do Nordeste, que está sendo ministrada na Graduação em Ciências Sociais do IFCS/UFRJ neste primeiro semestre de 2023. 

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Boa leitura!


Rachel de Queiroz & mais: conversa com Heloisa Buarque de Hollanda

Por Caroline Tresoldi (UFRJ)

Na breve entrevista a seguir, a ensaísta, professora e pesquisadora Heloisa Buarque de Hollanda fala sobre Rachel de Queiroz, a roupa que usará em sua posse na Academia Brasileira de Letras e comenta a programação da Universidade das Quebradas, que também elegeu o Nordeste como tema de debate neste ano. Antes de seguir para a entrevista, vale uma pequena nota para situar o/a leitor/a.

Heloisa escreveu alguns belos ensaios sobre Rachel, reunidos no e-book Rachel Rachel (2016), e chegou inclusive a escrever com ela. O ensaio a quatro mãos, “Dona Fideralina de Lavras”, publicado em 1990 e agora reunido no e-book, conta a história de uma cruel matriarca nordestina que fascinou as duas. As matriarcas nordestinas, segundo Heloisa, eram mulheres do sertão oitocentista que se casavam cedo e, na ausência dos maridos, dirigiam com mãos severas as propriedades de gado e açúcar. Mulheres fortes e independentes como as personagens de Rachel. Como Rachel.

O texto é muito sugestivo e vale ser conferido. Mas gostaria também de chamar a atenção para um outro ensaio de Heloisa que abre Rachel Rachel, publicado pela primeira vez em 1992, no número inaugural da Revista de Estudos Feministas. Trata-se do ensaio “A roupa de Rachel: um estudo sem importância”, no qual Heloisa aborda a singularidade da carreira profissional de Rachel frente aos tradicionais obstáculos do reconhecimento do trabalho feminino e recupera as discussões em torno de seu ingresso na ABL. Mostra Heloisa que, se a eleição de Rachel como a primeira mulher a ocupar uma cadeira na ABL deixava para trás uma longa discussão sobre a presença feminina na academia literária, sua posse retomava uma polêmica algo inusitada: “que roupa usaria Rachel para compatibilizar-se com a simbologia heroica expressa pela espada e os louros do fardão dos imortais?” Como Heloisa sugere, o intenso debate dos acadêmicos sobre a roupa que Rachel usaria em sua posse, registrado amplamente nas páginas dos jornais da época, descortina as relações de gênero na trajetória da ABL e da própria sociedade brasileira.

A roupa escolhida para a posse de Raquel em novembro de 1977 foi recentemente abandonada pelas acadêmicas, como conta Heloisa na entrevista que segue. O que isso revela sobre a ABL e sobre a sociedade brasileira dos últimos anos? Se muitas coisas mudaram no Brasil daquele final dos anos 1970 para cá, não deixa de causar desconforto que Heloisa seja apenas a décima mulher eleita para a ABL. Em termos percentuais, o número é ainda mais revelador: nos mais de 120 anos de existência, apenas 3,75% de mulheres ocuparam cadeiras na ABL. Mas esse é um assunto para outro post. Fiquemos agora com as palavras de Heloisa sobre Rachel.

1. Gostaria de começar perguntando como você avalia a importância de Rachel de Queiroz no quadro da literatura brasileira.

Rachel, como escritora, foi a primeira modernista fora do eixo Rio-São Paulo. Só isso lhe confere um lugar especialíssimo na série literária. Aos 20 anos, já no livro de estreia, O Quinze (1930), desenvolveu uma linguagem única, sem ornamentos, adjetivos ou redundâncias, típica da virada industrial na economia extrativista, num território de feição colonial. O enquadramento do fenômeno da seca em Rachel, avesso a qualquer estereótipo, fala de um Brasil esmagado pelas políticas coronelistas nos anos de 1930. Foi ainda uma escritora mulher fora da curva, o que fez com que os principais críticos pensassem que o nome Rachel, autora do Quinze, fosse apenas um pseudônimo que encobria uma autoria masculina.

2. Como se deu seu interesse e fascínio por Rachel de Queiroz e sua obra? Conte-nos também sobre sua relação pessoal com ela… Em que contexto vocês escreveram o texto “Dona Fideralina de Lavras”?

Alceu Amoroso Lima, sobre quem fiz um filme, falava muito da “Categoria da Presença”. Ou seja, uma categoria de análise que levava em conta a força da presença de alguém que impacta o interlocutor de tal forma que promove alguma mudança em sua trajetória. É comum ver como Alceu narra sua vida a partir desses encontros/presenças. Foi assim meu encontro com Rachel.  Desde nosso primeiro contato meu horizonte se alargou de forma nunca esperado. A presença de Rachel trazia junto um Brasil profundo, desconhecido, misterioso, poderoso. Rachel me deu uma nova escala de ver e de viver. Me levou também a uma curiosidade quase obsessiva sobre a estrutura sociocultural desse Brasil tão longe e tão perto. Provavelmente por vício, acabei no estudo das mulheres nordestinas coloniais. E surgiu nas nossas conversas uma onda gigante de casos de mulheres chefes de família, poderosíssimas e hipersexualizadas: as matriarcas nordestinas. Não entrarei nos fascinantes detalhes da construção desse imaginário sobre essas mulheres, chefes de família naquela região. Mas dei uma pequena mostra, quando passei para o papel a história que ouvi de Rachel sobre Dona Fideralina de Lavras. Combinamos fazer uma série de livros sobre as matriarcas nordestinas que terminariam com um estudo meu sobre essas mulheres, mas, como tantas pontas que não amarramos a tempo, a série não aconteceu…

3. Conte-nos mais sobre a questão da matriarca nordestina que identifica em Rachel. Ela teria alguma relação com as figuras femininas nas periferias das grandes cidades?

Rachel tem todos os índices da construção das matriarcas atualizados numa jornalista boêmia, cozinheira emérita e grande escritora. A raiz, o nordeste presente em cada gesto, em cada linha, o poder embaixo da pele, o doce autoritarismo da maternalidade patriarcal…

A periferia, sem dúvida, ainda trabalha com referências matriarcais. Existe sempre uma Mãe de Santo, as Senhoras do Samba, uma Quituteira das antigas, uma Bisavó que conta sua história fundida com a história do território. Todas trazendo com força a imagem de um passado estruturante onde se sobressaia o poder da categoria mãe.

4. Em 1977, 80 anos após a fundação da Academia Brasileira de Letras, Rachel de Queiroz foi a primeira mulher a ingressar na ABL. Em “A roupa de Rachel: um estudo sem importância”, você mostra como o debate sobre o fardão que Rachel usaria em sua posse revela complexas relações de gênero. O que significa para você assumir um lugar na ABL hoje, como a décima mulher eleita? E conta pra gente, você já sabe que roupa usará em sua posse?

Vamos combinar que 10 mulheres eleitas é muito pouco para os tantos homens que assumiram nestes 120 anos da ABL. Tentarei trabalhar muito nesse ponto da inclusão, dos direitos humanos e abrir um espaço para educação. É minha missão na ABL. Minha cabeça está a 1000. A quantidade de coisas maravilhosas que se pode fazer com esses eixos é infinito e mega apetitoso.

Em relação à roupa, usarei uma adaptação do fardão masculino, porque as mulheres rapidamente se desfizeram da roupa que Rachel escolheu e usou. As mulheres acadêmicas em um certo momento optaram por uma vestimenta com calça e paletó, praticamente idêntica à dos homens, quente e pesada. Vou tirar um tempo para pesquisar o porquê dessa mudança. Como no caso da roupa de Rachel, um despretensioso tubinho verde bordado, esse desejo de acompanhar o padrão de roupa masculino deve gerar muito assunto.

5. Para finalizar, você poderia comentar a programação da Universidade das Quebradas em 2023? O tema que vocês elegeram foi o debate da literatura, cinema e artes sob “um olhar nordestino-negro-indígena”

O encontro com Rachel me deixou uma experiência muito forte sobre o que não sei sobre o Nordeste, que logo traduzi para o que não sei sobre o Brasil. Depois que Rachel se foi, convivo com uma gigantesca população nordestina que migrou para as grandes cidades e foi se estabelecer nas periferias e favelas. Sinto uma força estranha nesse convívio. Estou com 84 anos, me permitindo fazer o que quero. E o que quero é, nessa saideira, mergulhar de cabeça no sertão brasileiro. Última chamada. É agora ou nunca mais. Essa escolha foi, sobretudo, egoísta e oportunista. Perdão.


Capa do e-book Rachel Rachel &

Foto de Heloisa Buarque de Hollanda e Rachel de Queiroz em 1993.

Imagem que abre o post: Joana Lavôr, colagem da série Dei Normani, Sicília. Para a disciplina/série Blog da BVPS Nordeste Autopoiesis.

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